sexta-feira, 8 de julho de 2022

Reféns da vaidade


Reféns da vaidade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Desde que mundo é mundo, a necessidade de pertencimento sempre esteve presente na jornada humana, provando que os indivíduos não querem se manter à margem, invisíveis ou isolados da sua própria espécie.

No entanto, tendo em vista que nada na psique humana é simples ou perfeitamente lógico, o pertencimento se choca com as manifestações da vaidade, que são de caráter extremamente individualista e narcísico. Afinal de contas, o vaidoso exacerba a sua necessidade de distinção e diferenciação no coletivo.

É a busca incessante e incontida de um destaque, uma relevância, uma superioridade, que ultrapassa os limites do senso comum. O vaidoso quer sempre mais. Mais atenção. Mais reverência. Mais espaço. ... Porque ele se entende e se percebe como uma criatura agraciada de alguma prerrogativa distintiva entre os demais.

Acontece que na contemporaneidade essa característica tem se acentuado e se mostrado, cada vez mais, um traço de desequilíbrio psicocomportamental. Talvez, pela dificuldade de lidar com as frustrações, as negativas, presentes amiúde no cotidiano, a vaidade emerge como uma força combativa de contestação e de imposição de um lado idealizador da liberdade.

Ora, o perfil social edificado através do consumo instituiu no inconsciente coletivo um senso de liberdade totalmente desconectado dos limites impostos pela realidade. O ser humano passou a acreditar que pode tudo, que decide e escolhe segundo os seus interesses e vontades, desconsiderando os impactos e desdobramentos que isso pode ocasionar aos demais indivíduos.

E dentro desse contexto, é possível perceber como vem se processando o desvirtuamento social do senso coletivo, a partir de expressões da vaidade que ultrapassam as fronteiras da alteridade, da empatia, do respeito. Infelizmente, a vaidade está destruindo a sociedade tanto do ponto de vista objetivo quanto subjetivo.

Distantes, anos luz, daqueles 15 minutos de fama almejados por uns e outros, a vaidade contemporânea tem o potencial danoso de acentuar e intensificar os movimentos de desigualdade social, por grupos numericamente bastante significativos. De modo que, sem medo de errar, posso dizer que ela é uma das razões da cegueira do mundo, como descreveu José Saramago, em “Ensaio sobre a Cegueira” 1, de 1995.  

Essa vaidade estabelece uma seletividade enviesada do olhar humano, porque ela se resume a um raio de visão atenciosa mínimo. Como se a vida pudesse ser vista através de pequenos recortes dentro de um espaço de acessibilidade predeterminado pelos indivíduos.

Então, cria-se uma desconexão da realidade, no seu sentido amplo e coletivo. Algo que não só favorece a justificativa da impossibilidade de agir em favor disso ou daquilo, por um eventual distanciamento geográfico; mas, também, possibilita ser um argumento para despender energia apenas naquilo que se refere diretamente aos interesses pessoais de cada um.

Portanto, nada mais fácil para exemplificar essa vaidade contemporânea do que as relações políticas, especialmente, nesse Brasil às vésperas de uma eleição. O fluxo de notícias em torno dos acontecimentos, intra e entre os Poderes da República, apontam nitidamente para a nocividade presente nesse amálgama que se formou entre o individualismo e o narcisismo. A fogueira das vaidades arde em fogo alto no país, particularmente, entre as classes dominantes.

Pois é, a cegueira se dissemina entre nós. Cada um vê o que quer, enquanto o país vira uma mistura de fogo, carvão e cinzas, pelas mãos dessa vaidade descabida, inebriante, ensandecida. Por suas mãos podem sim, vidas serem perdidas, trabalhos serem precarizados, direitos serem destituídos, ... Quem diria que o vaidoso, tomado pela qualidade vã e vazia da ilusão, poderia ser tão destrutivo, tão perigoso, tão abjeto?

Quantos vaidosos, por aí! Circulado entre nós sob aplausos, homenagens, títulos e medalhas. Como se trouxessem consigo todas as certezas e convicções do mundo estampadas na sua aura imponente e orgulhosa. Como se a vaidade lhes configurasse uma carapaça dura e indestrutível, inabalável diante de qualquer investida das incertezas.   

Pena, que por trás desse véu de presunção, desse manto de superioridade, há sempre um ser humano como outro qualquer. Falível. Mortal. Inconstante. Frágil. Todo vaidoso, no fundo, é apenas gente. Gente que sofre de excesso de autoestima. Que se dá importância demais. Que vive a olhar o mundo de cima de uma diminuta caixa de fósforos. Que acredita que a serpente encanta a flauta e não o contrário. Que a Terra não gira em torno do Sol, mas em torno dele.

Uma pena, mesmo! Porque gente assim, demasiadamente vaidosa, quando parte desse mundo se perde no esquecimento alheio. No máximo, vira lenda, vira piada, vira exemplo do que não ser. Afinal, passou a vida tão narcisicamente encantada por si mesma que esqueceu de ser, de fazer, de realizar, de sonhar, ... de transcender a própria existência. Foi, sem deixar legado. Sem deixar saudade. Sem deixar qualquer traço de bom da sua humanidade para confirmar que um dia esteve entre nós.