Cegos...
Por
Alessandra Leles Rocha
“PM
flagra turistas indo para o litoral norte e pede que ninguém vá para a região” 1. Bem, uma manchete assim, só reflete a
que ponto a sociedade contemporânea chegou em termos de individualismo.
Depois da catástrofe climática
que se abateu nessa área do estado de São Paulo, era de se esperar que a
população tivesse a lucidez e o bom senso de se manter distante para não
agravar ainda mais a situação de apoio e salvamento para aqueles que ficaram
ilhados nos locais atingidos.
A situação caótica vem sendo reportada
pelos veículos de informação e comunicação ininterruptamente, desde o ocorrido.
Então, não é por falta de imagens, de relatos, de boletins da defesa civil e
demais órgãos institucionais, esclarecendo toda a situação em curso. Assim, os
paulistas sabem, os brasileiros sabem, o mundo sabe. Ou pelo menos deveriam.
Entretanto, mais uma vez, o que
se vê, da parte de alguns cidadãos, é o negacionismo gritando em alto e bom tom
que não pretende se curvar à prudência, à sensatez ou à razoabilidade. Mesmo diante
das atuais circunstâncias. A velha história do “eu quero”, “eu posso”, “eu decido”, “eu escolho”, como se o
individualismo fosse a salvaguarda contra qualquer desestabilidade em relação a
possíveis regalias e privilégios dentro do coletivo humano.
Para quem leu a obra Ensaio Sobre
a Cegueira (1995), de José Saramago, talvez se lembre das seguintes palavras, “Estamos a destruir o planeta e o egoísmo de
cada geração não se preocupa em perguntar como é que vão viver os que virão
depois. A única coisa que importa é o triunfo do agora. É a isto que eu chamo a
cegueira da razão”.
E por que motivo me lembrei delas,
agora? Porque não soou uníssona as indagações que dissecariam camada por camada
da mais recente catástrofe natural brasileira. De modo que ela permanece
demarcada pelas reticências da possibilidade de vir a se repetir a qualquer
momento, presente ou futuro. Apesar de o tal “triunfo do agora” excluir do horizonte a obrigação de pensar e se
preocupar se haverá amanhã, se houver, como ele será, hein?
Quem estava lá, in loco, viu e vivenciou o que é estar a
um triz da morte. Como pode, também, expressar a dimensão da perda em suas inúmeras
possibilidades. Mas, e quem não estava? Como tão bem descreveu Saramago “A pior cegueira é a mental, que faz com que
não reconheçamos o que temos pela frente”. E para esse nível de consciência,
de elaboração, não é fundamentalmente necessária a experienciação direta, em
tempo real.
Mas, ao contrário de serem
movidos pelo instinto de sobrevivência da espécie, das crenças e valores
humanos, a cegueira que se abate sobre certos indivíduos, no contexto contemporâneo,
especialmente, em situações críticas, revela uma regressão aos tempos da
barbárie. No sentido de exacerbar a incapacidade de enxergar o mundo ao redor e
de compreender em profundidade as mazelas que o afligem.
Quanto mais incivilizados, insensíveis,
embrutecidos, individualistas, mais entorpecidos por essa cegueira esses
indivíduos caminham, se distanciando da única e possível opção de adaptação às circunstâncias,
que é o resgate dos vários valores sociais, ou seja, a junção coletiva de
forças em prol de um mesmo objetivo.
Talvez, por isso, “O difícil não é ter que viver com as
pessoas, o difícil é compreendê-las” (José Saramago - Ensaio Sobre a Cegueira).
É tentar entender como alguém, em sã consciência, não se importa com os
outros, e nem consigo mesmo, se lançando a riscos desnecessários, a duelos
inglórios contra o insólito, a perturbar o desassossego alheio, ...
Mas, como já se deveria saber, “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade,
as pequenas covardias do cotidiano, tudo isso contribui para essa perniciosa
forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou
só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos
interesses” (José Saramago – Diário de Notícias, 2009).