terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

A fome e os vazios na dignidade humana nacional


A fome e os vazios na dignidade humana nacional

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nada mais contraditório do que um país desfrutar de posições de destaque na produção de alimentos global, ao mesmo tempo em que figura como cenário da desnutrição da sua população, sobretudo, a infantil. Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 2021 e 2022, “Todos os dias, em média, 11 crianças menores de 5 anos são internadas por desnutrição no país” 1.

Daí a pergunta que não quer calar: de que lado estamos? Dos grandes e frios números que modelam e regem a economia do país e do mundo, propiciando o enriquecimento de alguns poucos em detrimento de milhares, ou do compromisso em “construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” 2?

Sim, porque a fome, conforme ela se mostra na contemporaneidade, tem muito a dizer sobre o futuro da sociedade brasileira e do próprio país. Tendo em vista que a parcela populacional mais drasticamente afetada tem sido as crianças, as futuras gerações. Afinal, os quadros de desnutrição que se têm visto cada vez mais amiúde, no país, expressam como a população, especialmente as camadas mais vulneráveis e desassistidas pela desigualdade historicamente firmada por aqui, definem a existência de uma condição nutricional desequilibrada, tanto do ponto de vista qualitativo quanto quantitativo.

O que impacta direta e severamente o desenvolvimento humano. Em geral, os efeitos da desnutrição sobre o organismo variam desde problemas imunológicos, perda de massa muscular e gordura, deficiência de crescimento, alterações psíquicas e psicológicas, até, em casos extremos, a morte. Mas, para crianças nos três primeiros anos de vida, ela é brutal; pois, costuma gerar danos irreversíveis ao seu desenvolvimento físico e mental, tais como, deficiência de aprendizagem, em razão das limitações cognitivas, problemas de calcificação óssea, com repercussões importantes nas funções vitais de mobilidade.

De modo que fechar os olhos para o empobrecimento social e, por consequência, para a fome, não é uma escolha tão simples quanto querem fazer parecer. Porque a fome não se resume a si mesma, ela desdobra, se redobra, em efeitos contínuos dentro das dinâmicas sociais. A fome gera passivos muito mais onerosos do que parecem ser as políticas públicas para atacá-la na raiz.

A fome impacta desde o Sistema Único de saúde (SUS), o Ministério da Saúde, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), O Ministério do Trabalho e Previdência, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, até o Ministério da Educação.  Porque ela não só desencadeia uma série de demandas urgentes que, se não tratadas e resolvidas a contento, obstaculizam de forma resistente e persistente o cotidiano do cidadão; mas, geram uma cascata de custos inimaginável.  

A fome é um espelho que reflete o cidadão à margem dos seus direitos fundamentais, portanto, destituído da sua acessibilidade social. E quanto mais indivíduos cerram fileira nessa realidade, mais o país se distancia do seu progresso, do seu desenvolvimento, do seu protagonismo no mundo globalizado, simplesmente, porque ele perde a sua força motriz. E cada ser humano a menos para mover as engrenagens produtivas do consumo faz muita diferença no resultado final, na relação custo/benefício.

É lamentável que o descaso e a negligência em relação a fome, no Brasil, ainda estejam associadas ao velho modo de pensar no ser humano sob a ótica da peça de reposição, que pode ser facilmente substituída em razão do vasto contingente populacional. Pois a prática diz outra coisa. Nenhum ser humano é substituível. De modo que as perdas dizem bem mais do que ausências. Elas gritam o silêncio de uma criatividade, de uma inventividade, de uma aptidão, de uma competência, de um conhecimento, de uma sabedoria que não está mais entre nós, embora pudesse estar.

Portanto, o prato vazio, o olhar desalentado, o choro sofrido, a miséria estampada, falam de uma fome, de uma desnutrição, que não dialoga somente com a ausência do alimento. Ela dialoga com a brutalidade da ignorância, da insensatez, da ganância, do poder, da mesquinhez, e de tudo mais que empurra a humanidade para os abismos das desigualdades sociais, que afasta as pessoas da sua dignidade humana, da sua cidadania.

Desse modo não se pode esquecer de que “O desenvolvimento humano só existirá se a sociedade civil afirmar cinco pontos fundamentais: igualdade, diversidade, participação, solidariedade e liberdade”; pois, “Em resposta a uma ética da exclusão, estamos todos desafiados a praticar uma ética da solidariedade” (Herbert de Souza, o Betinho). Isso vale para mim, para você e para qualquer um, que ainda se permite ser empático nessa vida.