Dois
mundos e o mesmo dilema
Por
Alessandra Leles Rocha
A notícia de que uma “Empresa de hackers de Israel manipulou 33
eleições no mundo, indica investigação” 1
é só mais um ingrediente importante para a reflexão sobre a relação humana com
o mundo virtual.
Em 2019, eu trouxe à tona um
ponto importante nessa discussão que é a alfabetização e o letramento digital 2, justamente, porque nasce desses
elementos os principais desarranjos da dinâmica social contemporânea, que vão
além das Fake News para flertar com crimes graves, tais como, fraudes,
pornografia Infantil, Stalking, roubo de dados, ciberextorção.
Ora, a existência de uma
desigualdade flagrante no domínio das tecnologias estabelece uma corrida
desleal dentro da sociedade, como mostra a presença dos hackers atuando em
diferentes áreas. Enquanto uns dominam as tecnologias com agilidade e maestria,
outros sequer têm acesso a elas e sabem como utilizá-las adequadamente.
Nesse sentido, o fato de que o
ser humano vive entre dois mundos, o real e o virtual, não pode ser tratado com
a naturalidade displicente comumente vista por aí. Não é porque se permitiu
negligenciar a alfabetização e o letramento convencional, há várias décadas, em
diversas sociedades mundo afora, que se possa acreditar ser possível agir da
mesma maneira no campo tecnológico.
As repercussões negativas nesse
contexto podem ser muito mais devastadoras do que as pessoas imaginam,
simplesmente, porque elas acabam emergindo da síntese da fragilidade e da
carência dos dois processos, convencional e virtual, simultaneamente. O que
amplifica e intensifica a vulnerabilização intelectual da sociedade.
Ora, em um mundo onde a Educação
é negligenciada em diversos países, permitindo a existência, em pleno século
XXI, de pessoas analfabetas e analfabetas funcionais, a capacidade de
compreender e/ou produzir uma opinião se torna muito limitada. Sem contar que,
quase sempre, quem está nessa posição pertence as camadas mais desassistidas da
sociedade, tornando-se alvos fáceis da persuasão e manipulação ideológica
promovidas por setores de extrema influência sobre elas.
E se não foram devidamente
letradas na educação convencional, a tendência é reproduzirem esse movimento no
campo virtual. Mesmo porque, não se ouve falar em um trabalho efetivo e
sistemático na educação brasileira, por exemplo, quanto à alfabetização e o
letramento digital, pois as desigualdades sociais e regionais no país são
manifestas com muito realismo nesse setor. Ora, há escolas que não contam
sequer com infraestrutura básica, o que dirá tecnológica!
Então, não é possível falar ou
discutir sobre alfabetização e letramento digital, quando não se dispõe ao
menos de acessibilidade para a população às ferramentas tecnológicas mais
elementares. Algo que ficou muito evidente no período crítico da Pandemia da
COVID-19, quando as instituições de ensino foram obrigadas a interromper suas
atividades presenciais, em todos os níveis de ensino, e trabalhar à distância,
com o auxílio das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).
Foi nesse momento que o país se
deu conta de que não estava preparado para essa realidade e a sua população
muito menos. O ensino convencional que precisava chegar ao aluno pelas telas
tecnológicas demandava não só a acessibilidade de professores e alunos aos
instrumentos – computadores, tablets, iPhones, internet -; mas, a alfabetização
tecnológica, ou seja, saber manuseá-los de maneira adequada e eficiente. Descobriu-se,
então, da pior forma, que uma imensa maioria não sabia!
Partindo dessa descoberta, logo
se chega a realidade de um inexistente letramento digital. Em linhas gerais,
isso expressa a ausência do conjunto de competências que os indivíduos deveriam
ter para conseguir compreender e utilizar as informações geradas pela internet,
exercitando dessa forma o seu senso crítico e reflexivo. Portanto, algo bem
maior do que somente conseguir ler ou escrever nas ferramentas digitais.
Sem essas habilidades
desenvolvidas, o cidadão perde a condição de pensar criticamente sobre o
conteúdo visualizado, sobre o uso que ele próprio faz da tecnologia, sobre o
seu potencial de influenciar positivamente ou negativamente o cenário social.
Em suma, ele deixa de agir de forma ativa e crítica em relação às milhões de
informações que ele se depara diariamente.
Não é à toa que a alfabetização e
o letramento digital são trabalhos de base, começam na infância. Dizia a
educadora Maria Montessori que “A
primeira ideia que uma criança precisa ter é a da diferença entre bem e o mal.
E a principal função do educador é cuidar para que ela não confunda o bem com a
passividade e o mal com a atividade”. E isso cabe perfeitamente nesses dois
processos.
Assim, se não houver um
investimento maciço na Educação brasileira, em todos os seus níveis de ensino, para
atender a essa demanda que se faz prioritária na realidade atual, os
desserviços sociais em curso tenderão a se ampliar, ainda mais, e a se
consolidar como práxis legitimadas em razão da sua naturalização ou
banalização. O velho clichê de que “A
educação transforma o mundo” é inócuo; pois, não é qualquer educação. É a
educação frente às demandas desse século.
Sem contar que, no contexto da
realidade contemporânea, das forças destrutivas e oportunistas que tentam
imperar, não basta dizer que isso ou aquilo é crime, é errado, é
antidemocrático, é incivilizado, ... Punir não é solução, não resolve o
problema em si. O antídoto certo contra a ignorância é a informação clara e
objetiva, é a educação em estado puro, é o desenvolvimento da prática
orientada, sustentada, dentro de um processo contínuo. Porque não adianta
negar, contestar ou brigar, o mundo virtual veio para ficar e está em franca
expansão e desenvolvimento.
1 https://www.estadao.com.br/internacional/empresa-de-hackers-de-israel-manipulou-33-eleicoes-no-mundo-diz-jornal/
2 Alfabetização e Letramento Digital: já pensou sobre
isso? - https://emprosaeverso-alr.blogspot.com/2019/03/leia-e-reflita.html