sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

É ... A desigualdade desumaniza.


É ... A desigualdade desumaniza.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Atenção a essas duas manchetes: “Em cinco anos, São Sebastião deixou de construir 500 moradias populares – Oposição feita por moradores de condomínios de luxo e hotéis fez prefeitura suspender 220 novas casas em Maresias” 1 e “Receita apreende 14,8 toneladas de seringas, bolsas de sangue e lixo hospitalar de Portugal no Porto de Suape – Carga foi apreendida na sexta-feira (17). Segundo a Anvisa, material pode pôr em risco a saúde” 2.

Duas notícias, a princípio, sem qualquer relação entre si. Mas, basta um bocado de interesse em olhar além das linhas, para ver pulsar o ranço colonial com toda a sua fúria, em plena contemporaneidade. Sim, porque o discurso colonialista, que vigorou entre os séculos XV e XIX, permaneceu reverberando o pior da sua ideologia, graças à consolidação do espectro político da direita, a partir da formação da elite burguesa no mundo.

Até que, em pleno século XXI, somos premiados com exibições explícitas de uma quase idolatria à desigualdade. Esse é o ponto que une as duas notícias; embora, a sua análise transite por uma reflexão mais particularizada. Enquanto, na primeira, transborda o desconforto das elites em coexistir ou coabitar com as camadas menos privilegiadas da sociedade, demarcando uma fronteira simbólica de apartheid econômico, na busca de manter ativo e altivo o imobilismo social naquela dada região; na outra, o que se percebe é a manutenção histórica do Eurocentrismo que legitima o desrespeito em relação às sociedades que foram colonizadas.  

Fica patenteado, então, que por mais transformações, evoluções e revoluções tenham acontecido no mundo, até aqui, o inconsciente coletivo global de uma parte significativa da humanidade permanece arraigado, de maneira persistente, a certos valores, princípios, crenças e convicções. De modo que, vez por outra, são traídas pelo afloramento da sua percepção durante a dinâmica social. Daqui e dali suas falas, gestos, comportamentos, e até mesmo silêncios, retumbam o que realmente permeia os seus pensamentos, a sua alma. Ainda que não seja pela manifestação explícita da violência física; nem, por isso, deixa de ser violência perversa e cruel. Afinal, a raça humana já teve tempo suficiente na sua história civilizatória para romper definitivamente com essa dicotomia que aparta os seres humanos entre superiores e inferiores.  

No entanto, é curioso como essa visão se instala dentro e fora das nossas fronteiras. Enquanto, internamente, o Brasil tenta apagar da memória o seu longo e árduo processo como ex-colônia de exploração, reproduzindo a discriminação, a violência, a humilhação, a apropriação indébita material e moral, sobre seus compatriotas pertencentes às camadas menos privilegiadas, lá fora há quem faça o mesmo em relação a ele. Como se as páginas da história permanecessem paradas no tempo, não tivessem sido viradas pelo movimento evolutivo dos acontecimentos e, portanto, o Brasil permanecesse inferior, insignificante, desimportante, para merecer qualquer respeito.

De repente, esse tipo de situação nos traz a clareza necessária para entender como a desigualdade consegue ultrapassar os limites das relações econômicas, políticas, ideológicas, sociais, culturais, para simplesmente reafirmar o pseudopoder da superioridade humana. Com base em toda uma fragilidade ética e moral presente em certos indivíduos, essa dicotomia entre superiores e inferiores se estabelece legitimada pela naturalização ou trivialização de certas relações humanas. De modo que o senso coletivo de humanidade se perde diante do narcísico individualismo.

Como diz a canção, “[...]Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto / Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto / É que Narciso acha feio o que não é espelho [...]” 3. E na contemporaneidade é assim. Todo mundo quer o belo, quer ser livre, quer escolher, quer ver satisfeitas, plena e absolutamente, todas as vontades; sobretudo, aquelas pelas quais se pode pagar. Então, se eu compro o lugar mais bonito, eu escolho quem pode viver lá ou não. Nenhum argumento, por mais forte ou humanitário que seja, abala a minha decisão.  Se eu pago para me desfazer do meu lixo, dessa ou daquela maneira, não importam as leis, as regras, o planeta, o meio ambiente, ou os outros. O meu poder capital sugere que eu estou no meu direito de fazê-lo.

Portanto, é sobre essa distorção que é fundamental refletir, ou seja, quando o ser humano se aproxima do ápice do materialismo, quando ele se coloca na própria condição de ser objetificado. Sim, porque “Apesar da vida humana não ter preço, agimos sempre como se certas coisas superassem o valor da vida humana” (Antoine de Saint-Exupéry).  Talvez, por isso, é que Cecília Meireles escreveu “É preciso amar as pessoas e usar as coisas e não amar as coisas e usar as pessoas”. Mas, para isso, se torna fundamental compreender que “A principal tarefa da educação moderna não é somente alfabetizar, mas humanizar criaturas” (Cecília Meireles).