A
civilidade nacional do avesso...
Por
Alessandra Leles Rocha
Cada dia mais, tenho olhado para
o Brasil como quem olha para as páginas da história do mundo e se depara com
mais uma lamentável ruptura, ou esgarçamento, do tecido social através da
incivilidade. Não há como negar que a imagem pacífica, alegre e fraterna do (a)
brasileiro (a), de repente, virou fumaça! Desapareceu. Se desconstruiu por
completo. De modo que faz sofrer e chorar quem se lembra de que um dia esse
país foi cantado em poesia, como quem pinta uma aquarela 1
de belezas e grandezas mil.
Infelizmente, não foi por culpa
da COVID-19, da Guerra da Ucrânia, da Inflação ou de quaisquer outras
conjunturas sociais adversas. O que fez o Brasil virar do avesso foi,
simplesmente, um conjunto de construções narrativas, promovidas pela
ultradireita nacional, que trouxeram legitimidade suficiente para o cidadão
romper com uma dissimulação histórica.
Como não poderia ser diferente,
pouco mais de 500 anos conseguiram produzir efeitos importantes, no sentido de
preservar certas crenças, valores e convicções. Então, hoje, posteriormente recrudescidas
a partir de certas pautas defendidas pela ultradireita contemporânea;
sobretudo, nos campos de suas camadas mais elitistas, elas deixam seus rastros
de destruição.
Racismo. Misoginia. Sexismo.
Homofobia. Aporofobia. Xenofobia. Intolerância religiosa. ... De fato, durante
muito tempo, elas pareciam estar imersas nas entrelinhas, transitando de
maneira muito sutil por não se sentirem suficientemente amparadas e respaldadas
pela legitimidade da opinião pública.
Chego a pensar que o Brasil viveu
escondido por máscaras, bem antes da COVID-19! Acontece que certos sentimentos,
emoções, crenças, valores e convicções, quando longamente gestados e
reafirmados no inconsciente coletivo, em algum momento afloram. Foi o que
aconteceu. Ao se depararem com condições ideais de manifestação, essas pessoas
deixaram as máscaras pelo chão e assumiram a sua verdadeira face. Eis, então,
que a beleza que se via no país perdeu seu encanto!
Muitos tentaram (e ainda tentam)
lançar sobre os ombros de uma chamada polarização político-partidária a
responsabilidade sobre esse movimento. Mas, não tem nada a ver. O que temos bem
diante do nariz é a expressão de um ranço histórico, colonial, que forjou um
país dividido entre dominadores e dominados, gente que pode tudo e gente que
não pode nada. Que nunca se preocupou em desenvolver uma consciência cidadã na
sua população porque a estrutura social vigente lhe parecia perfeita.
Acontece que esse tipo de
comportamento histórico leva, indubitavelmente, a construção de uma necessidade
constante de que ambos os lados reafirmem suas posições a fim de sobreviver sem
o mínimo possível de perdas ou prejuízos. Mas, quanta ingenuidade nessa
consideração! Relações assim não se estabelecem com base no equilíbrio! É claro
que os dominados sempre estiveram em desvantagem! Tiveram sempre que provar a
sua presença, a sua importância, o seu valor, a sua identidade, o seu trabalho;
embora, sem quaisquer garantias de respeito ou reconhecimento.
É preciso entender que, até bem
pouco tempo, a discrição que envolvia as práxis dos dominadores, de certa
forma, constrangia os dominados a se manterem também discretos. Mas, quando os
dominadores estouraram suas bolhas e decidiram espalhar as suas crenças,
valores e convicções, por todos os cantos, em diferentes formas e conteúdos,
eles permitiram que os dominados fizessem o mesmo. Por linhas tortas eles foram
libertos nas suas expressões mais íntimas e subjetivas. E esse é um processo
sem volta; por isso, os dominadores se apegam tanto ao passado, como se uma
volta no tempo pudesse colocar tudo no devido lugar, segundo seus pontos de
vista.
E nesse jogo de empurra-empurra,
o Brasil colorido foi desbotando! Foi ficando triste, pálido, sem graça! Em
pleno século XXI, em plena contemporaneidade, não dá mais para fingir
indiferença ao que acontece em cada esquina do país. Não dá para passar pano
nos problemas! Não dá para trivializar a reafirmação dos assédios trabalhistas,
morais e/ou sexuais, do Feminicídio, dos trabalhos análogos à escravidão, do
Racismo, da Xenofobia, da Aporofobia, ... Não dá para dissimular as inúmeras
práticas de violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial que afligem
os dominados e preenchem as páginas dos veículos de informação e comunicação
diariamente. Não dá!
O pior é que essa imagem não se
resume as fronteiras internas. O avesso do Brasil já estampa a mídia
internacional e isso cria obstáculos de credibilidade no cenário diplomático
mundial. São tantas as incertezas em meio às tensões socioambientais em curso,
promovidas e estimuladas cada vez mais pela ultradireita, que o país não parece
mais uma boa opção de turismo, de comércio, de parcerias, de nada. Sem contar
os recentes atritos promovidos contra o alicerce democrático nacional.
Que triste ver o Brasil negar o
futuro; mas, não negar seu passado de ex-colônia! Pelo contrário, repete os
mesmos equívocos e absurdos com altivez! Maltrata seus povos originários.
Explora de maneira indiscriminada suas riquezas minerais. Destrói a sua fauna e
a sua flora. Espolia seus cidadãos e suas forças de trabalho. Inferioriza e
humilha suas minorias. Enfim...
O mesmo filme de 500 anos atrás! Só que agora é exibido, inclusive, em versão digital, em canais de streaming, à revelia do interesse popular. Porque o avesso do Brasil não é uma obra de ficção! O avesso do Brasil é só a realidade indigesta, que apesar de todos os pesares nos é oferecida em doses fartas todos os dias. Contudo, não significa que foi, de algum modo, capaz de aplacar a nossa fome de dignidade, de respeito, de cidadania, até o momento.
1 Aquarela do Brasil (Ary Barroso) - https://www.youtube.com/watch?v=CA7N-CsY1os