Será
possível relativizar o Bem e o Mal???
Por
Alessandra Leles Rocha
A imprevidência verborrágica que
se incorporou a dinâmica comunicativa contemporânea é, de fato, muito
interessante. De repente, em muitos casos, se deixou de ser necessário ir fundo
nas análises a respeito do que se diz ou se escreve, porque o descuido na
elaboração das ideias é tamanho que desnuda as intenções de maneira
irrefutável.
Um exemplo recente, e que me
chamou bastante atenção, foi a fala de um congressista brasileiro, na qual
afirma que “há ‘muita gente boa’ que foi
presa após os ataques antidemocráticos em Brasília no dia 8 de janeiro” 1. Sem se dar conta, tais palavras
trazem à tona, a partir das suas infinitas camadas, discussões um tanto quanto
retrógradas e indigestas ao país.
A enfática defesa do parlamentar,
então, começa por dar vez e voz para a perspectiva da direita brasileira e de
seus matizes, mais ou menos radicais. Afinal, a expressão “gente de bem”, presente no discurso, sempre esteve associada à
elite brasileira, conservadora, abastada, detentora de poder e influência sobre
o restante da população nacional. Em suma, estão sob um pedestal que, pelo
menos em tese, os colocaria na mais absoluta condição de regalia e de
privilégios, impossibilitando eventuais punições.
Acontece que ao proferir o
discurso, esse congressista simplesmente desconstruiu a realidade. O que
aconteceu em 12 de dezembro de 2022 e em 08 de janeiro de 2023, na capital
federal, são expressões máximas de crimes já previstos na legislação
brasileira. Portanto, apuradas as participações dessas pessoas nesses atos,
elas próprias revelaram-se não ser assim, tão “do bem” quanto tentavam fazer parecer.
Do ponto de vista ideológico e
comportamental, elas se mostraram anos luz de distância de trazer em si
valores, tais como consciência cidadã, responsabilidade, respeito à justiça,
prudência, honra, disciplina, educação, empatia, sensatez, comedimento. Ao
contrário disso, deram provas irrefutáveis da sua incivilidade, da sua
barbárie, da sua ignorância estúpida. Certamente por estarem excessivamente convictas
de uma certeza de superioridade que lhes garantiria não serem afetadas pelo
cumprimento das leis.
Porém, como a situação extrapolou
qualquer limite de tolerabilidade que pudesse se tentar empregar, o resultado
foi bem diferente da expectativa delas. Acontece que se acostumaram a cobrar o
rigor da justiça para as camadas desprivilegiadas e esquecidas,
independentemente, da existência ou não de comprovação delituosa. A insultar a
ação dos defensores de Direitos Humanos, em favor das minorias, como se a elas
não coubesse sequer a presunção de inocência, pelo simples fato de serem quem
são.
A dicotomia histórica que faz da
desigualdade brasileira a expressão dos importantes e dos desimportantes é o
ponto nevrálgico que precisa ser enfrentado pela sociedade. É dela que emerge o
racismo, a misoginia, o sexismo, a aporofobia, a gordofobia, o etarismo, a homo
e a transfobia, o capacitismo. Não se pode aferir o caráter, a alma, a índole,
a aptidão, a natureza, ou o temperamento de um cidadão, pelo extrato bancário,
pela posição social que ocupa, pela quantidade de diplomas que ostenta, ou pela
árvore genealógica a que pertence. É pelos gestos, pelas palavras, pelas ações
e pelos comportamentos.
Ao se desalinhar das bases
fundamentais que sustentam a ordem, o equilíbrio e o desenvolvimento de uma
sociedade é que os indivíduos se posicionam na história. Que eles abandonam a
dicotomia inicial, dos importantes e dos desimportantes, para estabelecerem outras,
não menos piores. Conservadores e progressistas. Negacionistas e cientificistas. Egoístas e
humanistas. Bárbaros e civilizados. Maus e bons. ...
Afinal, nenhuma dicotomia deveria
ser estabelecida como rótulo ou estereótipo, porque disso nasce um olhar
diferencial e negativo de uns sobre os outros. Se há um melhor e outro pior, o
melhor fará de tudo para não perder a posição em que está, e o pior fará de
tudo para sair da posição em que está. Porque é assim, que a beligerância é
deflagrada e as tensões começam a cruzar os caminhos.
Enquanto a humanidade deixa de
ser somente humanidade, para se decompor em segmentos diversos, ela se permite
deixar de trazer consigo o seu traço vital, a sua essência genuína, ou seja,
ser humana. Assim, não é de se espantar que ela, então, passe a transitar sem
constrangimentos pela linha da segregação, da exclusão, do não pertencimento.
Talvez, por isso, Nelson Rodrigues tenha se permitido dizer que “Convém não facilitar com os bons, convém
não provocar os puros. Há no ser humano, e ainda nos melhores, uma série de
ferocidades adormecidas. O importante é não acordá-las” (O Remador de Ben-Hur).