quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Nas entrelinhas...


Nas entrelinhas...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não é força de expressão dizer que as palavras têm poder. Sobretudo, em um país afetado, nos últimos anos, pela fúria de gente ligada ou simpatizante à ultradireita.

De repente, eles transformaram a realidade em um campo minado, onde qualquer declaração pode ser distorcida, recortada, manipulada, e devidamente transformada em argumento contra ou a favor do ideário deles.

Razão pela qual tornou-se cada vez mais necessário ter atenção as linguagens para que não sejam submetidas a nenhum risco de ambiguidade, de contradição, de má interpretação.

Entretanto, isso pode não ser o suficiente para conter as contradições que, vez por outra, fluem entre o que se pensa e o que se faz. Pois é, palavras traem!

Veja, por exemplo, a manchete publicada ontem: “Deputado do PT elogia Pazuello e diz que vai criar pontes militares com ele” 1. O típico caso que evidencia a impossibilidade de permanecer em cima do muro por muito tempo, ou mudar de crença, de convicção, de valores e de princípios, tão rapidamente. Afinal, o ser humano é o que é, mesmo vestindo a personagem da ocasião.

Bem, a questão aqui não é a divergência político-partidária em si, como muitos podem querer acreditar; visto que, a política se baseia no diálogo amplo com as diferenças.

Mas, o fato de todo um conjunto de acontecimentos, envolvendo o ex-ministro da Saúde, que afetaram tão gravemente a população brasileira durante à Pandemia, que se torna difícil acreditar que ele seja, realmente, merecedor de elogios. Foram erros e omissões graves demais, para se esquecer!

Assim, não me venham com o discurso da pacificação, do virar a página, do seguir em frente, porque o amontoado de situações e acontecimentos, envolvendo a gestão passada impedem quaisquer tipos de condescendência e esquecimento.

Sem contar que elas foram severamente agravadas, quando o Estado Democrático de Direito e as Instituições de Poder foram brutalmente alvejadas, vandalizadas e agredidas no seu corpo físico e imaterial.

Portanto, nesse instante a tentativa do diálogo falhou. Para que a dialogia se estabeleça, pressupõe-se a concordância e a disposição de no mínimo dois interlocutores.

Assim, o conjunto da obra dos atos antidemocráticos deixou claro, para quem quiser que, da parte da ultradireita, a civilidade e a dialogia em relação ao atual governo, ou quaisquer de seus simpatizantes, não existirá.

Daí a estranheza diante de certos episódios. Não bastasse a tal manchete, no dia anterior, o que chamou a atenção foi o espaço dado por um veículo de comunicação ao Presidente do Banco Central do Brasil (BCB).

Frente às discordâncias no campo econômico entre o atual governo e ele, o que era para ser uma entrevista objetiva e questionadora, como costuma acontecer, acabou se resumindo em um excesso de mesuras e delicadezas no trato com as palavras, de ambas as partes, entrevistado e entrevistadores. O que descontentou a muitos.

No entanto, o curso dos acontecimentos ter fluido dessa maneira só fez reforçar a materialidade das ideias que ele defende desde sempre, ou seja, a verdade é que existe uma incompatibilidade total entre o pensamento do Presidente do BCB e do Presidente da República que não pode ser invisibilizada.

Suas tentativas de mea-culpa, dentro de certas circunstâncias ocorridas no antigo governo, decorreram das suas próprias crenças, valores e convicções, que em nada coadunam com o atual governo.

Haja vista a manifestação do principal acionista do BTG Pactual, na manhã de ontem, de que aposta em recessão e desemprego 2. Justo ele que, em 2021, revelou em uma reunião fechada com investidores que havia sido consultado, de maneira privada, pelo presidente do BCB “se a taxa básica de juros (taxa Selic) já tinha chegado no ponto mínimo”.

Bem, apesar do assunto ter caído no esquecimento da maioria, não deveria porque o “Presidente e diretores do BC devem manter distância institucional de instituições sob sua jurisdição reguladora, como é o caso do BTG” 3.

Além disso, o ex-ministro da Economia, naquela ocasião, como é de conhecimento público foi um dos fundadores do BTG, o que aponta para uma relação de muita proximidade entre governo, BCB e a referida instituição privada.

O que não surpreende, simplesmente, pelo fato de que todos eles são ideologicamente alinhados com o pensamento econômico da direita e seus matizes, sejam menos ou mais radicais.

Não é à toa que esse principal acionista do BTG Pactual foi preso durante as investigações da Operação Lava Jato, em 2015 4, e depois, em 2016, teve seu nome mencionado no caso Bahamas Leaks, sobre registro de offshores nas Bahamas 5 .

Aliás, por falar em offshore, em 2021, o ex-ministro da Economia e o Presidente do BCB também tiveram seus nomes mencionados em documentos revelados pelo projeto Pandora Papers, do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos 6.

Diante disso, qualquer tentativa de ajustar a interpretação das situações se torna desconfortável. Porque paira no ar a nítida sensação de que, daqui e dali, comecem a eclodir os ovos de serpente deixados pelo antigo governo, na expressão de todos os simpatizantes da direita e de seus matizes, mais ou menos radicais.

Razão pela qual, a reticência de uns e outros no cumprimento dos seus papeis no atual governo, evidenciar algo além de mera precaução ou pisar em ovos. O desconforto que eles transmitem parte deles próprios, pelo simples desalinhamento das suas crenças, valores e convicções.

O bom é que lentamente, isso vem se revelando, ou seja, há uma resistência político-partidária muito bem consolidada, do tipo que dá um passo para frente e dez para trás a fim de não sair do lugar.

O velho provérbio “Amigos, amigos, negócios à parte” não pertence mais ao contexto brasileiro, caiu por terra. Amigos e negócios estão mergulhados no mesmo recipiente.

De modo que nem é preciso verbalizar, basta que se observem as entrelinhas, os comportamentos, as atitudes, os fatos que desencadeiam essas reflexões.

Não é à toa que “Se toda a política precisa de uma economia, a economia determina uma política; é isso que está a acontecer (com a globalização) ” (José Saramago). Porque há uma tendência natural em fazer permanecer o poder capital definindo o poder social.

O que explica a razão de que, no fim das contas, “Nossa derrota sempre esteve implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos” (Eduardo Galeano).

Pois, “A chuva que irriga os centros de poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas para fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga” (Eduardo Galeano).