Fins.
Meios. A expansão sutil do fundamentalismo contemporâneo.
Por
Alessandra Leles Rocha
A displicência com que a raça
humana tem olhado para questões importantes do seu cotidiano é muito grave. Por
trás de toda a efervescência das disputas político-partidárias, que permanecem
fraturando as relações sociais no país, o papel do fundamentalismo radical e
extremista se dissemina por outros campos não menos importantes. Daí a
necessidade de levar em conta as seguintes palavras de Anthony Giddens, ou
seja, “Fundamentalistas afirmam: só há um
modo de vida válido, e os demais têm de sair da frente” 1.
Durante muito tempo, a raça humana
quis acreditar que o fundamentalismo era um traço restrito à religião islâmica.
Acontece que o tempo permitiu mostrar e provar como certos grupos sociais são
capazes de utilizar das suas bases doutrinárias religiosas como instrumentos de
obediência, para a manipulação e o controle do poder em outros campos da vida,
tais como economia, política, educação, comportamento.
Assim, o fundamentalismo tem à
sua disposição um arcabouço de respostas, de justificativas, de legitimações,
para manter a preservação dos seus interesses e status, ao mesmo tempo em que
elege figuras representativas de elevado apelo carismático e com potencial
capacidade influenciadora.
A própria construção discursiva
do fundamentalismo reveste essas pessoas, então, de uma pseudoautoridade tão
arraigada que elas se tornam, quase que, blindadas de eventuais desconfianças
ou questionamentos. Razão pela qual, mais do que uma liderança, elas passam a
repercutir os efeitos da idolatria e da mitificação.
Não é à toa que a história da
humanidade se revela, nesse sentido, atravessada por inúmeros episódios terríveis
desencadeados por expressões variadas do fundamentalismo. Ainda que muitos
deles não tenham sido claramente denominados dessa maneira, em razão da sua ocorrência
georreferenciada; mas, a leitura dos acontecimentos e o modo como se
processaram não deixam dúvidas a respeito.
Afinal de contas, a saga humana
sobre a Terra é contada, também, a partir das matrizes filosóficas construídas pelas
religiões. Algo que fica bastante evidente, quando se percebe a sua
distribuição geográfica pelo mundo em paralelo com as correntes de expansão e
colonização. Cada uma delas serviu como instrumento de poder dentro de um
cenário controlado por um determinado grupo social.
Isso significa que o fundamentalismo,
embora se sirva do simbólico sagrado e das manifestações da fé no divino, ele
tenta agregar esses valores, princípios e convicções às suas expectativas e
objetivos humanos. O que torna inevitável a impossibilidade de um ajuste pleno
e perfeito entre esses dois lados.
Pois, os interesses do mundo não
são os mesmos interesses do sagrado. Enquanto o primeiro arde na chama do
individualismo, do narcisismo, do egoísmo, o outro defende uma construção
social coletiva, humanitária, empática, por exemplo. Essa realidade impõe,
portanto, uma contaminação nas suas práxis, humanizando em demasia aquilo que
não poderia ser humanizado.
Ora, o sagrado é o sagrado. É puro.
É genuíno. É perfeito. Mas, o ser humano não. Ele erra. Ele falha. Ele se
desajusta na sua existência. Tanto que ele se permite, ao longo da história, se
corromper, mentir, roubar, desrespeitar, atentar contra tudo o que se impuser
como obstáculo aos seus caminhos.
Razão pela qual, vez por outra, a
humanidade se deparar com situações verdadeiramente contraditórias e
inaceitáveis, considerando-se os pilares que sustentam os discursos e
narrativas fundamentalistas, por aí.
Como se a credibilidade e o
respeito construídos a partir da idolatria e da mitificação de certo indivíduos
ruísse subitamente pela força das suas ações desumanizadas, desrespeitosas,
infames, ofensivas. Haja vista o recente caso envolvendo o mais alto líder
espiritual e ex-chefe de Estado do Tibete 2.
Cada episódio que se tem notícia,
então, apesar de todo o desconforto e indignação gerados, se torna mais uma
oportunidade de reflexão e de transformação social. São em circunstâncias
assim, que as pessoas tendem a apurar a sua percepção e a sua consciência em
relação ao nível de sua permissividade, condescendência e/ou irreflexão. Pois é
no balizamento desse limite que se oferece, ou não, ao fundamentalismo, as
prerrogativas para que ele possa avançar nas suas arbitrariedades, abusos,
violências, excessos e injustiças.
Esse é o verdadeiro ponto de
inflexão para compreender que a justiça, tão falada e clamada pela sociedade, não
acontece de fora para dentro. Ela parte da ética e da moral racionalizadas pelo
indivíduo, ou seja, dentro da capacidade intelectual e cognitiva de cada ser
humano, no exercício diário da sua análise, da sua criticidade, da sua
reflexão. Então, somente quando as pessoas se posicionam é que se dá o gatilho
externo da justiça, como um denominador social comum.
No entanto, diante de tantos
focos de fundamentalismo disseminados ao redor do mundo, não é de se espantar
que a justiça encontre cada vez mais resistência, tendo em vista a dificuldade
imposta pelos valores, crenças, convicções e princípios daqueles que não se
colocam aliados a ela. Sozinha, ela não é capaz de alcançar a efetividade de romper com as
banalizações, trivializações ou naturalizações,
em torno de questões fundamentais e cruciais para a convivência e a coexistência
social harmônica e pacífica 3.
Sendo assim, de nada adianta negar, invisibilizar, esconder, desconversar, porque o fundamentalismo não age só às claras, ele age principalmente nas sombras. De modo que todas as vezes em que você se deparar com um episódio de antissemitismo, de intolerância, de preconceito ou de racismo, a violência ali flagrantemente estampada tem sua raiz nele; afinal, “Não é possível discutir racionalmente com alguém que prefere matar-nos a ser convencido por nossos argumentos” (Karl Raimund Popper).
1 Caderno “Mais! ”. O cisma do Ocidente. In:
Folha de São Paulo, Domingo, 7/3/2004. p.8.
2 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/04/11/beijo-em-crianca-e-acusacao-de-machismo-as-polemicas-envolvendo-dalai-lama.ghtml