É
preciso virar a página
Por
Alessandra Leles Rocha
Uma passada de olhos pelos
veículos de comunicação e informação para entender que muitos dos assuntos que
desconfortam a sociedade brasileira, no dia a dia contemporâneo, orbitam o histórico
ranço colonial que persiste no país. Crise Yanomami 1.
Crise na agricultura 2.
Trabalho análogo à escravidão 3.
Violência contra a mulher 4. São só
alguns dos exemplos.
Afinal, o processo de
reconstrução que passa o país não diz respeito apenas aos parâmetros logísticos,
burocráticos, institucionais; mas, de uma profunda desconstrução ideológica
impressa pela direita e seus matizes (mais ou menos radicais), ao longo do
trajeto histórico nacional. Uma tarefa, então, que está longe de ser simples ou
fácil.
Primeiro, porque a direita se
considera sucessora legítima de um padrão de governança instituído pela metrópole
portuguesa, durante a colonização brasileira. Inclusive, penso que vem dessa percepção,
um tanto quanto equivocada, a recorrente confusão entre a noção de público e
privado, na medida em que as pessoas se consideram donas dos espaços de poder,
cabendo aos rumos do país seguir de acordo com suas vontades e interesses.
Segundo, porque não há um
movimento efetivamente consistente de ruptura com determinadas crenças,
valores, princípios e convicções, presentes no inconsciente coletivo da
sociedade brasileira. Os fatos emergem, impactam, desconfortam; mas, não o
suficiente para impulsionar uma reflexão e ação mais profundas e contundentes. Razão
pela qual, a perplexidade de ocasião acaba se tornando uma constante no perfil
brasileiro.
E assim, as mazelas vão se
aprofundando cada vez mais, com o passar do tempo, tornando possíveis mitigações
e soluções um desafio inglório. O caso da crise Yanomami é um exemplo clássico disso.
O recente escândalo de abandono, de negligência, de desassistência pública a
esse contingente indígena; bem como, a tantos outros, não será superado tão
rapidamente como é necessário.
Isso porque se trata de décadas expostos
à mais absoluta indignidade presente na reprodução de um modus operandi
historicamente conhecido, ou seja, o Colonial. De modo que é flagrante o desequilíbrio que se
impõe entre a sobrevivência vital desses indivíduos e o emaranhado de problemas
sociopolíticos e econômicos a serem superados na região onde vivem.
E enquanto se pensa a respeito,
eis que a crise na agricultura acende uma outra luz de alerta. Não só pelos
impactos ambientais que o setor contribuiu para acirrar nos últimos anos, com o
aumento desenfreado do desmatamento, dos incêndios criminosos, do consumo
excessivo dos recursos hídricos para irrigação, do uso indiscriminado de agrotóxicos,
do assoreamento dos rios. Os quais acabaram fortalecendo os eventos extremos do
clima 5 e trouxeram perdas e reduções
acentuadas na produção de alimentos, favorecendo ao desequilíbrio da lei da
oferta e do procura que tanto impulsiona a elevação dos preços e a inflação no país.
Acontece que a agricultura
brasileira, apesar de toda a inovação científica e tecnológica contemporânea,
se fundamenta ainda nas bases dos grandes latifúndios de exportação, voltados para
a produção de commodities agrícolas, ou seja, produtos primários comercializados
in natura. Soja, café, milho, trigo,
carne, leite e derivados, são alguns exemplos. De modo que o Brasil não produz
para satisfazer as suas demandas internas; mas, as demandas de mercado da
escala global. O que implica na recorrente insuficiência de certos produtos
para alimentação da população e, por essa razão, o seu encarecimento para
aquisição, afetando diretamente o poder de compra do cidadão.
Sem contar que no cenário do
agronegócio, também, se vê refletida as persistentes práxis do trabalho análogo
à escravidão. É nesse setor que são registrados anualmente o maior número de
resgates de trabalhadores nessa situação laboral. Infelizmente, a riqueza
advinda da produção de alimentos no país ainda se mantém salpicada pelo
sofrimento, pela indignidade, pela servidão de inúmeros brasileiros e
estrangeiros, atraídos para compor as legiões de mão de obra nos grandes e
médios latifúndios.
E que passa despercebido ao longo
da fragmentação e da dissociação do entendimento das pessoas, em relação à dinâmica
natural de funcionamento das cadeias produtivas existentes no país. Todos
querem o produto na mesa. Todos querem um bom preço. Mas, ninguém se pergunta,
por exemplo, de onde vem, como foi produzido, quem produziu, quanto custa
produzir etc.
E aí, depois de todos esses
traços bem marcados do velho sistema colonial, não poderia deixar de aparecer a
violência contra a mulher. Afinal, o Brasil da ex-colônia de exploração, do latifúndio,
do ideário escravocrata, é também o país do patriarcado, ou seja, que defende,
com unhas e dentes, um sistema social fundamentado cultural, estrutural e relacional
nos direitos, privilégios e regalias do homem. Principalmente, o homem branco,
heterossexual e abastado.
De modo que a mulher brasileira,
em pleno século XXI, ainda é objetificada e, amiúde, ameaçada pela misoginia,
ou seja, pelo ódio ou preconceito contra pessoas do sexo feminino,
independentemente de raça, credo, escolaridade, idade ou status social.
Não é à toa que “Mais de 1.400 feminicídios foram
registrados no Brasil em 2022, o que representa um recorde de uma mulher morta
a cada seis horas por questões ligadas ao gênero” 6.
O que significa que “o homicídio
praticado contra a mulher por razões da condição do gênero feminino e em decorrência
da violência doméstica e familiar, ou por menosprezo ou discriminação à condição
da mulher” 7 está se intensificando à
realidade brasileira.
Pois é, já passou da hora, do Brasil
rever os seus conceitos! Não há como continuar sobrepondo o país do século XVI
sobre o país do século XXI. Não encaixa! Não adere mais! Esse movimento retrógrado,
involuído, é demasiadamente constrangedor e obstaculizante a quaisquer
perspectivas e pretensões de progresso e de desenvolvimento humano e econômico,
por aqui.
Urge demonstrar que os velhos
erros e equívocos históricos foram devidamente superados e banidos. Que o Brasil
contemporâneo aprendeu as lições e busca ser um expoente, além dos discursos e
das narrativas, tornando-se um país de vanguarda, à frente do seu tempo. É
preciso virar a página.
1 https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2023/03/11/ainda-sem-atendimento-medico-e-alimentos-na-terra-yanomami-liderancas-relatam-que-situacao-e-para-entristecer.ghtml
2 https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2023/03/11/por-que-a-producao-de-arroz-deve-cair-ao-menor-nivel-em-25-anos.ghtml
3 https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2023/03/11/pretas-e-pardas-do-norte-e-do-nordeste-dados-ineditos-tracam-perfil-de-mulheres-submetidas-a-escravidao-contemporanea.ghtml
4 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/03/11/coach-thiago-schutz-e-ouvido-pela-policia-de-sp-apos-ser-acusado-de-ameacar-livia-la-gatto-e-bruna-volpi-afirma-delegado.ghtml
5 Todos
aqueles fenômenos meteorológicos e climatológicos em grande proporção que
afetam uma determinada região.