terça-feira, 11 de abril de 2023

A pseudovalentia dos heróis de papel


A pseudovalentia dos heróis de papel

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A percepção de que há uma relação direta entre a exasperação da violência e as redes sociais tem sido cada vez mais reafirmada, por conta de episódios explícitos de barbárie ocorridos dentro e fora do território nacional. Afinal, nem só de flores e de alegrias se reveste o cenário das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs).

A ideia de um espaço que não se limita pelo tempo, ou pelas imposições naturais da geografia, ou por um franco descompromisso com a realidade factual da vida, abriu precedentes impensados aos parâmetros éticos e morais. Assim, como “Terra de ninguém”, muitos passaram a ver e a lidar com essa novidade. Como se o mundo virtual oportunizasse aos indivíduos a realização de seus desejos e vontades mais secretos e inconfessáveis, em face de uma eventual dificuldade de responsabilização, de culpabilização.

Algo que, portanto, deu vez e voz para qualquer um. De repente, o ser humano passou a ser medido e pesado, segundo a sua participação nas arenas digitais. Sob likes, curtidas e comentários, ele ganha ou não a sua notoriedade no mundo. Ele adquire a sua pseudocredencial de pertencimento, de visibilidade, de poder. O que está em jogo não é a sua credibilidade, ou a sua expertise nesse ou naquele assunto; mas, a sua capacidade de interagir e de chancelar o pensamento de milhares de outros que não dispõem da mesma acessibilidade e espaço midiático.

E é aí que reside o perigo. Para o bem ou para o mal, a fragilidade discursiva e comunicativa, que incide nesse movimento, abre um flanco para as alienações e as doutrinações dentro de uma sociedade cada vez mais superficial e menos afeita à análise e à reflexão. Basta um piscar de olhos para levar milhares de pessoas a se integrarem ao efeito manada do cotidiano. Tudo depende do nível de simpatia e de adesão que o indivíduo consegue conquistar e extrair da sua legião de seguidores virtuais.

Não é à toa que tantos notórios venham pegando carona nesse movimento para amplificar a sua presença. Artistas, desportistas, políticos, profissionais liberais, enfim. Pena que, até mesmo, entre eles reside a despreocupação ética e moral dos conteúdos apresentados. Como se não houvesse quaisquer desconfortos ou constrangimentos em relação à verborragia presente na sociedade contemporânea.

Falam pelos cotovelos. Propagam bobagens, insultos, violências, preconceitos, com uma naturalidade espantosa. Depois, quando são pegos na flagrância de seus delitos, tentam se desculpar, se justificar, se redimir, de algum modo. Como se isso fosse possível! Só que não. O que falam e/ou fazem não passa de uma imprevidente revelação do lado obscuro de si mesmos. Deformidades da alma que, de repente, se sentem confortáveis e amparadas pela legitimidade social oferecida por uns e outros.

Acontece que tudo isso tem sim, repercussões, desdobramentos, consequências, inimagináveis. Ora, as fronteiras do mundo virtual são muito mais flexíveis do que muitos creem. Elas atingem uma diversidade e uma pluralidade social imensa; sobretudo, no que diz respeito à idade. É sob as atuais e futuras gerações que esse impacto tende a ser ainda mais devastador, dada a imersão que elas têm no mundo tecnológico.

Por isso, não há razão para se tentar subverter a lógica dos acontecimentos, apelando para contemporizações que só fazem fomentar a legitimação da desordem e do caos social 1. Criando uma pseudoideia de superioridade entre os indivíduos, a tal ponto de que não precisam se submeter às regras sociais vigentes.

Vejam que a própria doutrina jurídica traz a figura do mentor intelectual, ou seja, aquele que inspira, estimula, cria ou orienta no campo das ideias, ações, projetos ou realizações delituosas. O que prova, de maneira cabal, que por trás de gestos e palavras pode existir intenções de prejuízo coletivo inestimáveis.

Sobretudo, considerando, como já disse anteriormente, uma fragilidade discursiva e comunicativa, oriunda de uma intensa verborragia contemporânea, que compromete visivelmente o balizamento ético e moral dos indivíduos. Aliás, é importante ressaltar também que alguns não tem sequer preparo cognitivo e intelectual suficiente para tecer considerações a respeito das publicações que chegam ao seu conhecimento, tornando-se alvos fáceis das paixões mundanas e seus modismos.

Só para constar, antes de finalizar essa breve reflexão, acabo de ler a seguinte notícia: “Ataque a colégio de Santa Tereza de Goiás deixa 2 alunos e 1 professora feridos, diz PM” 2. Como escreveu o filósofo Bertrand Russell, “O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certezas...”. É por essas e por outras que “Não devemos procurar heróis, devemos procurar boas ideias” (Noam Chomsky).