sexta-feira, 7 de abril de 2023

Cristo, nós e o calvário


Cristo, nós e o calvário

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Todo dia é dia de reflexão. Mas, quando se tem um marco temporal definido no calendário, a força do simbólico age oportunizando circunstâncias, objetivas e subjetivas, bem mais claras para o processo. No caso específico de hoje, o tempo diz algo muito além da religiosidade; mas, que alcança uma discussão profundamente existencial. Afinal de contas, a dor do Cristo atravessa o tempo e os espaços de milhões de indivíduos, na medida da perspectiva da sua condição humana.

Como qualquer vivente desse mundo, a dor que lhe afligiu não se constrangeu diante de nenhuma regalia, de nenhum privilégio, de nenhuma notoriedade. Foi dor que pode sim, atingir qualquer ser humano de carne e osso, em qualquer esquina da vida. Dor que passa por cima de crenças, de valores, de princípios, de comportamentos, ainda que pautados no justo e no correto, para reavivar no máximo do seu extremo a fragilidade e a vulnerabilidade humana.

Portanto, o que chama a atenção, a cada nova reafirmação do calvário de Cristo, é a desconstrução do protagonismo simbólico Dele. Simplesmente, porque aquele conjunto de acontecimentos brutais e perversos, que ocorreram há mais de 2000 anos, permaneceu sendo reproduzido sob diferentes formas e conteúdos, na personificação de novos indivíduos.

A dor do Cristo enquanto ensinamento, enquanto espelho da expiação humana, provou que na essência dos seres humanos a empatia não é, de fato, um traço genuíno. Do mesmo modo que a prática da alteridade, ou seja, colocar-se no lugar do outro, entender suas inquietudes, pensar no seu sofrimento, com o máximo de respeito e de responsabilidade, também, não é regra geral. Ainda que sejamos seres sociais, coletivos, respira e transpira entre nós um senso individualista latente.

E aí se descobre porque foi tão fácil construir o cenário conturbado da contemporaneidade. O individualismo, que sempre esteve dentro de cada um, teve tempo mais do que suficiente para emergir e se revelar. Seja pela expressão do fastio, da frustração, da insatisfação, da intolerância, da impaciência, da animosidade ou, simplesmente, da violência. Como se a dor pudesse ser transferida para ser sentida, de maneira integral ou compartilhada, pelo outro.

Entenda, o fato de cruzes de madeira terem sido abolidas, isso não significou que a dor não permaneceu sendo carregada nos ombros sob a fúria de açoites e chibatas (i)materiais. Em maior ou em menor escala, ainda que a dor seja comum a todos os viventes, não se pode perder de vista o fato de que ela, não raras as vezes, cumpra um papel diferenciado no sistema social, que opera com a ideia de que alguns podem sofrer mais do que outros.

Você já deve ter ouvido, por aí, a seguinte frase: “Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta” (Carl Gustav Jüng). É nesse sentido que a história de Cristo figura como um espelho para o exercício de autoconhecimento. Como diriam os hindus, “o Deus que habita no meu coração, saúda o Deus que habita no seu coração”. Afinal, a crueza da sua dor humana é tão tocante e intensa que é capaz de nos impulsionar a um reposicionamento no mais profundo da nossa identidade existencial, nos fazendo perceber uma reciprocidade verdadeira entre nós e o Sagrado.  

Assim, nesse mexer e remexer com tudo aquilo que nos constitui no campo das nossas dicotomias humanas; mas, sobretudo, das nossas imperfeições e incompletudes, vamos encontrando alento, sentido para a vida. Em tempos tão difíceis e conturbados, penso que se permitir tal reflexão é fundamental.

À beira de um precipício de vaidades, de inutilidades, de absurdos, pensar sobre essa dor que nos consome, a torto e a direito, sob diferentes formas, em diferentes contextos, é a única possibilidade real que se tem de resgatar um mínimo que seja da integridade humana. Entender-se exatamente como é, sem alegorias, sem adereços, sem artifícios quaisquer, buscando uma outra perspectiva para ressignificar o peso da dor, que nos dilacera e consome sem piedade.