O
Brasil. O Estado Laico. As eleições. ...
Por
Alessandra Leles Rocha
Uma leitura, ainda que breve, do
curso histórico do poder mostra como a Igreja perdeu seu espaço de influência político-econômica
nas sociedades, passando a se dedicar apenas ao seu papel religioso, a partir
da segunda metade do século XVIII.
A questão é que esse processo não
foi, assim, tão bem recebido por ela. Por caminhos outros, as tentativas de
reaver esse espaço jamais deixaram de existir. Foi, então, que através do
surgimento de novas denominações para as religiões cristãs associadas às
correntes Protestantes, um caminho foi aberto nesse sentido.
Até que, de repente, temos diante
dos olhos uma ruptura flagrante, no Brasil, com a determinação constitucional em
relação ao Estado Laico, ou seja, em que “é
vedado, à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer
cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou
manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança,
ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19,
Inciso I).
Haja vista que, em nome de Deus e
para alcançar uma maior capilaridade das suas atribuições, esses movimentos religiosos
passaram a se fazer presentes nas populações não apenas pelas igrejas constituídas;
mas, também, pelos veículos de comunicação, pelas obras assistenciais, e
principalmente, pela imersão no campo político, lançando seus representantes
como candidatos.
Considerando que as discussões em
torno dos assuntos ligados às religiões são sempre muito difíceis e delicadas, elas
acabam fluindo de maneira mais discreta e sem maiores repercussões. E esse é o
ponto que merece atenção. Porque é dessa forma que elas têm conseguido se
trivializar no cotidiano do Estado brasileiro e influenciar questões que afetam
além do seu ciclo de seguidores.
Agora, por exemplo, quando o país
está a pouco mais de 40 dias do pleito eleitoral, vem emergindo através dos veículos
de informação e comunicação notícias sobre o papel desse segmento no resultado
das pesquisas. Pois é, o hábito de dissecar as informações a partir de perfis
sociais acabou naturalizando um aspecto que não deveria estar em pauta.
Ora, a partir de 1988, quando a Constituição
estabeleceu o voto obrigatório a todos os cidadãos, tal direito significa o
exercício de uma escolha de foro íntimo e intransferível, que não deveria estar
submetida a nenhuma influência externa de natureza material ou subjetiva. De modo
que ao enquadrar o cidadão dentro de um rol de análise religioso, pressupõe-se que
essa característica seja determinante na sua decisão.
Portanto, não há nada de normal,
de natural, nessa negligência subliminar ao Estado Laico brasileiro. Não se
pode negar que o peso da religião no processo eleitoral, nesse caso, não dista
de tantas outras práticas popularmente conhecidas como voto de cabresto. Neste caso,
há um cerceamento da liberdade de escolha, muito mais sutil, porque afeta a
relação do indivíduo com o sagrado, com a fé, com os paradigmas e preceitos que
ele crê e devota respeito.
Tudo isso é muito mais profundo,
pois atinge as crenças, as convicções, os valores do ser humano, em um campo
que lhe é totalmente pessoal. Especialmente, no que diz respeito aqueles
pertencentes às camadas mais vulneráveis e desassistidas da população, as quais
tendem a estabelecer uma relação muito mais próxima e intensa com essas
religiões.
Afinal de contas, nos locais onde
falha a assistência e a presença do Estado, essas religiões se apresentam como
um bastião de esperança e alento para essas populações. De modo que elas assumem
um papel de autoridade, inclusive moral, gerando um sentimento, muitas vezes,
de gratidão, de subserviência, de respeito, por parte de seus fiéis. O medo do
abandono social, da exclusão religiosa, então, acaba figurando como uma ameaça
a autonomia e a autoralidade dessas pessoas.
Daí o inconveniente da reafirmação
desse cenário a partir da naturalização dos recortes analíticos das pesquisas
eleitorais, na medida em que se legitima uma situação que aponta para o
trânsito por via de ilegalidade, quando afeta de algum modo a norma
constitucional.
A escolha do eleitor não pode estar
fundamentada em algo que não seja pertinente à sua consciência. O indivíduo não
é a religião. A religião é uma escolha do indivíduo. São coisas diferentes!
A Constituição de 1988 é clara
quando diz que “é inviolável a liberdade
de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas
liturgias“ (art. 5º, inciso VI). O que significa que não se pode usar da
fé, da religião, para manipular a consciência e a escolha uns dos outros, tendo
em vista que “ninguém será privado de
direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”
(art. 5º, inciso VIII).
Infelizmente, a superficialização
das análises e a irreflexão das linguagens promovida pela contemporaneidade
cria situações como essa, as quais contribuem de maneira importante para a própria
fragilização democrática. Porque o processo de corrosão das instituições, das
liberdades, da autonomia, da participação popular, se dá de maneira quase imperceptível,
necessitando muita atenção na leitura das entrelinhas cotidianas.
Além disso, o enviesamento
narrativo para essa ou aquela profissão de fé, cria uma exclusão entre a
pluralidade religiosa no país. Cria-se um visível tensionamento social e
distorção interpretativa, constituindo um juízo de valor equivocado sobre essa
ou aquela religião, no sentido de que elas passam a ser ranqueadas enquanto
importantes ou desimportantes, do Bem ou do Mal.
Por isso, cuidado com seu grau de
displicência, de alienação! Como escreveu o poeta alemão, Friedrich Novalis, “quando vemos um gigante, temos primeiro de
examinar a posição do sol e observar para termos certeza de que não é a sombra
de um pigmeu”. Afinal de contas, “A
liberdade só existe quando todos os nossos atos concordam com todo o nosso
pensamento” (Agostinho Silva - filósofo e poeta português).