Tanto
a se pensar. Tanto a se fazer.
Por
Alessandra Leles Rocha
São muitas as reflexões que cabem
nesse Dia Mundial de Combate ao Câncer,
a começar pela perspectiva de discutir a doença além dela própria. Pois é, não
se trata apenas de todas as inovações científicas e tecnológicas que envolvem
os tratamentos para os diferentes tipos de câncer. Antes de tudo é preciso
pensar no câncer, contextualizando-o ao cotidiano da vida humana que é, na
verdade, o ponto de partida para se entender com mais propriedade o seu
devastador poder de disseminação.
Em linhas gerais, os cânceres são
as consequências de uma produção celular desordenada, oriunda de informações
incorretas ou imprecisas fornecidas pelo núcleo das células. Na verdade,
diariamente o corpo humano produz células assim, impróprias ou defeituosas;
mas, que são rapidamente retiradas de circulação e eliminadas. Entretanto, por
diversas razões, de repente acontece de elas, ao contrário da eliminação
natural, serem mantidas e darem início a uma reprodução sequencial anômala, a
qual resultará na formação dos tumores.
Isso demonstra que seria
necessária uma vigilância constante em relação à qualidade da nossa saúde para prevenir
ou tentar evitar algo nesse sentido. Mas, no caso do Brasil, por exemplo,
embora o Sistema Único de Saúde (SUS) seja capilarizado por todo o território,
isso não significa necessariamente que a acessibilidade à saúde seja plenamente
desfrutada por todos os cidadãos. A desigualdade e a inequidade de acesso aos
serviços de baixa, média e alta complexidade são uma realidade.
De modo que esse é o primeiro
desafio a ser enfrentado por milhões de pessoas em todo o mundo. Infelizmente,
o acesso aos serviços de saúde marca uma das fronteiras da desigualdade 1. Por razões financeiras, então, muita
gente não tem como custear consultas, medicamentos, tratamentos e cirurgias em
todos os campos da saúde. Não é à toa que, no caso dos cânceres, a maioria é
descoberta já em estágio avançado, limitando as possibilidades de se evitar a
letalidade, dada a longa espera por cada etapa do processo; sobretudo, quando
na dependência dos serviços públicos.
Além disso, os centros de
tratamento oncológico geralmente estão localizados em cidades de médio e grande
porte. De modo que os pacientes precisam se deslocar, muitas vezes, em longos e
cansativos trajetos para cumprirem o seu tratamento. Assim, mesmo contando com
o eventual apoio logístico e, em alguns casos, orçamentário, por parte de
estados e municípios, todo esse processo ainda implica em custos para os
pacientes. O que significa que além dos riscos impostos pelas viagens por
estradas ruins, mal sinalizadas, eles também têm que arcar com alimentação e
hospedagem, dependendo da situação.
Portanto, isso explica apenas uma
pequena parte do que envolve a prevenção do câncer e de tantas outras doenças. Afinal,
se engana quem pensa que possíveis descuidos e desatenções sintetizem esse
assunto. Não. No caso dos cânceres, por exemplo, a Ciência já entendeu que há
uma série de componentes agindo para o seu aparecimento. Alguns de natureza bioquímica,
fisiológica e hereditária. Outros de natureza externa e ambiental, tais como
radiações, poluições, medicamentos e agrotóxicos; os quais, na maioria do
tempo, passam despercebidos da análise e consideração da população em geral.
Por isso, o câncer é uma doença
tão desafiadora. Daqui e dali os componentes desencadeadores acabam escapando
às possibilidades de prevenção. Lamentavelmente, estamos imersos em condições e
conjunturas muito desfavoráveis. A chamada “vida
saudável” tão defendida como pressuposto na luta contra o câncer, por
exemplo, é um ideário quase intangível. Para quem pensa somente na luta contra
o sedentarismo, devo esclarecer que as práticas de atividades físicas são
insuficientes se não vierem acompanhadas de outras bem mais complexas. Assim, como ser saudável se … respiramos um ar
de péssima qualidade, repleto de contaminantes, particulados e gases
potencialmente carcinogênicos?
Se a água e o solo, onde se produzem
os alimentos a serem consumidos, seguem pelo mesmo caminho ruim? Se o nível de estresse, a que somos submetidos,
ultrapassa e muito os limites do tolerável e acelera demasiadamente o envelhecimento
e a deterioração celular? Se para tentar frear a ansiedade fazemos uso de
álcool, fumo e outras drogas, notoriamente prejudiciais à saúde? Se somos
bombardeados por diferentes emissões de radiação? Se consumimos alimentos produzidos
a partir de tecnologias genéticas e químicas, que produzem efeitos cumulativos
em nosso organismo, dada a sua incapacidade de metabolizá-los adequadamente?
É por essas e por outras, que as
estimativas apontadas pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA), para o triênio 2020-2022,
são de 625 mil novos casos oncológicos no Brasil2.
Veja bem, só para o Brasil. Imagina em todo o mundo! Admitindo ou não, tudo
isso reflete o modo como a humanidade se permitiu organizar as suas relações socioeconômicas
e como cada indivíduo vem se encaixando nesse modelo, na sua luta diária pela sobrevivência.
A dinâmica do cotidiano tem sido
cada vez mais frenética, intensa, que ela acaba absorvendo a capacidade de
reflexão das pessoas até ao nível das minúcias; por isso, elas deixam de
enxergar as doenças associadas aos seus agentes promotores. Elas não conseguem dimensionar
o peso que os agentes de natureza externa e ambiental tiveram sobre o
aparecimento daquela patologia. Que de certa forma, consciente ou não, eles próprios
abriram canais que propiciaram essa ação nociva e degradante sobre seus corpos.
Aliás, dentre os afortunados que
conseguem vencer a sua luta particular contra o câncer, ou qualquer outra doença
muito grave, se torna um senso comum reavaliar o seu contexto existencial, os
seus hábitos, seus comportamentos, suas prioridades na vida, em busca de uma
relação muito mais harmoniosa e socioambientalmente equilibrada. É lógico que
eles não vão conseguir um êxito completo nessa empreitada, porque o planeta já
está muito comprometido do ponto de vista ambiental; mas, o simples fato de
mitigar os efeitos ruins já contribui, e muito, para reduzir o potencial
cumulativo.
Não nos esqueçamos de que nada
nessa vida é de graça. O desenvolvimento, o progresso, a industrialização, a
mecanização, a robotização e tudo mais que se interconecta com esses processos,
cobra seu preço material e imaterial da sociedade e, por consequência, da nossa
própria saúde. É curioso que toneladas de lixo acumuladas por aí, por exemplo, possam
desencadear desconforto em nós; mas, não paramos para pensar sobre os resíduos que
sujam o nosso corpo por dentro. Que bradamos contra os impactos ambientais
negativos, sempre, de uma perspectiva externa a nós mesmos, como se o nosso
organismo também não fosse um modelo de ecossistema.
Como dizia Sidarta Gautama (Buda), “os homens que perdem a saúde para juntar dinheiro e depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde; por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem o presente, de tal forma que acabam por nem viver no presente e nem no futuro; vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se nunca tivessem vivido”. Infelizmente, “não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente” (Jiddu Krishnamurti – filósofo e escritor indiano). Assim, pensemos a respeito!