O preço alto da permissividade
humana
Por Alessandra Leles Rocha
Não sei se para você, caro (a) leitor (a); mas,
para mim, causa muita estranheza a perplexidade das pessoas diante dos episódios
de extrema barbárie, tendo em vista a anuência coletiva em relação a objetificação
humana. Enredados continuamente pelas tramas do ter, não faz sentido, então,
padecer pelos impactos da brutalidade sobre o ser, não é mesmo?
Acontece que a dissimulação é fugaz! Apesar de
todos os giros e rodopios do mundo, de todos os apelos e persuasões materialistas,
a humanidade que habita o mais profundo do nosso ser ainda existe e resiste. Mesmo
que minimamente, ela pulsa. Emoções e sentimentos têm raízes demasiadamente profundas,
contrariando as expectativas de muita gente por aí.
Quando menos se espera, eis que o choque de
realidade nos acorda do transe social contemporâneo. Cada beira de precipício nos
aproxima de uma revelação mais intensa da finitude existencial. Pois é, somos
mortais! Falíveis! Perecíveis! E não há nada, em termos capitais, que
transforme essa realidade, segundo nossos quereres e vontades mais absurdos.
Infelizmente, a humanidade trocou seus valores, crenças,
princípios e convicções pela permissividade ampla e irrestrita, a qual chamou
de liberdade. Livre para ser, fazer e acontecer! Sem pensar no hoje, e muito
menos, no amanhã. Sem pensar no coletivo, apenas em si mesmo. Fazendo disso um
protocolo velado de aceitação e pertencimento social.
E dentro dessa pseudológica, a permissividade
ganhou asas imensas e passou a figurar desde os contextos mais simples até os
mais complexos das relações cotidianas. Afinal, ninguém se sente confortável o
bastante para contrariar o efeito manada por ela produzido. Há sempre uma ponta
de dúvida se, em alguma circunstância da vida, a permissividade não pode ser
útil; assim, ninguém ousa arriscar contradizê-la.
Diante disso, de grão em grão, ela foi se
espalhando, se disseminando, contaminando as estruturas sociais. Vai dizer que
não se deu conta de que a banalização, a trivialização ou a naturalização de
milhões de coisas, especialmente as mais indigestas e terríveis no mundo, é
reflexo da permissividade? Inclusive, há de se considerar que nessa
permissividade toda reside uma arbitrariedade tendenciosa e manipuladora, porque
esbarra em todo um arcabouço de poderes e pseudopoderes exercidos por aí.
Isso significa, por exemplo, que por trás do “faça o que eu falo, mas não faça o que eu
faço”, cada vez mais comum nas relações humanas contemporâneas, reside uma
permissividade de se viver sob o manto da hipocrisia, ao mesmo tempo em que se reafirma
as linhas hierárquicas de poder, no que diz respeito a uma desigualdade de direitos
e deveres. Ora, ansiosos por uma legitimidade discursiva para seus anseios e expectativas
sociais, milhões de pessoas não se preocupam mais com a sinceridade ou a
verdade do outro, o qual, na maioria das vezes, está em busca, única e
exclusivamente, da capitalização dos seus interesses próprios e a manutenção
das regalias, privilégios e espaços sociais.
Quem já leu o poema EU, ETIQUETA 1, de Carlos Drummond de Andrade, sabe o
que estou dizendo. Independentemente do fato de essa permissividade ter sido construída
de maneira voluntária ou não, a verdade é que a promoção dessa desumanização
pela captura da consciência e de todos os sentidos das pessoas, por meio dos mecanismos
reais e virtuais dessa tal sociedade de consumo, tem anulado e homogeneizado o
comportamento humano, com vias ao pior. Afinal, os indivíduos estão cada vez
mais perdidos de si mesmos, entregues às futilidades, convenções, aparências e
ostentações, até que tudo fique tão exaustivo e degradante que acabe se
convertendo em violências, em explosões de fúria e de irracionalidade desmedidas.
Portanto, geramos uma permissividade tácita. Ninguém se compromete com ninguém. Ninguém se responsabiliza por nada e nem ninguém. Ninguém se preocupa com o bem-estar de ninguém. Enfim ... Algo que me faz lembrar de uma citação atribuída à Cecília Meireles, em que diz “É preciso amar as pessoas e usar as coisas, e não amar as coisas e usar as pessoas”. Tais palavras são sim, um alerta bastante oportuno. Porque olhando para o efeito rolo compressor imposto pela contemporaneidade, coisas e pessoas foram reduzidas literalmente ao mesmo patamar de condição objetificada para um fim. Tudo repleto de frieza, insensibilidade e falta de apreço. De modo que não tardará o dia em que, de fato, diremos “[...] Meu nome novo é Coisa. / Eu sou a Coisa, coisamente” 2.
1 ANDRADE, C.
D. Obra poética. v.4-6. Lisboa:
Publicações Europa-América, 1989.