sábado, 21 de janeiro de 2023

Reflexões sobre o processo de judicialização no Brasil


Reflexões sobre o processo de judicialização no Brasil

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O ineditismo histórico dos atos depredatórios de 8 de janeiro de 2023, em Brasília/DF, começa a revelar bem mais do que a materialidade do que se viu. Pela ótica da ruptura contemporânea com os limites e o flerte perigoso com uma anarquia institucionalizada é que se depara com as raízes do fenômeno de judicialização do cotidiano nacional.

Efetivamente, foi a partir desse episódio que a direita nacional e seus matizes se mostrou exatamente como é. Entretanto, isso não significa que ela não existisse e nem estivesse executando a tarefa de questionar os limites existenciais e institucionais, há tempos, no país. Começando pelo estabelecimento das fronteiras das desigualdades socioeconômicas, criadas ainda no período colonial brasileiro, e que estabeleceram no inconsciente coletivo nacional a ideia de que os limites de uns podem e devem ser maiores do que de outros cidadãos.

Com base nesse entendimento toda carga de inacessibilidade aos direitos sociais passou a existir para certas parcelas da população, na medida em que os limites eram rigidamente inflexíveis e intransponíveis. Até que, a Constituição Federal de 1988, descontruiu esse entendimento e deu voz aos milhares de indivíduos que foram sumariamente alijados da sua participação cidadã ao longo da história nacional. Portanto, eles passaram a ter um instrumento legítimo para garantir a sua dignidade humana sob os mais diferentes aspectos do cotidiano.

O que deveria estar no rol da mais absoluta normalidade social, então, de repente, se transformou em motivo de profundo acirramento beligerante, por parte das elites nacionais, representantes diretas da ideologia direitista em todos os seus vieses. Sentindo-se ameaçados na sua supremacia, na sua hegemonia, nos seus poderes e pseudopoderes, historicamente reafirmados, eles começaram a criar obstáculos e desafios no sentido de afrontar e não deixar cumprir o que havia sido estabelecido na Carta Magna.

De modo que a própria direita nacional e seus matizes é que impulsionaram a judicialização da vida no país. Contrários ao diálogo, resistentes às transformações e evoluções sociais, arraigados em suas crenças, valores e princípios, se tornou inevitável que os cidadãos preteridos, incomodados e afetados pelo comportamento dos direitistas, buscassem uma solução eficaz e legítima para suas demandas. Assim, sob o respaldo da lei eles poderiam dirimir suas dúvidas e direitos.

Percebendo o surgimento desse movimento, pelas camadas não privilegiadas da sociedade, e o sucesso por elas conseguido, a direita nacional e seus matizes decidiram afrontar a justiça, cada vez mais, endurecendo sua postura no descumprimento às leis, normas e ordenamentos, ou seja, do mais simples e trivial do cotidiano ao mais complexo, os cidadãos teriam que reivindicar, junto às instâncias do judiciário nacional, o cumprimento da lei.

O que contribuiu e muito para um cenário de morosidade que fazia transparecer um calvário de injustiças. Pilhas e pilhas de processos se arrastando por décadas até chegarem a um desfecho final, tantas vezes, sem encontrar o reclamante vivo dada a demora. Mesmo diante desse cenário perverso e cruel, o contexto ainda desagradava a direita nacional e seus matizes, porque a morosidade parecia pouco, o que ela queria mesmo, era que a justiça não trabalhasse em desfavor do seu entendimento particular sobre como deveria funcionar as relações sociais no país.

Foi aí, então, que se iniciou a cruzada, da direita nacional e seus matizes, contra o judiciário e a Constituição vigente. Qualquer que fosse a instância, qualquer que fosse a medida impetrada, qualquer que fosse a decisão, bastasse que algum grupo dentro do rol dos direitistas se sentisse incomodado, ou desrespeitado, ou ofendido, para que uma avalanche de desrespeitos e violências fosse lançada sobre o judiciário brasileiro. Trata-se de uma iniciativa de apropriação da justiça para fazê-la caber aos interesses próprios e particulares de alguns em detrimento de outros.

E vejam como é curioso, que a direita nacional e seus matizes se abstenha de reconhecer que foi ela própria a responsável pela judicialização no país, colocando-se na posição vitimista de perseguida pelo judiciário, quando se julgam desfavorecidas nas decisões. Negam, com a mais absoluta veemência, o fato de que é o Poder Judiciário o responsável por garantir os direitos individuais, coletivos e sociais, por meio da resolução de conflitos entre os cidadãos, as entidades e instituições e o Estado brasileiro; mas, não se furtam a  recorrer a ele quando consideram necessário.  

Portanto, não foi à toa que nos atos depredatórios de 8 de janeiro de 2023, em Brasília/DF, o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) tenha sido o mais violentamente destruído pelos golpistas e terroristas. A exasperação daquelas pessoas foi meticulosamente fomentada por discursos e narrativas disseminadas pela direita nacional e seus matizes; sobretudo, a ultradireita. Foi uma tentativa de demonstrar a sua desaprovação a qualquer um que se interponha aos seus interesses historicamente constituídos.

Acontece que foi inócuo. Vidros quebrados. Móveis destruídos. Estruturas danificadas. Objetos furtados. Mas, e daí? No dia seguinte, a judicialização do cotidiano estava em curso, em nome das manifestações diversas de cidadãos e instituições que se sentiram usurpados em seu patrimônio público material e imaterial. Assim, milhares de vândalos foram presos. Centenas de outros procurados. Investigações em curso. Perícias em pleno vapor para apurar a extensão dos prejuízos e dimensionar o valor a ser restituído aos cofres públicos.  Enfim, a justiça de pé e a Constituição e demais leis vigorando.

Essa breve análise é fundamental pelo fato de que não está necessariamente nesse ou naquele indivíduo a causa dessa tensão social. Pessoas vêm e vão. Morrem. São substituídas. De modo que não está nelas o ponto nevrálgico da direita e seus matizes; mas, na semente ideológica que se mantém ativa de maneira atemporal.  E essa semente ganhou nas últimas décadas uma aliada de peso que são as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), repletas de ferramentas capazes de disseminar, aos milhares por segundo, as mais diversas ideias e pensamentos humanos. Para esse fim, não se precisa necessariamente de seres humanos. Máquinas, robôs, androides, fazem esse serviço sem sair do lugar e nem se cansar.

Por isso, o momento pede uma reflexão crítica em torno das ideologizações. Vejam que a judicialização, que é uma ação diretamente relacionada às interações humanas, só emergiu por conta de uma força ideológica que se impôs na sociedade brasileira. É preciso entender os meandros que facilitam a contaminação social por esse tipo de vírus ideológico, que afeta a estabilidade e o discernimento humano, através do medo e do ódio. Que criam pseudoameaças no inconsciente, bloqueando a capacidade cognitiva, intelectual e lógica das pessoas, adoecendo a sociedade, o país, o Estado de Direito e a Democracia.