quinta-feira, 6 de abril de 2023

O preço alto da permissividade humana


O preço alto da permissividade humana

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não sei se para você, caro (a) leitor (a); mas, para mim, causa muita estranheza a perplexidade das pessoas diante dos episódios de extrema barbárie, tendo em vista a anuência coletiva em relação a objetificação humana. Enredados continuamente pelas tramas do ter, não faz sentido, então, padecer pelos impactos da brutalidade sobre o ser, não é mesmo?

Acontece que a dissimulação é fugaz! Apesar de todos os giros e rodopios do mundo, de todos os apelos e persuasões materialistas, a humanidade que habita o mais profundo do nosso ser ainda existe e resiste. Mesmo que minimamente, ela pulsa. Emoções e sentimentos têm raízes demasiadamente profundas, contrariando as expectativas de muita gente por aí.

Quando menos se espera, eis que o choque de realidade nos acorda do transe social contemporâneo. Cada beira de precipício nos aproxima de uma revelação mais intensa da finitude existencial. Pois é, somos mortais! Falíveis! Perecíveis! E não há nada, em termos capitais, que transforme essa realidade, segundo nossos quereres e vontades mais absurdos.

Infelizmente, a humanidade trocou seus valores, crenças, princípios e convicções pela permissividade ampla e irrestrita, a qual chamou de liberdade. Livre para ser, fazer e acontecer! Sem pensar no hoje, e muito menos, no amanhã. Sem pensar no coletivo, apenas em si mesmo. Fazendo disso um protocolo velado de aceitação e pertencimento social.

E dentro dessa pseudológica, a permissividade ganhou asas imensas e passou a figurar desde os contextos mais simples até os mais complexos das relações cotidianas. Afinal, ninguém se sente confortável o bastante para contrariar o efeito manada por ela produzido. Há sempre uma ponta de dúvida se, em alguma circunstância da vida, a permissividade não pode ser útil; assim, ninguém ousa arriscar contradizê-la.

Diante disso, de grão em grão, ela foi se espalhando, se disseminando, contaminando as estruturas sociais. Vai dizer que não se deu conta de que a banalização, a trivialização ou a naturalização de milhões de coisas, especialmente as mais indigestas e terríveis no mundo, é reflexo da permissividade? Inclusive, há de se considerar que nessa permissividade toda reside uma arbitrariedade tendenciosa e manipuladora, porque esbarra em todo um arcabouço de poderes e pseudopoderes exercidos por aí.

Isso significa, por exemplo, que por trás do “faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço”, cada vez mais comum nas relações humanas contemporâneas, reside uma permissividade de se viver sob o manto da hipocrisia, ao mesmo tempo em que se reafirma as linhas hierárquicas de poder, no que diz respeito a uma desigualdade de direitos e deveres. Ora, ansiosos por uma legitimidade discursiva para seus anseios e expectativas sociais, milhões de pessoas não se preocupam mais com a sinceridade ou a verdade do outro, o qual, na maioria das vezes, está em busca, única e exclusivamente, da capitalização dos seus interesses próprios e a manutenção das regalias, privilégios e espaços sociais.  

Quem já leu o poema EU, ETIQUETA 1, de Carlos Drummond de Andrade, sabe o que estou dizendo. Independentemente do fato de essa permissividade ter sido construída de maneira voluntária ou não, a verdade é que a promoção dessa desumanização pela captura da consciência e de todos os sentidos das pessoas, por meio dos mecanismos reais e virtuais dessa tal sociedade de consumo, tem anulado e homogeneizado o comportamento humano, com vias ao pior. Afinal, os indivíduos estão cada vez mais perdidos de si mesmos, entregues às futilidades, convenções, aparências e ostentações, até que tudo fique tão exaustivo e degradante que acabe se convertendo em violências, em explosões de fúria e de irracionalidade desmedidas.

Portanto, geramos uma permissividade tácita. Ninguém se compromete com ninguém. Ninguém se responsabiliza por nada e nem ninguém.  Ninguém se preocupa com o bem-estar de ninguém. Enfim ... Algo que me faz lembrar de uma citação atribuída à Cecília Meireles, em que diz “É preciso amar as pessoas e usar as coisas, e não amar as coisas e usar as pessoas”. Tais palavras são sim, um alerta bastante oportuno. Porque olhando para o efeito rolo compressor imposto pela contemporaneidade, coisas e pessoas foram reduzidas literalmente ao mesmo patamar de condição objetificada para um fim. Tudo repleto de frieza, insensibilidade e falta de apreço. De modo que não tardará o dia em que, de fato, diremos “[...] Meu nome novo é Coisa. / Eu sou a Coisa, coisamente” 2


1 ANDRADE, C. D. Obra poética. v.4-6. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989.