Povos
Originários na rota da necropolítica nacional
Por
Alessandra Leles Rocha
Não é porque a necropolítica foi,
de certo modo, uma herança deixada pelo sistema colonial que tenhamos, em pleno
século XXI, que permanecer aceitando as suas consequências nefastas e repugnantes.
O que vem acontecendo com diversos povos originários, no Brasil; sobretudo, os yanomamis
1, é mais
do que negligência política, ou irresponsabilidade social, ou desumanidade.
Trata-se da reafirmação dos valores
e dos princípios que regem os grupos dominantes, ideologicamente fundamentados
na direita e seus matizes, na qual, segundo eles, não pode haver espaço para existência
das minorias sociais no país. Afinal, elas são vistas e entendidas como obstáculo
direto às inúmeras camadas de interesses dos direitistas. O que no caso dos
povos originários diz respeito aos interesses econômicos; posto que, são eles
os guardiões de áreas de imenso valor capital, em razão das reservas minerais e
vegetais.
Daí a necessidade de se ter
cautela em acreditar que a culpa sobre os desmandos, os absurdos, as
irresponsabilidades, as violências, deva ser atribuída apenas a certos indivíduos.
Há de se colocar na balança o peso das ações diretas; mas, também, das
indiretas 2. Só assim,
é que se tem a devida proporção das irresponsabilidades cunhadas a partir da concordância
com os fundamentos da necropolítica.
Vejam que, apesar de todo o
frisson apocalíptico que se abateu sobre a capital federal, em razão do
vandalismo expresso pelos atos antidemocráticos, nos campos
político-partidários da direita e seus matizes, já se noticiavam as tentativas
de afastamento em relação a certas figuras, enquanto buscavam substitutos à
altura, que coadunem das mesmas ideias e princípios. Diríamos, então, trocando
seis por meia dúzia. O que significa que não entenderam nada. Que não
aprenderam nada. Que permanecem enxergando o país na mesma perspectiva de
sempre.
A continuar assim, então, as
ameaças impostas pelo regime necropolítico tenderão a continuar, sob as mais
diferentes expressões de crueldade, de impiedade, de ódio, de perversidade.
Como aquelas imagens terríveis de yanomamis, de diferentes idades e gêneros, esquálidos,
doentes, entregues à própria sorte nas suas aldeias. Como se fossem seres menos
humanos do que os brancos.
Aliás, é importante destacar a
dimensão da necropolítica exercida pelos simpatizantes da direita e seus
matizes, nesse caso, em relação aos povos originários, porque ela se abstém de
uma responsabilidade histórica quanto à usurpação e apropriação indevida das
terras indígenas, por meio da força e da violência. São pouco mais de 500 anos
de história de abusos a esse respeito acontecendo no Brasil, sem que medidas
sejam de fato tomadas para reparar e devolver a dignidade e a cidadania aos
povos originários.
Infelizmente, a necropolítica
tende a fazer com que as minorias sejam transformadas em figuras excêntricas de
exibição, tirando delas a sua humanidade, a sua identidade, a sua essência, a
partir de todo tipo de desrespeitos e de violências impetradas contra elas. No caso
dos povos originários, fizeram deles criaturas folclóricas, lendárias, míticas,
e que por essa razão se distanciam de quaisquer possibilidades de convivência e
coexistência com o homem branco. O que é reafirmado pela superficialização e
modelação do conhecimento indígena junto à população brasileira.
Haja vista o desconhecimento em
relação à lei n. º11.645, de 10 de março de 2008, que tornou obrigatório o
estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de
ensino fundamental e médio. E por que desconhecem? Primeiro, porque a referida
lei não previu a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior
para os cursos de formação de professores (licenciaturas). Segundo, porque as
políticas públicas falham na publicização de assuntos importantes e de
interesse social, como é o caso, em razão das pressões promovidas pelos
interesses das elites dominantes; sobretudo, da direita e seus matizes.
Desse modo, essa é uma discussão
que segue negada, invisibilizada, ofuscada, distante da maioria dos cidadãos. E
se esses indivíduos não são conhecidos, não são lembrados, como esperar que
sejam efetivamente integrados à cidadania nacional? Como esperar que sejam
contemplados com a devida acessibilidade aos seus direitos sociais?
Em 2021, eu escrevi que “A foto de uma criança yanomami, esquálida,
sobre uma rede, divulgada por todos os veículos de comunicação e informação, no
último dia 9 de maio, expõe sem retoques o que se pode chamar de ‘neocolonialismo
do século XXI’ em terras indígenas brasileiras” e completava dizendo, “Foram mais de 1000 índios mortos pela
COVID-19; mas, a permissividade da ilegalidade tem os feito vergar diante da
desnutrição, do aumento dos casos de Malária, da contaminação dos rios com
mercúrio, do alcoolismo e da prostituição por parte dos garimpeiros que invadem
as terras”3.
Meses depois, um novo texto meu
trazia à tona que “A reportagem que
alerta sobre o fato de que a ‘FUNAI proíbe equipe da Fiocruz de levar assistência
aos Yanomami em meio à desnutrição, surto de malária e abandono do governo’, acaba,
portanto, não fazendo justiça à dimensão da tragédia. A realidade dos povos
originários brasileiros, tende a ser muito pior do que se imagina, ao ponto de
que a Fundação nacional do Índio (Funai) vetou pesquisa sobre contaminação de
mercúrio entre yanomamis proposta pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)” 4.
Não é à toa que Darcy Ribeiro, antropólogo,
historiador, sociólogo e político brasileiro, tenha dito com tanta propriedade
que “O Brasil, último país a acabar com a
escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa
classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”.
Pois é, a necropolítica nacional tem rosto, tem nome, tem sobrenome, tem CPF. Aliás, muitos. E todos eles precisam responder à justiça pelos seus atos, suas omissões, suas negligências e suas irresponsabilidades. Sem exceções. Sem condescendências. É demasiadamente ultrajante pensar que tudo isso vem acontecendo em nome de nada, de nenhuma melhoria, de nenhuma igualdade, de nenhum desenvolvimento, de nenhum progresso. Só ganância. Só cobiça. Só pseudopoder. Só ignorância cruel em estado bruto.
1
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2023/01/21/em-roraima-lula-promete-transporte-e-atendimento-medico-a-indigenas-yanomami-e-fim-do-garimpo-ilegal.ghtml
2
https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2023/01/5067895-internautas-questionam-ex-ministra-damares-sobre-crise-em-terras-yanomami.html
https://apublica.org/2020/08/mourao-concentra-politicas-para-a-amazonia-nas-forcas-armadas/
3
A cidadania indígena em xeque - https://emprosaeverso-alr.blogspot.com/2021/05/a-cidadania-indigena-em-xeque.html
4 As Balsas do Inferno - https://emprosaeverso-alr.blogspot.com/2021/11/as-balsas-do-inferno.html