sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Quem, de fato, são elas?


Quem, de fato, são elas?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Me causa um profundo desapontamento perceber o quanto a humanidade é cruel ao ponto de ideologizar questões de caráter tão claro e objetivo do cotidiano, como é o caso das desigualdades. Principalmente, porque nesse contexto as mulheres, que ocupam mais de 49% da população mundial, são as mais afetadas e prejudicadas, tendo em vista que as análises e observações a respeito desconsideram a profundidade e a complexidade do papel delas na sociedade.

É muito fácil colocar a emancipação feminina sob o prisma do ideário da libertação e da igualdade de gênero, como muitos fazem por aí. Mas, lamento frustrá-los, pois a questão se reveste por um peso de sobrevivência humana bem mais difícil de descrever. Não, não foi a consciência revolucionária e impetuosa da mulher que a lançou para além das fronteiras da sua vida cotidiana familiar. Foi a desigualdade social emergida em paralelo com a Revolução Industrial, que levou milhares de seres humanos, homens e mulheres de todas as idades, para o trabalho remunerado, a fim de garantir o mínimo que a dignidade humana necessita para não sucumbir.

Se, em pleno século XXI, as discussões sobre o empobrecimento mundial ganham destaque, na verdade, ele vem sendo tecido há pouco mais de duzentos anos, sem que uma vasta maioria da população, tão envolvida no processo produtivo, nem ao menos se desse conta. De modo que as mulheres tiveram que participar mais ativamente dos orçamentos familiares, desempenhando funções muito além daquelas de cunho doméstico. Foram para os frontes de trabalho em tempos de guerra, em tempos de penúria, em tempos de reconstrução, em tempos de paz. Aliás, à revelia de sua vontade, quantas não têm sido colocadas na condição de arrimo de família pela rudeza das circunstâncias, hein?

No entanto, a resposta da sociedade para esse fenômeno foi decepcionante. Porque a elas foi lançada a pecha de transgressoras, de inconformadas, de rebeldes, desconsiderando por completo os fatos em si. As desigualdades sociais flagrantes foram, então, invisibilizadas no sentido de se construir uma outra narrativa para a emancipação feminina. Elas passaram a ser cobradas e questionadas por tudo e por todos, além de submetidas a condições de trabalho e remuneração em total desequilíbrio aos homens, quando na mesma atividade. Algo que, em muitos casos, as obriga a ter uma jornada profissional (extra lar) duplicada ou triplicada para garantir um salário suficiente à suas demandas mais fundamentais.

Não entram nessa conta os supérfluos, ou regalias, ou privilégios. Então, quando o horizonte econômico do país acena tempos difíceis e turbulentos, com inflação alta, perda do poder de compra, juros estratosféricos, é preciso pensar que no olho desse furacão encontram-se muitas delas, esforçando-se ao máximo, daqui e dali, para dar condições de sobrevivência a si mesma e/ou sua família. Afinal de contas, nem todas dispõem de uma estrutura de apoio, ou seja, família, funcionária do lar, babá, passadeira, para dar conta do recado. De modo que elas são obrigadas a se desdobrar em inúmeros papéis na busca do pão de cada dia.

Infelizmente, indústrias, empresas de médio e grande porte, instituições públicas e privadas, ainda consideram a manutenção de creches, para os filhos de seus funcionários, por exemplo, uma despesa desnecessária, um luxo insustentável. O que faz com que casos como o de uma mãe que foi proibida de assistir às aulas em uma faculdade com a filha de 11 meses1 não seja único e exponha a obstaculização às redes de apoio para mulheres. Essa ausência gera inevitavelmente uma fragilização no desempenho profissional e educacional feminino, em razão da instabilidade gerada por não se sentirem seguras quanto ao bem-estar dos filhos. Mulheres nessa situação tendem a faltar mais aos compromissos, se afastarem temporariamente do mercado de trabalho ou da escola, se tornarem mais ansiosas e desatentas, enfim...

E apesar de haver quem diga, com ares de reprovação e desqualificação das minhas considerações acima, de que mesmo assim, as estatísticas apontam a existência de “uma tendência geral de aumento da escolaridade das mulheres em relação aos homens, sendo que as mulheres atingem em média um nível de instrução superior ao dos homens” 2, os números carecem de capacidade representativa desse processo em si. Porque elas estão estudando mais, se qualificando mais, em busca de melhores condições de sobrevivência; mas, isso ainda não significa uma ruptura real com as desigualdades profissionais de gênero. Ou seja, além de todos os sacrifícios que essa busca lhes impõe cotidianamente, dadas as múltiplas jornadas que elas precisam realizar e a ausência de uma rede de apoio, a equidade de direitos e benefícios na hora de atuar profissionalmente permanece no campo das discussões.

Precisamos parar de disseminar a ideia de uma “guerra dos sexos”, quando estamos diante da mais dolorosa e difícil guerra pela sobrevivência humana. No fim das contas, na legião dos humilhados, dos espoliados, dos massacrados pelo sistema socioeconômico vigente, não há distinção entre eles e elas. Pode ser que em alguns setores da sociedade eles sejam mais em outros elas sejam mais, não importa. No frigir dos ovos, são apenas seres humanos. Que precisam fazer bonito, todos os dias, para não serem consumidos pela voracidade da indignidade humana.

Essa história do discurso do “homem provedor” não se sustenta mais. Não vão os 94% da sociedade brasileira, distribuídos entre a classe média tradicional e a classe baixa3, reunir os esforços econômicos conjuntos de seus homens e mulheres, para ver aonde a crise vai chegar. Antes de elevar o dedo em riste para uma mulher, lembre-se de reconhecer que foram os modelos econômicos desenvolvidos para atender a sociedade do consumo, do progresso e da tecnologia, que as deslocaram das suas realidades domésticas e vêm deteriorando a sua qualidade de vida pelo excesso de obrigações e compromissos.

E isso vale principalmente para mulheres que insistem em desqualificar, em objetificar, em desonrar, sua própria classe. Elas precisam entender que “Toda vez que uma mulher se defende, sem nem perceber que isso é possível, sem qualquer pretensão, ela defende todas as mulheres” (Maya Angelou - escritora e poetisa norte-americana), porque, no fundo, ela deixa bem claro que “não está aceitando as coisas que ela não pode mudar, está mudando as coisas que ela não pode aceitar” (Angela Davis – filósofa norte-americana). Afinal, “eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas” (Audre Lorde - escritora e ativista norte-americana).