domingo, 26 de fevereiro de 2023

Vida: realidade e perspectivas


Vida: realidade e perspectivas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Observando os recentes acontecimentos trágicos, no Brasil e no mundo, fico me perguntando em que ponto exato da história a vida humana perdeu essencialmente o seu valor. A sensação que tenho é de que a vida passou a ser mantida em prol da satisfação de bens, produtos e serviços, e não de si mesma. Talvez, por isso, exista quem sequer perceba o impacto das perdas.

Pois é, quando a vida se torna objetificada penso que chegamos ao fim da linha, tudo perde o sentido. É a destruição das emoções, dos sentimentos, dos valores, dos princípios, das crenças. Ora, a vida resumida a um corpo que anda, que fala, que come, ... não pode ser chamada de vida. A essência do viver está essencialmente fundamentada na subjetividade, na imaterialidade.  

Veja, por exemplo, como é absurdo perceber como a vida está sempre no fim da fila das prioridades contemporâneas. A dinâmica do cotidiano orbita um universo de materialidades que precisa ser atendida, a tempo e a hora, para gerar mais riqueza e mais de si mesma. De modo que não importa mais se o sono não tem qualidade, se a alimentação não tem qualidade e quantidade e é realizada às pressas e irregularmente, se não há espaço na agenda para descanso ou para atividades físicas e de lazer, ... O eu não é prioridade. Talvez, nem exista mais.

E aí, de repente, a gente se depara com uma manchete assim, “A intolerável pobreza infantil – Estudo traça panorama desolador sobre as vulnerabilidades de milhoes de crianças no Brasil. Há algo de muito errado quando um país descuida desse jeito de suas gerações” 1. Esse é o tipo de prova cabal para juntar às minhas reflexões. Se nem mesmo as crianças conseguem mais extrair alguma gota de empatia, de fraternidade, de altruísmo dos seres humanos é sinal de que a situação está efetivamente consumada na sua deterioração.

A impressão que se tem é de que a espécie não reconhece mais a si mesma, ao que isso significa. Então, ela não se importa em defender a sua existência, a sua sobrevivência, a sua dignidade. Seja em que momento for da jornada, ou seja, não importa a idade, o gênero, o credo, a nacionalidade, a escolaridade, nada. E aí, quando alguns tentam resistir a essa nova ordem global de objetificação humana, nem sempre alcançam êxito 2.

Pode-se dizer, sem medo de errar, que a vida no sentido pleno da existência foi sim, substituída pelo comportamento funcional e operacional da materialidade. Não se vive em função do Ser; mas, em função do Ter, ou seja, tudo o que foi estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)3, por exemplo, tem deixado de ter o significado com que foi escrito.

Infelizmente, se nasce cada vez menos livre e igual em dignidade e direitos. Também, não se age mais com espírito de fraternidade, de modo que o preconceito e a intolerância correm soltos por aí. Não há segurança; mas, há servidão, tortura, tratamento desumano e degradante. Não há pleno exercício cidadão. Enfim. Mas, esclareço que não é por conta estritamente das ações cometidas pelo próprio ser humano contra seus pares; mas, em grande parte, pela submissão instituída e legitimada pela tecnologização da vida.

Engraçado que bem antes de toda a efervescência contemporânea atual, Antoine de Saint-Exupéry já se incomodava com essa questão, quando perguntou “Se a vida não tem preço, nós comportamo-nos sempre como se alguma coisa ultrapassasse, em valor, a vida humana... Mas o quê? ”. E, talvez, a melhor resposta tenha sido deixada por Immanuel Kant, quando manifestou que “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade”.  Diante disso, pensemos.