quarta-feira, 12 de abril de 2023

Fins. Meios. A expansão sutil do fundamentalismo contemporâneo.


Fins. Meios. A expansão sutil do fundamentalismo contemporâneo.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A displicência com que a raça humana tem olhado para questões importantes do seu cotidiano é muito grave. Por trás de toda a efervescência das disputas político-partidárias, que permanecem fraturando as relações sociais no país, o papel do fundamentalismo radical e extremista se dissemina por outros campos não menos importantes. Daí a necessidade de levar em conta as seguintes palavras de Anthony Giddens, ou seja, “Fundamentalistas afirmam: só há um modo de vida válido, e os demais têm de sair da frente” 1.

Durante muito tempo, a raça humana quis acreditar que o fundamentalismo era um traço restrito à religião islâmica. Acontece que o tempo permitiu mostrar e provar como certos grupos sociais são capazes de utilizar das suas bases doutrinárias religiosas como instrumentos de obediência, para a manipulação e o controle do poder em outros campos da vida, tais como economia, política, educação, comportamento.

Assim, o fundamentalismo tem à sua disposição um arcabouço de respostas, de justificativas, de legitimações, para manter a preservação dos seus interesses e status, ao mesmo tempo em que elege figuras representativas de elevado apelo carismático e com potencial capacidade influenciadora.

A própria construção discursiva do fundamentalismo reveste essas pessoas, então, de uma pseudoautoridade tão arraigada que elas se tornam, quase que, blindadas de eventuais desconfianças ou questionamentos. Razão pela qual, mais do que uma liderança, elas passam a repercutir os efeitos da idolatria e da mitificação.

Não é à toa que a história da humanidade se revela, nesse sentido, atravessada por inúmeros episódios terríveis desencadeados por expressões variadas do fundamentalismo. Ainda que muitos deles não tenham sido claramente denominados dessa maneira, em razão da sua ocorrência georreferenciada; mas, a leitura dos acontecimentos e o modo como se processaram não deixam dúvidas a respeito.

Afinal de contas, a saga humana sobre a Terra é contada, também, a partir das matrizes filosóficas construídas pelas religiões. Algo que fica bastante evidente, quando se percebe a sua distribuição geográfica pelo mundo em paralelo com as correntes de expansão e colonização. Cada uma delas serviu como instrumento de poder dentro de um cenário controlado por um determinado grupo social.

Isso significa que o fundamentalismo, embora se sirva do simbólico sagrado e das manifestações da fé no divino, ele tenta agregar esses valores, princípios e convicções às suas expectativas e objetivos humanos. O que torna inevitável a impossibilidade de um ajuste pleno e perfeito entre esses dois lados.

Pois, os interesses do mundo não são os mesmos interesses do sagrado. Enquanto o primeiro arde na chama do individualismo, do narcisismo, do egoísmo, o outro defende uma construção social coletiva, humanitária, empática, por exemplo. Essa realidade impõe, portanto, uma contaminação nas suas práxis, humanizando em demasia aquilo que não poderia ser humanizado.

Ora, o sagrado é o sagrado. É puro. É genuíno. É perfeito. Mas, o ser humano não. Ele erra. Ele falha. Ele se desajusta na sua existência. Tanto que ele se permite, ao longo da história, se corromper, mentir, roubar, desrespeitar, atentar contra tudo o que se impuser como obstáculo aos seus caminhos.

Razão pela qual, vez por outra, a humanidade se deparar com situações verdadeiramente contraditórias e inaceitáveis, considerando-se os pilares que sustentam os discursos e narrativas fundamentalistas, por aí.

Como se a credibilidade e o respeito construídos a partir da idolatria e da mitificação de certo indivíduos ruísse subitamente pela força das suas ações desumanizadas, desrespeitosas, infames, ofensivas. Haja vista o recente caso envolvendo o mais alto líder espiritual e ex-chefe de Estado do Tibete 2.

Cada episódio que se tem notícia, então, apesar de todo o desconforto e indignação gerados, se torna mais uma oportunidade de reflexão e de transformação social. São em circunstâncias assim, que as pessoas tendem a apurar a sua percepção e a sua consciência em relação ao nível de sua permissividade, condescendência e/ou irreflexão. Pois é no balizamento desse limite que se oferece, ou não, ao fundamentalismo, as prerrogativas para que ele possa avançar nas suas arbitrariedades, abusos, violências, excessos e injustiças.

Esse é o verdadeiro ponto de inflexão para compreender que a justiça, tão falada e clamada pela sociedade, não acontece de fora para dentro. Ela parte da ética e da moral racionalizadas pelo indivíduo, ou seja, dentro da capacidade intelectual e cognitiva de cada ser humano, no exercício diário da sua análise, da sua criticidade, da sua reflexão. Então, somente quando as pessoas se posicionam é que se dá o gatilho externo da justiça, como um denominador social comum.   

No entanto, diante de tantos focos de fundamentalismo disseminados ao redor do mundo, não é de se espantar que a justiça encontre cada vez mais resistência, tendo em vista a dificuldade imposta pelos valores, crenças, convicções e princípios daqueles que não se colocam aliados a ela. Sozinha, ela não é capaz  de alcançar a efetividade de romper com as banalizações,  trivializações ou naturalizações, em torno de questões fundamentais e cruciais para a convivência e a coexistência social harmônica e pacífica 3.

Sendo assim, de nada adianta negar, invisibilizar, esconder, desconversar, porque o fundamentalismo não age só às claras, ele age principalmente nas sombras.  De modo que todas as vezes em que você se deparar com um episódio de antissemitismo, de intolerância, de preconceito ou de racismo, a violência ali flagrantemente estampada tem sua raiz nele; afinal, “Não é possível discutir racionalmente com alguém que prefere matar-nos a ser convencido por nossos argumentos” (Karl Raimund Popper)