quinta-feira, 18 de agosto de 2022

O Brasil. O Estado Laico. As eleições. ...


O Brasil. O Estado Laico. As eleições. ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Uma leitura, ainda que breve, do curso histórico do poder mostra como a Igreja perdeu seu espaço de influência político-econômica nas sociedades, passando a se dedicar apenas ao seu papel religioso, a partir da segunda metade do século XVIII.

A questão é que esse processo não foi, assim, tão bem recebido por ela. Por caminhos outros, as tentativas de reaver esse espaço jamais deixaram de existir. Foi, então, que através do surgimento de novas denominações para as religiões cristãs associadas às correntes Protestantes, um caminho foi aberto nesse sentido.

Até que, de repente, temos diante dos olhos uma ruptura flagrante, no Brasil, com a determinação constitucional em relação ao Estado Laico, ou seja, em que “é vedado, à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19, Inciso I).

Haja vista que, em nome de Deus e para alcançar uma maior capilaridade das suas atribuições, esses movimentos religiosos passaram a se fazer presentes nas populações não apenas pelas igrejas constituídas; mas, também, pelos veículos de comunicação, pelas obras assistenciais, e principalmente, pela imersão no campo político, lançando seus representantes como candidatos.

Considerando que as discussões em torno dos assuntos ligados às religiões são sempre muito difíceis e delicadas, elas acabam fluindo de maneira mais discreta e sem maiores repercussões. E esse é o ponto que merece atenção. Porque é dessa forma que elas têm conseguido se trivializar no cotidiano do Estado brasileiro e influenciar questões que afetam além do seu ciclo de seguidores.

Agora, por exemplo, quando o país está a pouco mais de 40 dias do pleito eleitoral, vem emergindo através dos veículos de informação e comunicação notícias sobre o papel desse segmento no resultado das pesquisas. Pois é, o hábito de dissecar as informações a partir de perfis sociais acabou naturalizando um aspecto que não deveria estar em pauta.

Ora, a partir de 1988, quando a Constituição estabeleceu o voto obrigatório a todos os cidadãos, tal direito significa o exercício de uma escolha de foro íntimo e intransferível, que não deveria estar submetida a nenhuma influência externa de natureza material ou subjetiva. De modo que ao enquadrar o cidadão dentro de um rol de análise religioso, pressupõe-se que essa característica seja determinante na sua decisão.  

Portanto, não há nada de normal, de natural, nessa negligência subliminar ao Estado Laico brasileiro. Não se pode negar que o peso da religião no processo eleitoral, nesse caso, não dista de tantas outras práticas popularmente conhecidas como voto de cabresto. Neste caso, há um cerceamento da liberdade de escolha, muito mais sutil, porque afeta a relação do indivíduo com o sagrado, com a fé, com os paradigmas e preceitos que ele crê e devota respeito.

Tudo isso é muito mais profundo, pois atinge as crenças, as convicções, os valores do ser humano, em um campo que lhe é totalmente pessoal. Especialmente, no que diz respeito aqueles pertencentes às camadas mais vulneráveis e desassistidas da população, as quais tendem a estabelecer uma relação muito mais próxima e intensa com essas religiões.

Afinal de contas, nos locais onde falha a assistência e a presença do Estado, essas religiões se apresentam como um bastião de esperança e alento para essas populações. De modo que elas assumem um papel de autoridade, inclusive moral, gerando um sentimento, muitas vezes, de gratidão, de subserviência, de respeito, por parte de seus fiéis. O medo do abandono social, da exclusão religiosa, então, acaba figurando como uma ameaça a autonomia e a autoralidade dessas pessoas.

Daí o inconveniente da reafirmação desse cenário a partir da naturalização dos recortes analíticos das pesquisas eleitorais, na medida em que se legitima uma situação que aponta para o trânsito por via de ilegalidade, quando afeta de algum modo a norma constitucional.

A escolha do eleitor não pode estar fundamentada em algo que não seja pertinente à sua consciência. O indivíduo não é a religião. A religião é uma escolha do indivíduo. São coisas diferentes!

A Constituição de 1988 é clara quando diz que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias“ (art. 5º, inciso VI). O que significa que não se pode usar da fé, da religião, para manipular a consciência e a escolha uns dos outros, tendo em vista que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política” (art. 5º, inciso VIII).

Infelizmente, a superficialização das análises e a irreflexão das linguagens promovida pela contemporaneidade cria situações como essa, as quais contribuem de maneira importante para a própria fragilização democrática. Porque o processo de corrosão das instituições, das liberdades, da autonomia, da participação popular, se dá de maneira quase imperceptível, necessitando muita atenção na leitura das entrelinhas cotidianas.

Além disso, o enviesamento narrativo para essa ou aquela profissão de fé, cria uma exclusão entre a pluralidade religiosa no país. Cria-se um visível tensionamento social e distorção interpretativa, constituindo um juízo de valor equivocado sobre essa ou aquela religião, no sentido de que elas passam a ser ranqueadas enquanto importantes ou desimportantes, do Bem ou do Mal.

Por isso, cuidado com seu grau de displicência, de alienação! Como escreveu o poeta alemão, Friedrich Novalis, “quando vemos um gigante, temos primeiro de examinar a posição do sol e observar para termos certeza de que não é a sombra de um pigmeu”. Afinal de contas, “A liberdade só existe quando todos os nossos atos concordam com todo o nosso pensamento” (Agostinho Silva - filósofo e poeta português).