Cristo,
nós e o calvário
Por
Alessandra Leles Rocha
Todo dia é dia de reflexão. Mas,
quando se tem um marco temporal definido no calendário, a força do simbólico age
oportunizando circunstâncias, objetivas e subjetivas, bem mais claras para o
processo. No caso específico de hoje, o tempo diz algo muito além da
religiosidade; mas, que alcança uma discussão profundamente existencial. Afinal
de contas, a dor do Cristo atravessa o tempo e os espaços de milhões de
indivíduos, na medida da perspectiva da sua condição humana.
Como qualquer vivente desse
mundo, a dor que lhe afligiu não se constrangeu diante de nenhuma regalia, de
nenhum privilégio, de nenhuma notoriedade. Foi dor que pode sim, atingir
qualquer ser humano de carne e osso, em qualquer esquina da vida. Dor que passa
por cima de crenças, de valores, de princípios, de comportamentos, ainda que pautados
no justo e no correto, para reavivar no máximo do seu extremo a fragilidade e a
vulnerabilidade humana.
Portanto, o que chama a atenção, a
cada nova reafirmação do calvário de Cristo, é a desconstrução do protagonismo
simbólico Dele. Simplesmente, porque aquele conjunto de acontecimentos brutais
e perversos, que ocorreram há mais de 2000 anos, permaneceu sendo reproduzido
sob diferentes formas e conteúdos, na personificação de novos indivíduos.
A dor do Cristo enquanto ensinamento,
enquanto espelho da expiação humana, provou que na essência dos seres humanos a
empatia não é, de fato, um traço genuíno. Do mesmo modo que a prática da alteridade,
ou seja, colocar-se no lugar do outro, entender suas inquietudes, pensar no seu
sofrimento, com o máximo de respeito e de responsabilidade, também, não é regra
geral. Ainda que sejamos seres sociais, coletivos, respira e transpira entre
nós um senso individualista latente.
E aí se descobre porque foi tão
fácil construir o cenário conturbado da contemporaneidade. O individualismo,
que sempre esteve dentro de cada um, teve tempo mais do que suficiente para
emergir e se revelar. Seja pela expressão do fastio, da frustração, da insatisfação,
da intolerância, da impaciência, da animosidade ou, simplesmente, da violência.
Como se a dor pudesse ser transferida para ser sentida, de maneira integral ou
compartilhada, pelo outro.
Entenda, o fato de cruzes de
madeira terem sido abolidas, isso não significou que a dor não permaneceu sendo
carregada nos ombros sob a fúria de açoites e chibatas (i)materiais. Em maior
ou em menor escala, ainda que a dor seja comum a todos os viventes, não se pode
perder de vista o fato de que ela, não raras as vezes, cumpra um papel
diferenciado no sistema social, que opera com a ideia de que alguns podem
sofrer mais do que outros.
Você já deve ter ouvido, por aí,
a seguinte frase: “Quem olha para fora
sonha, quem olha para dentro desperta” (Carl Gustav Jüng). É nesse sentido
que a história de Cristo figura como um espelho para o exercício de
autoconhecimento. Como diriam os hindus, “o
Deus que habita no meu coração, saúda o Deus que habita no seu coração”.
Afinal, a crueza da sua dor humana é tão tocante e intensa que é capaz de nos impulsionar
a um reposicionamento no mais profundo da nossa identidade existencial, nos
fazendo perceber uma reciprocidade verdadeira entre nós e o Sagrado.
Assim, nesse mexer e remexer com
tudo aquilo que nos constitui no campo das nossas dicotomias humanas; mas,
sobretudo, das nossas imperfeições e incompletudes, vamos encontrando alento,
sentido para a vida. Em tempos tão difíceis e conturbados, penso que se
permitir tal reflexão é fundamental.
À beira de um precipício de vaidades, de inutilidades, de absurdos, pensar sobre essa dor que nos consome, a torto e a direito, sob diferentes formas, em diferentes contextos, é a única possibilidade real que se tem de resgatar um mínimo que seja da integridade humana. Entender-se exatamente como é, sem alegorias, sem adereços, sem artifícios quaisquer, buscando uma outra perspectiva para ressignificar o peso da dor, que nos dilacera e consome sem piedade.