domingo, 26 de fevereiro de 2023

Será possível relativizar o Bem e o Mal???


Será possível relativizar o Bem e o Mal???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A imprevidência verborrágica que se incorporou a dinâmica comunicativa contemporânea é, de fato, muito interessante. De repente, em muitos casos, se deixou de ser necessário ir fundo nas análises a respeito do que se diz ou se escreve, porque o descuido na elaboração das ideias é tamanho que desnuda as intenções de maneira irrefutável.

Um exemplo recente, e que me chamou bastante atenção, foi a fala de um congressista brasileiro, na qual afirma que “há ‘muita gente boa’ que foi presa após os ataques antidemocráticos em Brasília no dia 8 de janeiro” 1. Sem se dar conta, tais palavras trazem à tona, a partir das suas infinitas camadas, discussões um tanto quanto retrógradas e indigestas ao país.

A enfática defesa do parlamentar, então, começa por dar vez e voz para a perspectiva da direita brasileira e de seus matizes, mais ou menos radicais. Afinal, a expressão “gente de bem”, presente no discurso, sempre esteve associada à elite brasileira, conservadora, abastada, detentora de poder e influência sobre o restante da população nacional. Em suma, estão sob um pedestal que, pelo menos em tese, os colocaria na mais absoluta condição de regalia e de privilégios, impossibilitando eventuais punições.

Acontece que ao proferir o discurso, esse congressista simplesmente desconstruiu a realidade. O que aconteceu em 12 de dezembro de 2022 e em 08 de janeiro de 2023, na capital federal, são expressões máximas de crimes já previstos na legislação brasileira. Portanto, apuradas as participações dessas pessoas nesses atos, elas próprias revelaram-se não ser assim, tão “do bem” quanto tentavam fazer parecer.

Do ponto de vista ideológico e comportamental, elas se mostraram anos luz de distância de trazer em si valores, tais como consciência cidadã, responsabilidade, respeito à justiça, prudência, honra, disciplina, educação, empatia, sensatez, comedimento. Ao contrário disso, deram provas irrefutáveis da sua incivilidade, da sua barbárie, da sua ignorância estúpida. Certamente por estarem excessivamente convictas de uma certeza de superioridade que lhes garantiria não serem afetadas pelo cumprimento das leis.

Porém, como a situação extrapolou qualquer limite de tolerabilidade que pudesse se tentar empregar, o resultado foi bem diferente da expectativa delas. Acontece que se acostumaram a cobrar o rigor da justiça para as camadas desprivilegiadas e esquecidas, independentemente, da existência ou não de comprovação delituosa. A insultar a ação dos defensores de Direitos Humanos, em favor das minorias, como se a elas não coubesse sequer a presunção de inocência, pelo simples fato de serem quem são.

A dicotomia histórica que faz da desigualdade brasileira a expressão dos importantes e dos desimportantes é o ponto nevrálgico que precisa ser enfrentado pela sociedade. É dela que emerge o racismo, a misoginia, o sexismo, a aporofobia, a gordofobia, o etarismo, a homo e a transfobia, o capacitismo. Não se pode aferir o caráter, a alma, a índole, a aptidão, a natureza, ou o temperamento de um cidadão, pelo extrato bancário, pela posição social que ocupa, pela quantidade de diplomas que ostenta, ou pela árvore genealógica a que pertence. É pelos gestos, pelas palavras, pelas ações e pelos comportamentos.

Ao se desalinhar das bases fundamentais que sustentam a ordem, o equilíbrio e o desenvolvimento de uma sociedade é que os indivíduos se posicionam na história. Que eles abandonam a dicotomia inicial, dos importantes e dos desimportantes, para estabelecerem outras, não menos piores. Conservadores e progressistas.  Negacionistas e cientificistas. Egoístas e humanistas. Bárbaros e civilizados. Maus e bons. ...

Afinal, nenhuma dicotomia deveria ser estabelecida como rótulo ou estereótipo, porque disso nasce um olhar diferencial e negativo de uns sobre os outros. Se há um melhor e outro pior, o melhor fará de tudo para não perder a posição em que está, e o pior fará de tudo para sair da posição em que está. Porque é assim, que a beligerância é deflagrada e as tensões começam a cruzar os caminhos.

Enquanto a humanidade deixa de ser somente humanidade, para se decompor em segmentos diversos, ela se permite deixar de trazer consigo o seu traço vital, a sua essência genuína, ou seja, ser humana. Assim, não é de se espantar que ela, então, passe a transitar sem constrangimentos pela linha da segregação, da exclusão, do não pertencimento. Talvez, por isso, Nelson Rodrigues tenha se permitido dizer que “Convém não facilitar com os bons, convém não provocar os puros. Há no ser humano, e ainda nos melhores, uma série de ferocidades adormecidas. O importante é não acordá-las” (O Remador de Ben-Hur).