O
Ser Humano; As Doenças...
Por
Alessandra Leles Rocha
Os vírus sempre estiveram e
estarão entre nós, isso é fato. Por isso, dada a sua invisibilidade eles nos
colocam sob um nível de vulnerabilidade extrema, o que exige uma disposição ao
cuidado, a vigilância, a precaução, também extrema. Acontece que os avanços das
ciências e tecnologias biomédicas, ao longo dos séculos, trouxe uma aura de
certa segurança e conforto para lidar com determinadas patologias virais.
Considerando-se que para algumas
já existem vacinas e medicamentos, muita gente sai por aí, pensando que está
tudo bem, que o pior está sob controle, que se ficarem doentes há recursos disponíveis
para contornarem a situação. Acontece que não é bem assim que a banda toca. Aliás,
estamos acompanhando minuto a minuto o desenrolar da pandemia do Sars-Cov-2 e
suas variantes, para termos tanto a dimensão da importância das vacinas na
mitigação dos casos graves e gravíssimos, quanto à contínua escalada da
letalidade por grupos negacionistas ou por indivíduos altamente debilitados.
De modo que os avanços científicos
e tecnológicos merecem sim, ser celebrados e reverenciados, mas é fundamental
não perder o foco sobre o fato de que os vírus ainda detêm um controle importantíssimo
sobre a dinâmica das doenças por eles provocadas. Simplesmente, porque ao assumirem
o controle das células humanas para a sua reprodução, a forma como o organismo
hospedeiro irá responder a esse ataque, dadas as suas condições clínicas, pode
trazer consequências e desdobramentos inesperados e/ou impossíveis de reversão
pelos recursos das ciências e tecnologias biomédicas disponíveis.
Então, lendo duas matérias publicadas
a respeito do vírus HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana), publicadas este mês
1, considerei oportuno trazer uma
reflexão, tendo em vista de que desde a década de 1980, ele já infectou “79,3
milhões [55,9 milhões – 110 milhões] de pessoas”; bem como, matou “36,3 milhões
[27,2 milhões – 47,8 milhões] de pessoas por doenças relacionadas à AIDS
(Síndrome da Imunodeficiência Adquirida)” 2.
No entanto, não fossem as eventuais matérias publicadas pelos veículos de
informação e comunicação, em geral, a sociedade não repercute mais as
discussões a respeito dessa epidemia.
Porém, o HIV está aí, a AIDS está
aí. Segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), “em 2020, havia 37,7 milhões [30,2 milhões –
45,1 milhões] de pessoas vivendo com HIV. 36 milhões [28,9 milhões – 43,2
milhões] de pessoas adultas. 1,7 milhão [1,2 milhão – 2,2 milhões] de crianças
(0 a 14 anos). 53% das pessoas que vivem com HIV são mulheres e meninas. 84%
[67% - >98%] de todas as pessoas vivendo com HIV conheciam seu status para
HIV em 2020. Cerca de 6,1 milhões [4,9 milhões – 7,3 milhões] de pessoas não
sabiam que estavam vivendo com HIV em 2020”.
Portanto, é fundamental
esclarecer que não apenas entre profissionais do sexo e sua clientela, gays e
outros homens que fazem sexo com homens, pessoas usuárias de drogas; mas, todo
e qualquer indivíduo pode estar exposto ao contato inadvertido com sangue e
fluidos corporais contaminados com o vírus. Já pensou, por exemplo, em quantas
clínicas clandestinas que existem fazendo procedimentos médicos diversos, sem o
menor rigor e controle sanitário? Ou que basta um equívoco no controle de
hemoderivados de um banco de sangue, em qualquer lugar do planeta, para que
pessoas sejam eventualmente contaminadas?
Infelizmente, não é possível ter
o controle absoluto da prevenção. Cada um deve e precisa fazer a sua parte
nesse processo. Daí a necessidade, da discussão, do diálogo, da conscientização
sobre todas as camadas que envolvem a infecção pelo HIV e o desenvolvimento da
AIDS. Afinal, “ao contrário de outros
vírus, o corpo humano não consegue se livrar do HIV. Isso significa que uma vez
que você contrai o HIV, você viverá com o vírus para sempre” 3. Sem contar que o HIV abre as
portas do organismo para outras infecções oportunistas, tais como a
Pneumocistose, a Histoplasmose e a Tuberculose.
Vale destacar que “em 2019, no Brasil, foram estimados 96 mil
novos casos incidentes de tuberculose (TB); dos quais 11.000 ocorreram entre
pessoas vivendo com HIV. Para o mesmo ano, houve 6.700 mortes por tuberculose. Destas
4.900 foram entre pessoas com sorologia negativa para HIV e 1.800 entre pessoas
que viviam com HIV” (UNAIDS / estatísticas). E esta é uma doença extremamente
contagiosa, porque se dá pelo contato direto com o doente, ou seja, através da
fala, espirro, tosse, objetos pessoais /roupas / utensílios contaminados,
ingestão de leite / carne bovina / derivados contaminados.
De modo que o silêncio, a
banalização e/ou a negação de qualquer doença é um dos caminhos mais curtos
para a construção de um cenário epidêmico; quiçá, pandêmico. Porque a vida no
contexto social implica necessariamente em uma convivência e coexistência com pessoas
diversas. As quais, na maioria das vezes, não se conhece em profundidade seus
comportamentos, hábitos, costumes e práticas. E todo ser humano é um carregador
de patógenos em potencial, que ele leva de um lugar para outro sem saber, tendo
em vista que os agentes infectocontagiosos dispõem de períodos de incubação
antes de manifestarem a doença.
Portanto, cada vez mais não temos
espaço para descuidos, para negligências, para comportamentos irresponsáveis. Estamos,
desde sempre, imersos em um ambiente repleto de inimigos invisíveis, vigilantes
e à espreita para nos pegar desprevenidos e nos atacar. Alguns já notoriamente
conhecidos, outros a se conhecer, enfim. Alguns com tratamento disponível,
outros não. O que significa um flertar com a morte, dadas as atuais conjunturas.
E isso não tem a menor graça. Não faz o menor sentido.
Mas, considerando o fato de que
milhões de pessoas estão sendo deixadas à mingua, morrendo de fome, de sede, de
desassistência, de doenças como a AIDS, a Tuberculose, a Sífilis, o Câncer e, até mesmo, a COVID-19, enquanto os mais
ricos e poderosos voltam os seus olhos para o céu, em busca de um novo planeta
para “experimentar, colonizar, civilizar
e ‘humanizar’” 4, de fato, nada mesmo
faz sentido. Porque mudar de lugar, de geografia, de espaço, não extingue quaisquer
problemas. Na medida em que o ser humano é quem os produz, é quem dispõe da
nobre engenhosidade de configurá-los.
Portanto, talvez, seja hora de recobrar a razão, de assumir as responsabilidades sobre o agora, de enfrentar os desafios nada poéticos desses tempos caóticos contemporâneos. O HIV e todos os demais agentes infectocontagiosos continuam vitimando as pessoas, como se nada estivesse acontecendo; assim como, todas as mazelas sociais também o têm feito. E o que faz a humanidade? Banaliza. Trivializa. Invisibiliza. Nega. Até que, de repente, se vitimiza como um último refúgio para se dissociar da sua própria inação e negligência, para se livrar da sua voluntária irresponsabilidade diante e com a vida.
1 https://g1.globo.com/saude/noticia/2022/02/03/variante-do-hiv-mais-transmissivel-e-agressiva-e-encontrada-na-holanda.ghtml
4 O Homem; As viagens (Carlos Drummond de Andrade) - https://www.letras.mus.br/carlos-drummond-de-andrade/807510/