quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Dois mundos e o mesmo dilema


Dois mundos e o mesmo dilema

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A notícia de que uma “Empresa de hackers de Israel manipulou 33 eleições no mundo, indica investigação” 1 é só mais um ingrediente importante para a reflexão sobre a relação humana com o mundo virtual.

Em 2019, eu trouxe à tona um ponto importante nessa discussão que é a alfabetização e o letramento digital 2, justamente, porque nasce desses elementos os principais desarranjos da dinâmica social contemporânea, que vão além das Fake News para flertar com crimes graves, tais como,  fraudes,  pornografia Infantil, Stalking, roubo de dados, ciberextorção.

Ora, a existência de uma desigualdade flagrante no domínio das tecnologias estabelece uma corrida desleal dentro da sociedade, como mostra a presença dos hackers atuando em diferentes áreas. Enquanto uns dominam as tecnologias com agilidade e maestria, outros sequer têm acesso a elas e sabem como utilizá-las adequadamente.  

Nesse sentido, o fato de que o ser humano vive entre dois mundos, o real e o virtual, não pode ser tratado com a naturalidade displicente comumente vista por aí. Não é porque se permitiu negligenciar a alfabetização e o letramento convencional, há várias décadas, em diversas sociedades mundo afora, que se possa acreditar ser possível agir da mesma maneira no campo tecnológico.

As repercussões negativas nesse contexto podem ser muito mais devastadoras do que as pessoas imaginam, simplesmente, porque elas acabam emergindo da síntese da fragilidade e da carência dos dois processos, convencional e virtual, simultaneamente. O que amplifica e intensifica a vulnerabilização intelectual da sociedade.

Ora, em um mundo onde a Educação é negligenciada em diversos países, permitindo a existência, em pleno século XXI, de pessoas analfabetas e analfabetas funcionais, a capacidade de compreender e/ou produzir uma opinião se torna muito limitada. Sem contar que, quase sempre, quem está nessa posição pertence as camadas mais desassistidas da sociedade, tornando-se alvos fáceis da persuasão e manipulação ideológica promovidas por setores de extrema influência sobre elas.

E se não foram devidamente letradas na educação convencional, a tendência é reproduzirem esse movimento no campo virtual. Mesmo porque, não se ouve falar em um trabalho efetivo e sistemático na educação brasileira, por exemplo, quanto à alfabetização e o letramento digital, pois as desigualdades sociais e regionais no país são manifestas com muito realismo nesse setor. Ora, há escolas que não contam sequer com infraestrutura básica, o que dirá tecnológica!

Então, não é possível falar ou discutir sobre alfabetização e letramento digital, quando não se dispõe ao menos de acessibilidade para a população às ferramentas tecnológicas mais elementares. Algo que ficou muito evidente no período crítico da Pandemia da COVID-19, quando as instituições de ensino foram obrigadas a interromper suas atividades presenciais, em todos os níveis de ensino, e trabalhar à distância, com o auxílio das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).

Foi nesse momento que o país se deu conta de que não estava preparado para essa realidade e a sua população muito menos. O ensino convencional que precisava chegar ao aluno pelas telas tecnológicas demandava não só a acessibilidade de professores e alunos aos instrumentos – computadores, tablets, iPhones, internet -; mas, a alfabetização tecnológica, ou seja, saber manuseá-los de maneira adequada e eficiente. Descobriu-se, então, da pior forma, que uma imensa maioria não sabia!

Partindo dessa descoberta, logo se chega a realidade de um inexistente letramento digital. Em linhas gerais, isso expressa a ausência do conjunto de competências que os indivíduos deveriam ter para conseguir compreender e utilizar as informações geradas pela internet, exercitando dessa forma o seu senso crítico e reflexivo. Portanto, algo bem maior do que somente conseguir ler ou escrever nas ferramentas digitais.

Sem essas habilidades desenvolvidas, o cidadão perde a condição de pensar criticamente sobre o conteúdo visualizado, sobre o uso que ele próprio faz da tecnologia, sobre o seu potencial de influenciar positivamente ou negativamente o cenário social. Em suma, ele deixa de agir de forma ativa e crítica em relação às milhões de informações que ele se depara diariamente.

Não é à toa que a alfabetização e o letramento digital são trabalhos de base, começam na infância. Dizia a educadora Maria Montessori que “A primeira ideia que uma criança precisa ter é a da diferença entre bem e o mal. E a principal função do educador é cuidar para que ela não confunda o bem com a passividade e o mal com a atividade”. E isso cabe perfeitamente nesses dois processos.

Assim, se não houver um investimento maciço na Educação brasileira, em todos os seus níveis de ensino, para atender a essa demanda que se faz prioritária na realidade atual, os desserviços sociais em curso tenderão a se ampliar, ainda mais, e a se consolidar como práxis legitimadas em razão da sua naturalização ou banalização. O velho clichê de que “A educação transforma o mundo” é inócuo; pois, não é qualquer educação. É a educação frente às demandas desse século.

Sem contar que, no contexto da realidade contemporânea, das forças destrutivas e oportunistas que tentam imperar, não basta dizer que isso ou aquilo é crime, é errado, é antidemocrático, é incivilizado, ... Punir não é solução, não resolve o problema em si. O antídoto certo contra a ignorância é a informação clara e objetiva, é a educação em estado puro, é o desenvolvimento da prática orientada, sustentada, dentro de um processo contínuo. Porque não adianta negar, contestar ou brigar, o mundo virtual veio para ficar e está em franca expansão e desenvolvimento.