domingo, 11 de dezembro de 2022

Agora não dá mais para esquecer!


Agora não dá mais para esquecer!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Olhando sob uma perspectiva diferente do futebol, a vitória de uma equipe africana, o Marrocos, em pleno Dia Internacional dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, foi muito emblemática e reflexiva.

Considerada o Continente Esquecido depois da dilapidação colonialista, a África é quem abriga a população mais pobre do mundo, com 35 países apresentando Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) inferiores a 0,471, valores considerados baixos.

De modo que o Marrocos estar entre as quatro equipes finalistas do principal torneio de futebol masculino do mundo, não só lança luz sobre todo o continente africano por reafirmar o potencial existente na região; mas, por romper com a generalização da pobreza e da miséria que estabelece uma estigmatização perversamente tendenciosa.

A verdade é que nenhum continente deveria ter sido esquecido em razão do colonialismo. Há uma dívida histórica que o tempo, talvez, nem seja capaz de reparar. Acontece que por detrás desse abandono e negligência socioeconômica está o racismo.

Digo isso, porque tomadas as devidas proporções, um processo semelhante se deu no Brasil, em relação à região Nordeste. Depois da exploração indiscriminada dos recursos naturais, com a exaustão das riquezas, esses dois espaços geográficos foram sumariamente abandonados e tornaram-se alvos preferenciais do racismo, ou seja, todo tipo de discriminação ou preconceito relacionados à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

No entanto, a discussão a respeito fica submersa em camadas e camadas de narrativas frágeis que tentam fazer parecer menos impactantes e cruéis esse assunto.

O que se percebe é uma tentativa de colocar em destaque os problemas e desafios da região dissociados do processo sócio-histórico que os construiu, sugerindo uma responsabilidade restrita à própria população quando, na verdade, não é.

E dessa construção retórica nasce uma naturalização, uma trivialização das mazelas socioeconômicas, a fim de obstaculizar eventuais iniciativas de recomposição e/ou recuperação regional. De modo que sobre o cerne da questão, o racismo, ninguém efetivamente se dispõe a estabelecer uma discussão reflexiva.

Mas, depois de tantas voltas que o mundo foi capaz de dar, talvez, a força das conjunturas venha abrir espaço para romper com os velhos paradigmas. O mundo contemporâneo, com seus 8 bilhões de pessoas, não tem mais como se abster do reconhecimento da miséria e do empobrecimento global.

Esses não são mais privilégios estigmatizantes do continente africano ou do nordeste brasileiro. Aqui, ali e acolá estão milhões de pessoas vivendo à margem da dignidade humana, privadas, total ou parcialmente, dos seus direitos sociais básicos, ou seja, educação, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados e previdência social.  

Quem poderia imaginar, por exemplo, algum dia se deparar com manchetes assim: “‘Tem gente comendo ração e esquentando comida com velas’: como é a pobreza no Reino Unido” 1 ou “EUA tentam lidar com alta de moradores de rua e esvaziamento dos centros” 2?

Uma mistura explosiva entre a dinâmica das políticas econômicas desenvolvidas no mundo e o insólito, na figura da pandemia, da Guerra na Ucrânia, dos eventos extremos do clima, está desconstruindo o apogeu dos grandes impérios.

E justamente pelo fato de que a força das desigualdades na contemporaneidade está traçando uma nova ordem no planeta e confrontando os países as mesmas adversidades, aos mesmos desafios, agora, as questões do racismo emergiram de maneira substancial no palco das discussões sociais.  

A secular estigmatização pejorativa não cabe mais. É impossível transitar pela realidade contemporânea sem ser afetado pelo efeito cascata das dinâmicas em curso. Ninguém é mais ou menos. Ninguém é melhor ou pior.

Em maior ou em menor escala todos estão sofrendo perdas no seu cotidiano. Perdas materiais e imateriais, que implicam cada vez mais na necessidade da visibilização e da reafirmação dos direitos humanos 3, os quais representam as normas que reconhecem e protegem a dignidade de todos os indivíduos, sem distinção de qualquer natureza. Afinal, “A menor minoria na Terra é o indivíduo. Aqueles que negam os direitos individuais não podem se dizer defensores das minorias” (Ayn Rand).

Observando, então, a celebração dos jogadores marroquinos, na Copa do Mundo, percebi neles a materialização daquilo que Eleanor Roosevelt dizia, “Não temos de nos tornar heróis do dia para a noite. Só um passo de cada vez, tratando cada coisa à medida que surge, vendo que não é tão assustadora como parecia, descobrindo que temos a força para superar”. É isso que nos dá a tranquilidade de compreender que “A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la” (Eduardo Galeano).

Assim, mesmo diante de todas as recentes tentativas dos movimentos de ultradireita em se apropriarem do mundo, o seu insucesso me parece cada vez mais real e palpável. Seus discursos e narrativas inflamados, mas vazios, não conseguem fazer frente à fúria que as conjunturas contemporâneas vêm sem moldando.

Os seres humanos estão cada vez mais conscientes de que “Não importa de onde vim, mas sim aonde quero chegar”, porque romperam as amarras sobre o fato de que “Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos“ (Eduardo Galeano).

No fim das contas, então, a beligerância irracional proposta pela ultradireita só servirá de catalizador para os acontecimentos em curso, dessa nova ordem que tende a se formar. As tentativas de esquecer o passado, de apagar a história, de negar os fatos, não surtirão mais quaisquer efeitos, simplesmente, porque as verdades estão, agora, bem diante do nariz.