Nas
entrelinhas...
Por
Alessandra Leles Rocha
Não é força de expressão dizer
que as palavras têm poder. Sobretudo, em um país afetado, nos últimos anos,
pela fúria de gente ligada ou simpatizante à ultradireita.
De repente, eles transformaram a
realidade em um campo minado, onde qualquer declaração pode ser distorcida,
recortada, manipulada, e devidamente transformada em argumento contra ou a
favor do ideário deles.
Razão pela qual tornou-se cada
vez mais necessário ter atenção as linguagens para que não sejam submetidas a
nenhum risco de ambiguidade, de contradição, de má interpretação.
Entretanto, isso pode não ser o
suficiente para conter as contradições que, vez por outra, fluem entre o que se
pensa e o que se faz. Pois é, palavras traem!
Veja, por exemplo, a manchete
publicada ontem: “Deputado do PT elogia
Pazuello e diz que vai criar pontes militares com ele” 1. O típico caso que evidencia a
impossibilidade de permanecer em cima do muro por muito tempo, ou mudar de
crença, de convicção, de valores e de princípios, tão rapidamente. Afinal, o
ser humano é o que é, mesmo vestindo a personagem da ocasião.
Bem, a questão aqui não é a divergência
político-partidária em si, como muitos podem querer acreditar; visto que, a
política se baseia no diálogo amplo com as diferenças.
Mas, o fato de todo um conjunto
de acontecimentos, envolvendo o ex-ministro da Saúde, que afetaram tão
gravemente a população brasileira durante à Pandemia, que se torna difícil acreditar
que ele seja, realmente, merecedor de elogios. Foram erros e omissões graves
demais, para se esquecer!
Assim, não me venham com o
discurso da pacificação, do virar a página, do seguir em frente, porque o
amontoado de situações e acontecimentos, envolvendo a gestão passada impedem
quaisquer tipos de condescendência e esquecimento.
Sem contar que elas foram
severamente agravadas, quando o Estado Democrático de Direito e as Instituições
de Poder foram brutalmente alvejadas, vandalizadas e agredidas no seu corpo
físico e imaterial.
Portanto, nesse instante a
tentativa do diálogo falhou. Para que a dialogia se estabeleça, pressupõe-se a
concordância e a disposição de no mínimo dois interlocutores.
Assim, o conjunto da obra dos atos
antidemocráticos deixou claro, para quem quiser que, da parte da ultradireita,
a civilidade e a dialogia em relação ao atual governo, ou quaisquer de seus
simpatizantes, não existirá.
Daí a estranheza diante de certos
episódios. Não bastasse a tal manchete, no dia anterior, o que chamou a atenção
foi o espaço dado por um veículo de comunicação ao Presidente do Banco Central
do Brasil (BCB).
Frente às discordâncias no campo econômico
entre o atual governo e ele, o que era para ser uma entrevista objetiva e questionadora,
como costuma acontecer, acabou se resumindo em um excesso de mesuras e delicadezas
no trato com as palavras, de ambas as partes, entrevistado e entrevistadores. O
que descontentou a muitos.
No entanto, o curso dos acontecimentos
ter fluido dessa maneira só fez reforçar a materialidade das ideias que ele defende
desde sempre, ou seja, a verdade é que existe uma incompatibilidade total entre
o pensamento do Presidente do BCB e do Presidente da República que não pode ser
invisibilizada.
Suas tentativas de mea-culpa,
dentro de certas circunstâncias ocorridas no antigo governo, decorreram das
suas próprias crenças, valores e convicções, que em nada coadunam com o atual
governo.
Haja vista a manifestação do
principal acionista do BTG Pactual, na manhã de ontem, de que aposta em
recessão e desemprego 2. Justo
ele que, em 2021, revelou em uma reunião fechada com investidores que havia
sido consultado, de maneira privada, pelo presidente do BCB “se a taxa básica de juros (taxa Selic) já
tinha chegado no ponto mínimo”.
Bem, apesar do assunto ter caído
no esquecimento da maioria, não deveria porque o “Presidente e diretores do BC devem manter distância institucional de
instituições sob sua jurisdição reguladora, como é o caso do BTG” 3.
Além disso, o ex-ministro da
Economia, naquela ocasião, como é de conhecimento público foi um dos fundadores
do BTG, o que aponta para uma relação de muita proximidade entre governo, BCB e
a referida instituição privada.
O que não surpreende,
simplesmente, pelo fato de que todos eles são ideologicamente alinhados com o
pensamento econômico da direita e seus matizes, sejam menos ou mais radicais.
Não é à toa que esse principal
acionista do BTG Pactual foi preso durante as investigações da Operação Lava
Jato, em 2015 4, e depois, em 2016, teve
seu nome mencionado no caso Bahamas Leaks,
sobre registro de offshores nas
Bahamas 5 .
Aliás, por falar em offshore, em 2021, o ex-ministro da
Economia e o Presidente do BCB também tiveram seus nomes mencionados em
documentos revelados pelo projeto Pandora
Papers, do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos 6.
Diante disso, qualquer tentativa
de ajustar a interpretação das situações se torna desconfortável. Porque paira
no ar a nítida sensação de que, daqui e dali, comecem a eclodir os ovos de
serpente deixados pelo antigo governo, na expressão de todos os simpatizantes
da direita e de seus matizes, mais ou menos radicais.
Razão pela qual, a reticência de
uns e outros no cumprimento dos seus papeis no atual governo, evidenciar algo
além de mera precaução ou pisar em ovos. O desconforto que eles transmitem
parte deles próprios, pelo simples desalinhamento das suas crenças, valores e
convicções.
O bom é que lentamente, isso vem se
revelando, ou seja, há uma resistência político-partidária muito bem
consolidada, do tipo que dá um passo para frente e dez para trás a fim de não
sair do lugar.
O velho provérbio “Amigos, amigos, negócios à parte” não
pertence mais ao contexto brasileiro, caiu por terra. Amigos e negócios estão
mergulhados no mesmo recipiente.
De modo que nem é preciso
verbalizar, basta que se observem as entrelinhas, os comportamentos, as
atitudes, os fatos que desencadeiam essas reflexões.
Não é à toa que “Se toda a política precisa de uma economia,
a economia determina uma política; é isso que está a acontecer (com a
globalização) ” (José Saramago). Porque há uma tendência natural em fazer
permanecer o poder capital definindo o poder social.
O que explica a razão de que, no
fim das contas, “Nossa derrota sempre
esteve implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa
pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos”
(Eduardo Galeano).
Pois, “A chuva que irriga os centros de poder
imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e
simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para
dentro, dominadas para fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a
uma vida de bestas de carga” (Eduardo Galeano).
1 https://br.noticias.yahoo.com/deputado-pt-elogia-pazuello-e-223600770.html?guccounter=1&guce_referrer=aHR0cHM6Ly93d3cuZ29vZ2xlLmNvbS8&guce_referrer_sig=AQAAAFjOx4au9VZyNg13obLYFPkBQBdrRGs16W6ntj3_Sr5iODRFBYBmWwSGds9DAV6eIDFy_lva9lzfCqanU5FjN8Nz28k5Ms8p4l9EboEEYVP9Ux-3FAl0xrKldIjt2uTBnD5o-nwD_jkJM_xT8T28pPluSpij3ocvelK_lekvGayT
3 https://economia.uol.com.br/colunas/jose-paulo-kupfer/2021/10/26/campos-neto-andre-esteves-conversa-privada.htm
4 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/11/25/preso-na-lava-jato-andre-esteves-e-o-13-mais-rico-do-brasil.htm