No
ponto da discórdia
Por
Alessandra Leles Rocha
Se um dos idealizadores do Plano
Real falou, então, está falado! E o que ele diz é gravíssimo sobre o estado de
erros em curso no Banco Central do Brasil (BCB) 1.
Ninguém melhor do que um especialista naqueles tempos de hiperinflação, em que
o Brasil chegou a atingir 235% ao ano, por exemplo, em 1985. Tempos em que o poder
de compra da moeda derretia a olhos vistos. O sistema financeiro nacional se
equilibrava na corda-bamba. E não havia quaisquer vestígios de bem-estar econômico
nas camadas mais vulneráveis da sociedade brasileira.
Uma pena que em quase três décadas,
desde a implantação do Plano Real, em 1994, quando o país foi submetido a
reformas econômicas capazes de construir uma rede de estabilidade para suas
finanças 2, milhares de brasileiros tenham se
permitido apagar da memória décadas e décadas de recessão e desaceleração econômica
contínuas, de desemprego estratosférico, de hiperdesvalorização salarial, de
altas taxas de juros, que afetavam diretamente a dinâmica do cotidiano
brasileiro.
Porque depois que o impensado na
economia brasileira aconteceu, ficou evidente que a satisfação não era
desfrutada por todos os brasileiros e brasileiras. Vencido o dragão da hiperinflação,
a elite brasileira que lucrava alto com a situação se sentiu bastante
contrariada e veio, desde então, valendo-se de seus tentáculos de poder, buscando
caminhos sutis e perversos que viessem de encontro a desconstrução lenta e gradual
das conquistas advindas com o Plano Real.
Mas, talvez, precisamos fazer
justiça a esse desagrado das elites, apontando aquilo que parece, dentre muitos
aspectos, o mais importante, ou seja, permitir às classes menos favorecidas alcançar
a sua dignidade cidadã. Na medida em que a política econômica do Plano Real possibilitou
controlar a inflação, reduzir o déficit orçamentário e aumentar o poder de compra
da população, permitiu-se mais acesso a bens, produtos e serviços por uma fatia
mais expressiva de cidadãos brasileiros.
Entretanto, vale ressaltar que as
taxas de juros começaram o Plano Real bastante elevadas justamente para conter
o excesso de aquecimento da economia no contexto do plano de estabilização; mas,
também, resistir a eventuais crises internacionais que pudessem repercutir
negativamente no cenário nacional. Depois com a implantação do câmbio flutuante,
no qual o valor das moedas estrangeiras flutua de acordo com a oferta e a
demanda no mercado, os juros passaram para uma redução gradativa bastante
impressionante.
Foi dessa forma que o processo do
Plano Real permitiu ao longo do tempo a transformação do país da hiperinflação
em um país com viabilidade de investimento e interesse internacional, face à
estabilização econômica e o controle inflacionário. Até que as decisões do BC, uma autarquia
federal integrada ao sistema financeiro nacional e não vinculada ao Ministério
da Economia, nos últimos anos, optasse por reafirmar seu alinhamento às
políticas econômicas dos governos de direita e seus matizes; sobretudo, da
ultradireita.
Basta olhar a realidade
brasileira. Altas de juros para conter o excesso de aquecimento da economia? Qual
a razão, se a inflação estratosférica inibe por si só o consumo, o investimento,
o nível de emprego, as importações e as exportações, acendendo a luz de alerta
para a recessão? Pois é, ao que tudo indica o BC se desviou por completo da sua
missão institucional que é “garantir a
estabilidade do poder de compra da moeda, zelar por um sistema financeiro
sólido, eficiente e competitivo, e fomentar o bem-estar econômico da sociedade”
3.
Na verdade, esta é uma questão
relativa, porque sob a ótica do antigo governo, o BC brilhou e continua
brilhando. Tanto que, não deveria ser surpresa para ninguém, o fato de essas
pessoas não terem aceitado democraticamente a decisão das urnas e se lançarem
tentando, de todas as formas, boicotar o novo governo. Ora, nada mais óbvio do
que minar a economia, mantendo juros elevadíssimos, desaquecendo as atividades
produtivas e de consumo, fazendo o país flertar com a recessão, ou disseminando
algum tipo de “terrorismo fiscal”,
para tensionar e desestabilizar a credibilidade nacional.
Um eventual fracasso da economia
brasileira representa muito para o ideário da direita e de seus simpatizantes,
no sentido da manutenção das suas regalias, dos seus privilégios, do seu poder,
do seu controle social. Um governo sem suficiência de recursos não pode
garantir a execução quantitativa e qualitativa das suas plataformas, na medida
de ser capaz de satisfazer demandas sociais históricas e urgentes. De modo que
ele tende a falhar nos seus compromissos e a fortalecer os discursos e as
narrativas pejorativas e desqualificantes daqueles que lhe fazem oposição e
anseiam por retomar o poder.
Portanto, a síntese é que o
Brasil tem hoje um BC que trabalha a favor dos bancos e dos grandes
investidores, haja vista uma das manchetes do dia: “Ibovespa fecha em alta, com reunião do CMN e balanços no radar” 4. O país que um dia foi explorado
pelo seu colonizador, na contemporaneidade passa pelo mesmo dissabor na figura da
sua elite, como se a história não tivesse lhe ensinado absolutamente nada.
Ao contrário do que se tem dito
por aí, então, não se trata de uma questão de autonomia ou não do BC como tem falado
parte da imprensa; mas, o modo como essa instituição entende e cumpre a sua própria
missão. Enviesar o discurso, fomentar a discórdia, tensionar as forças, isso só
faz parte do plano maquiavélico da direita e de seus simpatizantes,
especialmente, no sentido de garantir-lhes mais holofotes para o seu espetáculo.
Entretanto, enquanto o fazem, o país assiste a sua autodestruição, dentro e fora
das suas próprias fronteiras.