domingo, 22 de janeiro de 2023

Povos Originários na rota da necropolítica nacional


Povos Originários na rota da necropolítica nacional

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não é porque a necropolítica foi, de certo modo, uma herança deixada pelo sistema colonial que tenhamos, em pleno século XXI, que permanecer aceitando as suas consequências nefastas e repugnantes. O que vem acontecendo com diversos povos originários, no Brasil; sobretudo, os yanomamis 1, é mais do que negligência política, ou irresponsabilidade social, ou desumanidade.

Trata-se da reafirmação dos valores e dos princípios que regem os grupos dominantes, ideologicamente fundamentados na direita e seus matizes, na qual, segundo eles, não pode haver espaço para existência das minorias sociais no país. Afinal, elas são vistas e entendidas como obstáculo direto às inúmeras camadas de interesses dos direitistas. O que no caso dos povos originários diz respeito aos interesses econômicos; posto que, são eles os guardiões de áreas de imenso valor capital, em razão das reservas minerais e vegetais.

Daí a necessidade de se ter cautela em acreditar que a culpa sobre os desmandos, os absurdos, as irresponsabilidades, as violências, deva ser atribuída apenas a certos indivíduos. Há de se colocar na balança o peso das ações diretas; mas, também, das indiretas 2. Só assim, é que se tem a devida proporção das irresponsabilidades cunhadas a partir da concordância com os fundamentos da necropolítica.

Vejam que, apesar de todo o frisson apocalíptico que se abateu sobre a capital federal, em razão do vandalismo expresso pelos atos antidemocráticos, nos campos político-partidários da direita e seus matizes, já se noticiavam as tentativas de afastamento em relação a certas figuras, enquanto buscavam substitutos à altura, que coadunem das mesmas ideias e princípios. Diríamos, então, trocando seis por meia dúzia. O que significa que não entenderam nada. Que não aprenderam nada. Que permanecem enxergando o país na mesma perspectiva de sempre.

A continuar assim, então, as ameaças impostas pelo regime necropolítico tenderão a continuar, sob as mais diferentes expressões de crueldade, de impiedade, de ódio, de perversidade. Como aquelas imagens terríveis de yanomamis, de diferentes idades e gêneros, esquálidos, doentes, entregues à própria sorte nas suas aldeias. Como se fossem seres menos humanos do que os brancos.

Aliás, é importante destacar a dimensão da necropolítica exercida pelos simpatizantes da direita e seus matizes, nesse caso, em relação aos povos originários, porque ela se abstém de uma responsabilidade histórica quanto à usurpação e apropriação indevida das terras indígenas, por meio da força e da violência. São pouco mais de 500 anos de história de abusos a esse respeito acontecendo no Brasil, sem que medidas sejam de fato tomadas para reparar e devolver a dignidade e a cidadania aos povos originários.

Infelizmente, a necropolítica tende a fazer com que as minorias sejam transformadas em figuras excêntricas de exibição, tirando delas a sua humanidade, a sua identidade, a sua essência, a partir de todo tipo de desrespeitos e de violências impetradas contra elas. No caso dos povos originários, fizeram deles criaturas folclóricas, lendárias, míticas, e que por essa razão se distanciam de quaisquer possibilidades de convivência e coexistência com o homem branco. O que é reafirmado pela superficialização e modelação do conhecimento indígena junto à população brasileira.

Haja vista o desconhecimento em relação à lei n. º11.645, de 10 de março de 2008, que tornou obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. E por que desconhecem? Primeiro, porque a referida lei não previu a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores (licenciaturas). Segundo, porque as políticas públicas falham na publicização de assuntos importantes e de interesse social, como é o caso, em razão das pressões promovidas pelos interesses das elites dominantes; sobretudo, da direita e seus matizes.

Desse modo, essa é uma discussão que segue negada, invisibilizada, ofuscada, distante da maioria dos cidadãos. E se esses indivíduos não são conhecidos, não são lembrados, como esperar que sejam efetivamente integrados à cidadania nacional? Como esperar que sejam contemplados com a devida acessibilidade aos seus direitos sociais?

Em 2021, eu escrevi que “A foto de uma criança yanomami, esquálida, sobre uma rede, divulgada por todos os veículos de comunicação e informação, no último dia 9 de maio, expõe sem retoques o que se pode chamar de ‘neocolonialismo do século XXI’ em terras indígenas brasileiras” e completava dizendo, “Foram mais de 1000 índios mortos pela COVID-19; mas, a permissividade da ilegalidade tem os feito vergar diante da desnutrição, do aumento dos casos de Malária, da contaminação dos rios com mercúrio, do alcoolismo e da prostituição por parte dos garimpeiros que invadem as terras”3.

Meses depois, um novo texto meu trazia à tona que “A reportagem que alerta sobre o fato de que a ‘FUNAI proíbe equipe da Fiocruz de levar assistência aos Yanomami em meio à desnutrição, surto de malária e abandono do governo’, acaba, portanto, não fazendo justiça à dimensão da tragédia. A realidade dos povos originários brasileiros, tende a ser muito pior do que se imagina, ao ponto de que a Fundação nacional do Índio (Funai) vetou pesquisa sobre contaminação de mercúrio entre yanomamis proposta pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)” 4.

Não é à toa que Darcy Ribeiro, antropólogo, historiador, sociólogo e político brasileiro, tenha dito com tanta propriedade que “O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”.

Pois é, a necropolítica nacional tem rosto, tem nome, tem sobrenome, tem CPF. Aliás, muitos. E todos eles precisam responder à justiça pelos seus atos, suas omissões, suas negligências e suas irresponsabilidades. Sem exceções. Sem condescendências. É demasiadamente ultrajante pensar que tudo isso vem acontecendo em nome de nada, de nenhuma melhoria, de nenhuma igualdade, de nenhum desenvolvimento, de nenhum progresso. Só ganância. Só cobiça. Só pseudopoder. Só ignorância cruel em estado bruto.