segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

No ponto da discórdia


No ponto da discórdia

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Se um dos idealizadores do Plano Real falou, então, está falado! E o que ele diz é gravíssimo sobre o estado de erros em curso no Banco Central do Brasil (BCB) 1. Ninguém melhor do que um especialista naqueles tempos de hiperinflação, em que o Brasil chegou a atingir 235% ao ano, por exemplo, em 1985. Tempos em que o poder de compra da moeda derretia a olhos vistos. O sistema financeiro nacional se equilibrava na corda-bamba. E não havia quaisquer vestígios de bem-estar econômico nas camadas mais vulneráveis da sociedade brasileira.

Uma pena que em quase três décadas, desde a implantação do Plano Real, em 1994, quando o país foi submetido a reformas econômicas capazes de construir uma rede de estabilidade para suas finanças 2, milhares de brasileiros tenham se permitido apagar da memória décadas e décadas de recessão e desaceleração econômica contínuas, de desemprego estratosférico, de hiperdesvalorização salarial, de altas taxas de juros, que afetavam diretamente a dinâmica do cotidiano brasileiro.

Porque depois que o impensado na economia brasileira aconteceu, ficou evidente que a satisfação não era desfrutada por todos os brasileiros e brasileiras. Vencido o dragão da hiperinflação, a elite brasileira que lucrava alto com a situação se sentiu bastante contrariada e veio, desde então, valendo-se de seus tentáculos de poder, buscando caminhos sutis e perversos que viessem de encontro a desconstrução lenta e gradual das conquistas advindas com o Plano Real.

Mas, talvez, precisamos fazer justiça a esse desagrado das elites, apontando aquilo que parece, dentre muitos aspectos, o mais importante, ou seja, permitir às classes menos favorecidas alcançar a sua dignidade cidadã. Na medida em que a política econômica do Plano Real possibilitou controlar a inflação, reduzir o déficit orçamentário e aumentar o poder de compra da população, permitiu-se mais acesso a bens, produtos e serviços por uma fatia mais expressiva de cidadãos brasileiros.

Entretanto, vale ressaltar que as taxas de juros começaram o Plano Real bastante elevadas justamente para conter o excesso de aquecimento da economia no contexto do plano de estabilização; mas, também, resistir a eventuais crises internacionais que pudessem repercutir negativamente no cenário nacional. Depois com a implantação do câmbio flutuante, no qual o valor das moedas estrangeiras flutua de acordo com a oferta e a demanda no mercado, os juros passaram para uma redução gradativa bastante impressionante.

Foi dessa forma que o processo do Plano Real permitiu ao longo do tempo a transformação do país da hiperinflação em um país com viabilidade de investimento e interesse internacional, face à estabilização econômica e o controle inflacionário.  Até que as decisões do BC, uma autarquia federal integrada ao sistema financeiro nacional e não vinculada ao Ministério da Economia, nos últimos anos, optasse por reafirmar seu alinhamento às políticas econômicas dos governos de direita e seus matizes; sobretudo, da ultradireita.  

Basta olhar a realidade brasileira. Altas de juros para conter o excesso de aquecimento da economia? Qual a razão, se a inflação estratosférica inibe por si só o consumo, o investimento, o nível de emprego, as importações e as exportações, acendendo a luz de alerta para a recessão? Pois é, ao que tudo indica o BC se desviou por completo da sua missão institucional que é “garantir a estabilidade do poder de compra da moeda, zelar por um sistema financeiro sólido, eficiente e competitivo, e fomentar o bem-estar econômico da sociedade” 3.

Na verdade, esta é uma questão relativa, porque sob a ótica do antigo governo, o BC brilhou e continua brilhando. Tanto que, não deveria ser surpresa para ninguém, o fato de essas pessoas não terem aceitado democraticamente a decisão das urnas e se lançarem tentando, de todas as formas, boicotar o novo governo. Ora, nada mais óbvio do que minar a economia, mantendo juros elevadíssimos, desaquecendo as atividades produtivas e de consumo, fazendo o país flertar com a recessão, ou disseminando algum tipo de “terrorismo fiscal”, para tensionar e desestabilizar a credibilidade nacional.

Um eventual fracasso da economia brasileira representa muito para o ideário da direita e de seus simpatizantes, no sentido da manutenção das suas regalias, dos seus privilégios, do seu poder, do seu controle social. Um governo sem suficiência de recursos não pode garantir a execução quantitativa e qualitativa das suas plataformas, na medida de ser capaz de satisfazer demandas sociais históricas e urgentes. De modo que ele tende a falhar nos seus compromissos e a fortalecer os discursos e as narrativas pejorativas e desqualificantes daqueles que lhe fazem oposição e anseiam por retomar o poder.

Portanto, a síntese é que o Brasil tem hoje um BC que trabalha a favor dos bancos e dos grandes investidores, haja vista uma das manchetes do dia: “Ibovespa fecha em alta, com reunião do CMN e balanços no radar” 4. O país que um dia foi explorado pelo seu colonizador, na contemporaneidade passa pelo mesmo dissabor na figura da sua elite, como se a história não tivesse lhe ensinado absolutamente nada.

Ao contrário do que se tem dito por aí, então, não se trata de uma questão de autonomia ou não do BC como tem falado parte da imprensa; mas, o modo como essa instituição entende e cumpre a sua própria missão. Enviesar o discurso, fomentar a discórdia, tensionar as forças, isso só faz parte do plano maquiavélico da direita e de seus simpatizantes, especialmente, no sentido de garantir-lhes mais holofotes para o seu espetáculo. Entretanto, enquanto o fazem, o país assiste a sua autodestruição, dentro e fora das suas próprias fronteiras.