Agora
não dá mais para esquecer!
Por
Alessandra Leles Rocha
Olhando sob uma perspectiva diferente
do futebol, a vitória de uma equipe africana, o Marrocos, em pleno Dia
Internacional dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, foi muito emblemática e
reflexiva.
Considerada o Continente
Esquecido depois da dilapidação colonialista, a África é quem abriga a população
mais pobre do mundo, com 35 países apresentando Índices de Desenvolvimento
Humano (IDH) inferiores a 0,471, valores considerados baixos.
De modo que o Marrocos estar
entre as quatro equipes finalistas do principal torneio de futebol masculino do
mundo, não só lança luz sobre todo o continente africano por reafirmar o
potencial existente na região; mas, por romper com a generalização da pobreza e
da miséria que estabelece uma estigmatização perversamente tendenciosa.
A verdade é que nenhum continente
deveria ter sido esquecido em razão do colonialismo. Há uma dívida histórica
que o tempo, talvez, nem seja capaz de reparar. Acontece que por detrás desse abandono
e negligência socioeconômica está o racismo.
Digo isso, porque tomadas as
devidas proporções, um processo semelhante se deu no Brasil, em relação à região
Nordeste. Depois da exploração indiscriminada dos recursos naturais, com a
exaustão das riquezas, esses dois espaços geográficos foram sumariamente
abandonados e tornaram-se alvos preferenciais do racismo, ou seja, todo tipo de
discriminação ou preconceito relacionados à raça, cor, etnia, religião ou procedência
nacional.
No entanto, a discussão a
respeito fica submersa em camadas e camadas de narrativas frágeis que tentam
fazer parecer menos impactantes e cruéis esse assunto.
O que se percebe é uma tentativa
de colocar em destaque os problemas e desafios da região dissociados do
processo sócio-histórico que os construiu, sugerindo uma responsabilidade restrita
à própria população quando, na verdade, não é.
E dessa construção retórica nasce
uma naturalização, uma trivialização das mazelas socioeconômicas, a fim de
obstaculizar eventuais iniciativas de recomposição e/ou recuperação regional. De
modo que sobre o cerne da questão, o racismo, ninguém efetivamente se dispõe a
estabelecer uma discussão reflexiva.
Mas, depois de tantas voltas que
o mundo foi capaz de dar, talvez, a força das conjunturas venha abrir espaço
para romper com os velhos paradigmas. O mundo contemporâneo, com seus 8 bilhões
de pessoas, não tem mais como se abster do reconhecimento da miséria e do
empobrecimento global.
Esses não são mais privilégios estigmatizantes
do continente africano ou do nordeste brasileiro. Aqui, ali e acolá estão milhões
de pessoas vivendo à margem da dignidade humana, privadas, total ou
parcialmente, dos seus direitos sociais básicos, ou seja, educação,
alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, proteção à
maternidade e à infância, assistência aos desamparados e previdência social.
Quem poderia imaginar, por
exemplo, algum dia se deparar com manchetes assim: “‘Tem gente comendo ração e esquentando comida com velas’: como é a
pobreza no Reino Unido” 1 ou “EUA
tentam lidar com alta de moradores de rua e esvaziamento dos centros” 2?
Uma mistura explosiva entre a dinâmica
das políticas econômicas desenvolvidas no mundo e o insólito, na figura da
pandemia, da Guerra na Ucrânia, dos eventos extremos do clima, está desconstruindo
o apogeu dos grandes impérios.
E justamente pelo fato de que a força
das desigualdades na contemporaneidade está traçando uma nova ordem no planeta
e confrontando os países as mesmas adversidades, aos mesmos desafios, agora, as
questões do racismo emergiram de maneira substancial no palco das discussões
sociais.
A secular estigmatização
pejorativa não cabe mais. É impossível transitar pela realidade contemporânea sem
ser afetado pelo efeito cascata das dinâmicas em curso. Ninguém é mais ou
menos. Ninguém é melhor ou pior.
Em maior ou em menor escala todos
estão sofrendo perdas no seu cotidiano. Perdas materiais e imateriais, que
implicam cada vez mais na necessidade da visibilização e da reafirmação dos
direitos humanos 3, os quais representam as
normas que reconhecem e protegem a dignidade de todos os indivíduos, sem
distinção de qualquer natureza. Afinal, “A
menor minoria na Terra é o indivíduo. Aqueles que negam os direitos individuais
não podem se dizer defensores das minorias” (Ayn Rand).
Observando, então, a celebração
dos jogadores marroquinos, na Copa do Mundo, percebi neles a materialização daquilo
que Eleanor Roosevelt dizia, “Não temos
de nos tornar heróis do dia para a noite. Só um passo de cada vez, tratando
cada coisa à medida que surge, vendo que não é tão assustadora como parecia,
descobrindo que temos a força para superar”. É isso que nos dá a
tranquilidade de compreender que “A
primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la” (Eduardo Galeano).
Assim, mesmo diante de todas as recentes
tentativas dos movimentos de ultradireita em se apropriarem do mundo, o seu
insucesso me parece cada vez mais real e palpável. Seus discursos e narrativas
inflamados, mas vazios, não conseguem fazer frente à fúria que as conjunturas contemporâneas
vêm sem moldando.
Os seres humanos estão cada vez
mais conscientes de que “Não importa de
onde vim, mas sim aonde quero chegar”, porque romperam as amarras sobre o
fato de que “Nossa derrota esteve sempre
implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por
nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos“ (Eduardo Galeano).
No fim das contas, então, a beligerância irracional proposta pela ultradireita só servirá de catalizador para os acontecimentos em curso, dessa nova ordem que tende a se formar. As tentativas de esquecer o passado, de apagar a história, de negar os fatos, não surtirão mais quaisquer efeitos, simplesmente, porque as verdades estão, agora, bem diante do nariz.