Traços
de uma Saúde desumanizada
Por
Alessandra Leles Rocha
É, está difícil dialogar! Não
apenas por conta da radicalização ideológica amplamente disseminada; mas, em
razão da burocratização tendenciosa que tem imperado para obstaculizar os mais
diversos tipos de comunicação.
Até onde se sabe, a premissa
básica para o sucesso dialógico é a disposição natural existente entre os
interlocutores, ou seja, todos objetivarem exercer o direito de uma comunicação
que cumpra seu papel satisfatoriamente.
Mas, observando atentamente a
dinâmica contemporânea, confesso que durante algum tempo tendi a pensar que uma
dificuldade de compreensão estava se configurando na população, a tal ponto,
que em muitos casos era preciso ir além das palavras e apelar para toda
expressão de linguagens não verbais, a fim de resolver o impasse.
Acabei, no entanto, descobrindo
que a situação é muito pior, pois não se trata de mera incompreensão; mas, de
interesses escusos, para não dizer mal-intencionados, que utilizam da confusão,
do tumulto e da polêmica para enviesar a comunicação, segundo seus
interesses.
O que a grande maioria das
pessoas não se deu conta é que esse fenômeno não atravessa um campo social
específico. Afinal, ninguém dialoga apenas amenidades, não é mesmo?! A vida, em
si, é a materialidade de uma infinidade de possibilidades comunicativas.
Fala-se de sol, de chuva, de amor, de política, de carestia, de futebol, ...
De modo que diante desse cenário
tão plural, eu me deparei com uma situação gravíssima. Muitos devem ter
percebido, ainda que de maneira pouco consistente, como o trato com a saúde
ganhou ares mais humanizados nas últimas décadas.
A consolidação de ambientes e
atendimentos mais acolhedores e atentos aos cuidados com os doentes, unindo-se
às formações profissionais mais empáticas e fraternas e às infraestruturas pensadas
para traduzir essas ideias, foi algo realmente inovador.
Em tese, um ganho e tanto!
Principalmente, levando-se em conta uma realidade tão sisuda e individualista, como
tem enfatizado a contemporaneidade.
Contudo, imerso nas entrelinhas
dos acontecimentos, eis que a implacável tecnologização do cotidiano, em nome
do avanço científico e da otimização tempo-espaço, impactou inevitavelmente a
dinâmica das relações sociais.
O que na área da saúde levou a
uma intensa automatização de serviços, a qual não só reduziu oportunidades de
trabalho operacionais e ampliou os lucros e dividendos dos gestores do setor;
mas, também criou abismos na interação com os usuários dos serviços.
Esse é o ponto! Na fatídica incompatibilidade
entre essas visões, a ideia da humanização perdeu terreno para a desumanização.
Ainda que sob formas e conteúdos distintos, os cenários públicos e privados da
Saúde brasileira estão sim, estampando uma desumanidade absurda.
Cada vez mais as tratativas de
atendimento estão nas mãos de atendentes virtuais, que obedecem a protocolos
predeterminados, incapazes de responder a todos os questionamentos. O que
significa que as demandas e dúvidas do paciente, ou usuário do serviço de saúde,
tem que caber naquele protocolo ou, então, serão sumariamente negligenciadas
pela falta de resposta.
Serviços de Atendimento ao Consumidor (SAC) e Ouvidorias oferecem telefones que não atendem e, na maioria
das vezes, encerram a chamada dizendo que “todos
os atendentes estão ocupados no momento. Favor ligar mais tarde”, como se
isso fosse resolver. Como se, de fato, mais tarde você fosse ser atendido.
Mas, quem disse que para por aí? Não.
A desumanização vai muito além, especialmente, no caso da medicina privada. Você
a percebe, por exemplo, quando liga no consultório de um médico, credenciado
pelo seu plano de saúde, e recebe a informação de que a cota de atendimentos
por convênio já foi preenchida. Sutilmente, você, dependendo da urgência, acaba
caindo em tentação e se submetendo ao pagamento de uma consulta particular,
para não incorrer no risco de engrossar as filas do Sistema Único de Saúde
(SUS).
Quando você descobre no ato do
atendimento, que aquele tipo de convênio que você tem está no rol daqueles que
o serviço de saúde, que você procurou, não contempla e, muito menos, deixou
clara essa informação na recepção. Mais uma vez, sutilmente, você, dependendo
da urgência, acaba caindo em tentação e se submetendo ao pagamento de um
atendimento particular. Só que dessa vez, por pura prática abusiva e desleal de
ambos os serviços.
Quando você percebe que seu
direito de escolha, tanto a respeito dos estabelecimentos de saúde quanto de
profissionais da área, não é mais respeitado. O que significa que o seu plano
de saúde é quem, no fim das contas, decide onde, quando, como e por quem você
será atendido, à revelia de qualquer lei, principalmente na esfera do Código de
Proteção e Defesa do Consumidor, ou contrato firmado entre vocês.
Pois é, há uma franca
discordância com o previsto no art. 6º, inciso IV, da Lei n. º 8.078/1990, que
é direito básico do consumidor “a
proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais
coercitivos e desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas
no fornecimento de produtos e serviços”.
Em suma, toda essa desumanização
não só esconde a mais pura burocratização, que no fundo sempre fez parte da
cultura nacional; mas, também escancara como os seus direitos em Saúde estão,
cada vez mais, inversamente proporcionais aos valores que você paga,
diretamente ou através de impostos, pelos serviços prestados.
Desumanizada e precificada, a Saúde
acaba tendo o seu gran finale na
judicialização. Não importa se você está pouco ou muito doente, por vias tortas
de um calvário de peregrinações humilhantes em busca de um direito, o qual a
Constituição Federal de 1988 1 afirma
ser seu, não resta outra saída senão apelar para a Justiça.
Pois é, se a cidadania fosse
exercida a contento; se as leis recebessem o devido respeito e fiscalização; se
a Saúde não tivesse se desviado tanto dos seus princípios naturais; se ... Não haveria
sobrecarga de processos no judiciário brasileiro, clamando por saúde.
Muitos deles, no limite entre a
vida e a morte. Afinal, como escreveu Jean-Jacques Rousseau, “O primeiro passo para o bem é não fazer o
mal”. E o mal, nesse caso, é o desvirtuamento flagrante da dinâmica social
estabelecida, ou seja, do senso genuíno de humanidade.
Diante disso, cessam as dúvidas e os questionamentos iniciais sobre a dialogia. Nada melhor para alcançar a desumanização do que o silêncio, do que impedir a construção do diálogo lógico e produtivo. No silêncio se consegue promover todas as violências sem exasperação; pois, ele nega, ele intimida, ele oprime, ele sufoca, ele obstaculiza, na imaterialidade da sua existência. Ele é tudo e nada, sem deixar rastros, enquanto ele despoja o ser na mais completa significância da sua humanidade.