Nos
vieses de uma “Semântica contemporânea”
Por
Alessandra Leles Rocha
Vários segmentos da sociedade têm
se posicionado a favor de nomear fatos e manifestações cotidianas corretamente
para se evitar o velho costume das desculpas vazias.
Afinal, muita gente por aí se
vale da expressão oral para destilar suas crenças, valores, ignorâncias e
venenos, sob o pretexto de que as palavras evaporam no vento e não deixam
registro.
De modo que aquele provérbio de “quem conta um conto, aumenta um ponto”,
acaba caindo como uma luva tanto para colaborar na desconstrução das reais
intenções implícitas no discurso, porque se extrapolam os limites daquilo que
foi realmente manifesto, quanto para propagar no círculo social a gravidade da
questão.
Acontece que muita água rolou
debaixo das pontes do mundo nesses mais de 2000 anos de história. Então, em
pleno século XXI, as palavras não fluem mais sozinhas na imensidão.
As contemporâneas tecnologias
chegaram para resguardar as comunicações por meio de vídeos, stories, snapchats, lives e afins,
fixando assim, as palavras no tempo e nas nuvens tecnológicas.
O que significa que as perdas de
conteúdos foram minimizadas e aquilo que se diz pode sim, ter repercussões
desastrosas por muito tempo.
Entretanto, pensando bem, antes
desse rebuliço todo, a sociedade já andava atenta aos excessos, aos absurdos,
as inconsequências resultantes da verborragia incontrolável de uns e outros,
que resolveu estabelecer um freio para tudo isso.
Casos de muita repercussão
acabaram fomentando o surgimento de leis, as quais criminalizam questões
importantes, como é o caso do racismo e da injúria racial.
Sendo assim, não cabe mais sair
falando pelos cotovelos, reproduzindo ideias proferidas por vozes da própria
cabeça, porque isso pode acabar nas mesas dos tribunais.
Aliás, é bom se inteirar da
legislação vigente antes de pensar em abrir a boca e deixar saltar impropérios
contra quem quer que seja.
Racismo, por exemplo, não é um
crime que se comete apenas contra os negros, como muitos pensam. Segundo a lei
n. º 7.716, de 5 de janeiro de 1986, e alterada pela lei n. º 9.459, de 13 de
maio de 1997, “Serão punidos, na forma
desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional” (art. 1º), considerando que houve
a prática, a indução ou a incitação a tais crimes (art. 20).
E como o crime de injúria racial
foi equiparado ao de racismo e tornado imprescritível, cabe ainda mais atenção
aos desavisados de plantão.
Afinal, a própria Constituição
Federal já assegurava, desde 1988, não só a dignidade da pessoa humana (art.
1º, inciso III), como, também, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art.
3º, inciso IV) e a prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao terrorismo e
ao racismo (art. 4º, incisos II e VIII, respectivamente).
Pena que muitos parecem não se
importar em flagrantemente infringir as leis do país. Foi o caso da mais recente
manifestação do Presidente da República ao se referir aos nordestinos como “pau de arara” 1.
Além de demonstrar desprezo pela
legislação brasileira, incluindo a própria Constituição que ele jurou
respeitar, faltou-lhe o decoro para com a liturgia que o cargo exige.
Não se pode dar caráter de
informalidade, de banalidade, aquilo que não é informal e, muito menos, banal. Ao
se apresentar publicamente como o Presidente da República, ele abdica da
condição de pessoa comum e, portanto, tudo o que ele pensa, diz e faz tem um
grau de responsabilidade, muito maior, imbuído.
E essa não foi a primeira e,
certamente, não será a última vez em que ele agirá assim. Em toda a sua
trajetória de homem público, os registros são muitos 2.
A grande questão é que vivemos
uma época em que as pessoas para legitimarem as suas infrações e transgressões,
se unem em aprovação aqueles que possam, dada a sua importância ou destaque
social, representá-las nesse contexto.
Então, considerando que o
Presidente da República diz isso ou aquilo, abre-se precedente para que outros
se sintam à vontade para fazer o mesmo.
O que demonstra uma afronta
deliberada às leis, aos códigos, aos protocolos, aos pilares que organizam a
sociedade a fim de se evitar tensões e conflitos desnecessários.
Aliás, é imperioso lembrar que as
expressões da linguagem não acontecem à revelia do pensamento. Nunca é à toa.
Nunca é sem pensar. A linguagem, a comunicação, nasce das intenções, das
ideias, dos sentimentos, das emoções, conscientes e inconscientes.
Quem nunca cometeu um ato falho,
por exemplo? Mas, ainda que não se desejasse expressar daquela maneira, o
inconsciente que nos pertence da maneira mais pessoal e indissolúvel possível,
naquele momento não deixou dúvidas a respeito.
Lamento informar; mas, as
linguagens desnudam a nossa essência. Por isso, não tem desculpa. E tentar
corrigir pode ser ainda mais danoso.
É uma pena perceber como as
pessoas desperdiçam a sua existência, no sentido do aprimoramento da própria
expressão da linguagem.
Medir, pesar, avaliar,
considerar, refletir, são comportamentos que surgem, geralmente, do movimento
contínuo de formação ética, moral e intelectual promovido, em grande parte,
pelo tempo.
Assistindo e participando dos
acontecimentos da vida, do mundo, tanto como observadores próximos quanto
distantes. Às vezes protagonistas, outras coadjuvantes.
Mas, em plena contemporaneidade,
isso parece cada vez mais raro. As pessoas não querem ter ideias. Não querem
tecer reflexões, análises. Não querem dialogar. Não querem exercer a
civilidade. Não... elas querem falar, falar, falar... Sem nexo. Sem lógica. Sem
motivo. Como se precisassem dar vazão a um turbilhão que lhes consome o
espírito, que lhes retira a paz, que lhes desordena os sentidos.
De fato, aquelas palavras todas
lhes pertencem. Estavam lá, guardadas, prontas para explodir ao primeiro
arroubo; mas, no fundo são um disfarce se comparadas as outras bem mais
impactantes e inconfessáveis, que permanecem escondidas.
Por isso, basta de contemporizar,
de amenizar, de relevar, de “passar
pano”, para os absurdos que se ouvem em cada esquina do mundo real e
virtual. Não tem graça. Não é piada. Por trás de toda fumaça há fogo.
Daí a necessidade de mantermos a integridade
de nomear as coisas corretamente. Toda e qualquer tentativa de manipular as
palavras, de moldá-las, de ajustá-las, dentro desse ou daquele sentido, que
melhor nos agrade ou favoreça, no fim das contas acaba em vão.
Precisamos, e urgentemente, é
fazer com que elas se reapropriem do seu verdadeiro sentido e sejam capazes de
dar a coesão e a coerência que as ideias exigem. Paremos, então, de tentar contrariar
o óbvio, porque “uma coisa é uma coisa,
outra coisa é outra coisa”.