A
fome e os vazios na dignidade humana nacional
Por
Alessandra Leles Rocha
Nada mais contraditório do que um
país desfrutar de posições de destaque na produção de alimentos global, ao
mesmo tempo em que figura como cenário da desnutrição da sua população,
sobretudo, a infantil. Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 2021 e 2022,
“Todos os dias, em média, 11 crianças
menores de 5 anos são internadas por desnutrição no país” 1.
Daí a pergunta que não quer
calar: de que lado estamos? Dos grandes e frios números que modelam e regem a economia
do país e do mundo, propiciando o enriquecimento de alguns poucos em detrimento
de milhares, ou do compromisso em “construir
uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional,
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais, e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” 2?
Sim, porque a fome, conforme ela
se mostra na contemporaneidade, tem muito a dizer sobre o futuro da sociedade
brasileira e do próprio país. Tendo em vista que a parcela populacional mais drasticamente
afetada tem sido as crianças, as futuras gerações. Afinal, os quadros de
desnutrição que se têm visto cada vez mais amiúde, no país, expressam como a
população, especialmente as camadas mais vulneráveis e desassistidas pela
desigualdade historicamente firmada por aqui, definem a existência de uma
condição nutricional desequilibrada, tanto do ponto de vista qualitativo quanto
quantitativo.
O que impacta direta e
severamente o desenvolvimento humano. Em geral, os efeitos da desnutrição sobre
o organismo variam desde problemas imunológicos, perda de massa muscular e
gordura, deficiência de crescimento, alterações psíquicas e psicológicas, até,
em casos extremos, a morte. Mas, para crianças nos três primeiros anos de vida,
ela é brutal; pois, costuma gerar danos irreversíveis ao seu desenvolvimento
físico e mental, tais como, deficiência de aprendizagem, em razão das limitações
cognitivas, problemas de calcificação óssea, com repercussões importantes nas
funções vitais de mobilidade.
De modo que fechar os olhos para
o empobrecimento social e, por consequência, para a fome, não é uma escolha tão
simples quanto querem fazer parecer. Porque a fome não se resume a si mesma,
ela desdobra, se redobra, em efeitos contínuos dentro das dinâmicas sociais. A fome
gera passivos muito mais onerosos do que parecem ser as políticas públicas para
atacá-la na raiz.
A fome impacta desde o Sistema
Único de saúde (SUS), o Ministério da Saúde, o Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS), O Ministério do Trabalho e Previdência, o Ministério do
Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, o Ministério
dos Direitos Humanos e da Cidadania, até o Ministério da Educação. Porque ela não só desencadeia uma série de
demandas urgentes que, se não tratadas e resolvidas a contento, obstaculizam de
forma resistente e persistente o cotidiano do cidadão; mas, geram uma cascata
de custos inimaginável.
A fome é um espelho que reflete o
cidadão à margem dos seus direitos fundamentais, portanto, destituído da sua
acessibilidade social. E quanto mais indivíduos cerram fileira nessa realidade,
mais o país se distancia do seu progresso, do seu desenvolvimento, do seu
protagonismo no mundo globalizado, simplesmente, porque ele perde a sua força
motriz. E cada ser humano a menos para mover as engrenagens produtivas do
consumo faz muita diferença no resultado final, na relação custo/benefício.
É lamentável que o descaso e a
negligência em relação a fome, no Brasil, ainda estejam associadas ao velho
modo de pensar no ser humano sob a ótica da peça de reposição, que pode ser facilmente
substituída em razão do vasto contingente populacional. Pois a prática diz
outra coisa. Nenhum ser humano é substituível. De modo que as perdas dizem bem
mais do que ausências. Elas gritam o silêncio de uma criatividade, de uma
inventividade, de uma aptidão, de uma competência, de um conhecimento, de uma
sabedoria que não está mais entre nós, embora pudesse estar.
Portanto, o prato vazio, o olhar
desalentado, o choro sofrido, a miséria estampada, falam de uma fome, de uma
desnutrição, que não dialoga somente com a ausência do alimento. Ela dialoga
com a brutalidade da ignorância, da insensatez, da ganância, do poder, da mesquinhez,
e de tudo mais que empurra a humanidade para os abismos das desigualdades
sociais, que afasta as pessoas da sua dignidade humana, da sua cidadania.
Desse modo não se pode esquecer de que “O desenvolvimento humano só existirá se a sociedade civil afirmar cinco pontos fundamentais: igualdade, diversidade, participação, solidariedade e liberdade”; pois, “Em resposta a uma ética da exclusão, estamos todos desafiados a praticar uma ética da solidariedade” (Herbert de Souza, o Betinho). Isso vale para mim, para você e para qualquer um, que ainda se permite ser empático nessa vida.