A cegueira. A fome. A morte.
Por
Alessandra Leles Rocha
Lamento, mas o escandaloso
abandono dos Yanomamis, e outros grupos originários, no país, é antigo. Trata-se
de uma vergonha nacional que se arrasta por muito tempo e que, agora, parece
ter atingido o seu ápice, o que acabou deflagrando ações rápidas e contundentes
para se resolver. Pois, como escreveu José Saramago, “É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade”;
daí, “Se queres ser cego, sê-lo-ás” (Ensaio sobre a Cegueira, 1995).
Entretanto, desse horror absurdo
se descortinou certas verdades bastante indigestas. Haja vista as manifestações
desprezíveis da ultradireita nacional sobre o fato de a Força Aérea Brasileira
(FAB) ter operacionalizado uma missão humanitária para levar comida ao povo Yanomami,
que se encontra em franco processo de desnutrição e morte, em Roraima 1.
Não, não há o que dizer. Está posto
às claras, todos os valores, os princípios, as convicções da direita nacional e
seus matizes. Porque se o estrato da ultradireita se despiu de qualquer pudor
em relação ao senso de humanidade, todos os demais estratos direitistas se
mantiveram calados diante de uma tragédia costurada há mais de 500 anos. Principalmente,
no que diz respeito aos fatos ocorridos e publicizados nos últimos quatro anos 2.
Entender tudo isso é ainda mais
essencial, porque ao contrário do que parece nesse momento, essa ideologia
macabra de extermínio humano, pela fome, vai além dos povos originários. Segundo
dados do “II Inquérito Nacional sobre Insegurança
Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede
Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
(PENSSAN), 33 milhões de pessoas passam fome no país. Aproximadamente 125
milhões de brasileiros convivem com algum nível de insegurança alimentar” 3.
Isso, portanto, esfacela qualquer
ideia que possa ser ventilada, por aí, de que os yanomamis estão padecendo de
insegurança alimentar, pelo fato de serem geograficamente desprivilegiados de
um contato mais frequente e direto com os habitantes dos médios e grandes
centros populacionais. Como se isso constituísse uma situação justificável de “esquecimento” pelas políticas públicas.
Só que não. A Rede PENSSAN prova
isso. As manchetes dos veículos de informação e de comunicação provam isso. O
olhar atento do cidadão também. Especialmente, quando ele não se furta a ver e
perceber a presença da mendicância esquálida, em estado bruto, ao seu redor. Nas
ruas. Nas praças. Nas esquinas. Nos viadutos. ...
O que temos bem diante do nariz,
caro (a) leitor (a), busca no fim das contas consolidar uma limpeza étnica, no
país. No sentido de remover ou de eliminar determinados grupos sociais de uma
região, com o propósito de torná-la homogeneizada, segundo valores, princípios
e interesses de alguns. Embora um traço ideológico marcante da ultradireita, ele
acaba não se distanciando das demais camadas da direita em razão do silenciamento
e da omissão conivente.
Verdade seja dita, querem banir
do país as minorias seja a que custo for. Como se isso fosse possível. Por isso,
essa limpeza é bem mais do que étnica. Ela não se resume a eleger etnias específicas
para saciar sua gana dizimatória. Ela parte do desejo de eliminar quaisquer indivíduos
que estejam na contramão do pensamento da direita e de seus matizes. Ou seja, que
coloquem, de alguma forma, em risco os interesses socioeconômicos, as eventuais
regalias e privilégios, os pseudopoderes daqueles que estão historicamente no
topo da pirâmide.
Assim, a fome surge como o
instrumento de controle social mais poderoso existente. O faminto não
reivindica. O faminto não luta. O faminto não questiona. O faminto não faz
oposição. Assim, na medida em que a fome avança sobre os desvalidos, os socialmente
vulneráveis, os direitos sociais vão se apagando e as políticas públicas se
voltando exclusivamente para os interesses das elites, das camadas dominantes. Uma
lógica insana; pois, a fome que mata indivíduos mata, também, o país.
Afinal de contas, a fome, que não
é um privilégio estritamente nacional, é o símbolo maior de que “Estamos a destruir o planeta e o egoísmo de
cada geração não se preocupa em perguntar como vão viver os que virão depois. A
única coisa que importa é o triunfo do agora “. Daí a necessidade de se ter
sempre em mente que “Na morte a cegueira
é igual para todos” (José Saramago - Ensaio sobre a Cegueira, 1995).
1 https://noticias.uol.com.br/colunas/carlos-madeiro/2023/01/22/golpistas-atacam-fab-por-levar-comida-a-ianomamis-fazem-frete-para-sp.htm