quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Vai doer no bolso...


Vai doer no bolso...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Essa estranha mania de entender a vida a partir de fragmentos desconectados, no fim das contas é inútil porque não satisfaz as vontades e, nem tampouco, reescreve o curso pré-definido da história.

Há décadas que se ouve falar a respeito das mudanças climáticas, dos seus desdobramentos e impactos, inclusive no campo dos deslocamentos humanos sobre a Terra; mas, a resistência em admitir toma conta das mentes e das decisões de maneira implacável.

Felizmente, à revelia dos seres humanos as conjunturas se organizam de maneira independente e colocam “os pingos nos is” como deve ser. Eis que estamos, então, à beira de um xeque-mate bem dado pela Natureza.

Entre os extremos do clima, no que diz respeito à severidade da estiagem sobre algumas regiões e as inundações devastadoras em outras, nossa sobrevivência está sendo bombardeada por inúmeras consequências nefastas, dentre elas, os resultados assoladores sobre a produção de alimentos.

Aliás, a recente aprovação pela Câmara dos Deputados, em Brasília, do projeto que altera a legislação sobre os agrotóxicos deveria constrangê-los pelo ridículo que ele representa, considerando-se o cenário caótico que a agricultura no país tende a enfrentar pelos próximos anos e décadas.

Afinal de contas, a relevância desses produtos químicos frente à gravidade das intempéries desparece como fumaça, na medida em que as próprias lavouras são consumidas tanto pela aridez das secas prolongadas quanto pelas enchentes torrenciais. Em suma, o agrotóxico não resolve nada, não protege nada, não evita nada; mas, o prejuízo fica para o agricultor e o lucro para o fabricante, o vendedor, de insumos agrícolas.

Portanto, deveriam os nobres legisladores estarem mais atentos e preocupados com os rumos da produção agropecuária no país. A continuarem fazendo vista grossa para a expansão indiscriminada das fronteiras agrícolas, através de desmatamentos e queimadas ostensivas, eles estão impulsionando a disparada da inflação, especialmente, sobre os alimentos. O que não é difícil nem perceber e nem entender.

Ora, a intervenção antrópica nos principais biomas nacionais, com vistas ao aumento da produção pelo agronegócio brasileiro, constitui uma rede de desmonte do equilíbrio ecossistêmico e, também, climático. De modo que a sua reincidência recrudesce a consolidação dos efeitos negativos provocados, inviabilizando as tentativas de reconstituição promovidas pelo próprio Meio Ambiente. O que significa dizer que vão se tornando perenes as novas configurações morfoclimáticas, as quais são incapazes de atender as demandas vitais e mercantis da população, expondo-a a insuficiência ou a inexistência dos recursos naturais.

A questão é que frente a esse processo, eventuais investimentos agrocientíficos e tecnológicos, não conseguem responder com êxito, porque a base sobre a qual pretendem atuar está sob influência da imprevisibilidade climática. 

Portanto, não há como proteger as produções de eventos extremos do clima, tais como tornados, inundações, deslizamentos, vendavais, chuvas de granizo, geadas, estiagem prolongada, incêndios florestais decorrentes de altas temperaturas sobre áreas secas.

Afinal, como todo mundo sabe, as grandes lavouras não são constituídas dentro de estufas. Nunca vi estufa de soja, café, milho,... no máximo, algumas de hortaliças, e olhe lá!

Assim, as perdas são muito significativas. Aliás, é importante ressaltar que, embora tenham buscado oferecer a sua contribuição no campo da produção de alimentos, em todo o mundo, as Agrociências e Agrotecnologias se mostraram incapazes de resolver todos os desafios naturais envolvidos no processo, especialmente, no tocante às grandes áreas de produção. 

O clima ainda é o senhor que comanda o sucesso do agronegócio, independentemente, dos recursos disponíveis e investidos na produção. De modo que ele nivela o pequeno e o grande produtor rural ao mesmo patamar da incerteza. A produção vive na constante expectativa dos humores do clima. Pode-se ganhar; mas, também, pode-se perder. É tudo ou nada.

E pensando em uma população global que deve atingir a cifra de quase 8 bilhões de seres humanos, uma baixa produção de alimentos, por parte, principalmente, dos países já consolidados como grandes exportadores, como é o caso brasileiro, tudo isso pode representar um acirramento da insegurança alimentar no planeta.

Pois é, não é só o prejuízo para o produtor o que está em jogo. Isso significa uma ameaça real ao direito humano de ter acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente, para atender às suas necessidades biológicas fundamentais.

Desse modo, a situação pode ser analisada primeiramente pela perspectiva da Lei da Oferta e Demanda, na medida em que a quantidade regula o preço, ou seja, quanto menos produto, mais caro e inacessível ele se torna para a grande massa da população.

Depois, pelo fato de que cada vez que a produção se faz insuficiente aqui, somos obrigados a importar. Pagamos caro, pagamos em dólar pelo o que nos falta. E isso, também, é um agregador para a inflação de alimentos.

Por fim, os impactos que o desequilíbrio alimentar e nutricional pode repercutir sobre o desenvolvimento e a saúde das populações; sobretudo, aquelas já naturalmente vulneráveis e desassistidas.

Pensando, rapidamente, no contexto da pandemia ainda em curso, a insegurança alimentar nesses casos pode representar desdobramentos inimagináveis para a manifestação da doença, na medida em que encontra organismos fracos, debilitados, incapazes de ter uma resposta imune satisfatória.

Olhemos, então, para a vida como ela é, um grande quebra-cabeças. Para ter lógica, para fazer sentido, é preciso que as peças sejam reunidas adequadamente, e conectando umas com as outras a fim de elucidar as imagens, as informações.

Por que esperar doer no bolso, para tomar as atitudes corretas? A reflexão exposta não diz respeito à A, B ou C. Não, ela diz respeito a todos nós. Há três elementos básicos que sustentam a sobrevivência de qualquer ser vivo: água, alimento e abrigo.

Portanto, nós fazemos parte disso. Precisamos de alimentos para sobreviver; mas, para alcançarmos essa meta temos que rever as nossas práticas e condutas quanto ao uso, a ocupação e a sustentabilidade ambiental. Isso implica em não se esquecer de que a escolha errada não vai fazer doer só o estômago, vai fazer doer no bolso.