sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Tanto a se pensar. Tanto a se fazer.


Tanto a se pensar. Tanto a se fazer.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

São muitas as reflexões que cabem nesse Dia Mundial de Combate ao Câncer, a começar pela perspectiva de discutir a doença além dela própria. Pois é, não se trata apenas de todas as inovações científicas e tecnológicas que envolvem os tratamentos para os diferentes tipos de câncer. Antes de tudo é preciso pensar no câncer, contextualizando-o ao cotidiano da vida humana que é, na verdade, o ponto de partida para se entender com mais propriedade o seu devastador poder de disseminação.

Em linhas gerais, os cânceres são as consequências de uma produção celular desordenada, oriunda de informações incorretas ou imprecisas fornecidas pelo núcleo das células. Na verdade, diariamente o corpo humano produz células assim, impróprias ou defeituosas; mas, que são rapidamente retiradas de circulação e eliminadas. Entretanto, por diversas razões, de repente acontece de elas, ao contrário da eliminação natural, serem mantidas e darem início a uma reprodução sequencial anômala, a qual resultará na formação dos tumores.

Isso demonstra que seria necessária uma vigilância constante em relação à qualidade da nossa saúde para prevenir ou tentar evitar algo nesse sentido. Mas, no caso do Brasil, por exemplo, embora o Sistema Único de Saúde (SUS) seja capilarizado por todo o território, isso não significa necessariamente que a acessibilidade à saúde seja plenamente desfrutada por todos os cidadãos. A desigualdade e a inequidade de acesso aos serviços de baixa, média e alta complexidade são uma realidade.

De modo que esse é o primeiro desafio a ser enfrentado por milhões de pessoas em todo o mundo. Infelizmente, o acesso aos serviços de saúde marca uma das fronteiras da desigualdade 1. Por razões financeiras, então, muita gente não tem como custear consultas, medicamentos, tratamentos e cirurgias em todos os campos da saúde. Não é à toa que, no caso dos cânceres, a maioria é descoberta já em estágio avançado, limitando as possibilidades de se evitar a letalidade, dada a longa espera por cada etapa do processo; sobretudo, quando na dependência dos serviços públicos.

Além disso, os centros de tratamento oncológico geralmente estão localizados em cidades de médio e grande porte. De modo que os pacientes precisam se deslocar, muitas vezes, em longos e cansativos trajetos para cumprirem o seu tratamento. Assim, mesmo contando com o eventual apoio logístico e, em alguns casos, orçamentário, por parte de estados e municípios, todo esse processo ainda implica em custos para os pacientes. O que significa que além dos riscos impostos pelas viagens por estradas ruins, mal sinalizadas, eles também têm que arcar com alimentação e hospedagem, dependendo da situação.  

Portanto, isso explica apenas uma pequena parte do que envolve a prevenção do câncer e de tantas outras doenças. Afinal, se engana quem pensa que possíveis descuidos e desatenções sintetizem esse assunto. Não. No caso dos cânceres, por exemplo, a Ciência já entendeu que há uma série de componentes agindo para o seu aparecimento. Alguns de natureza bioquímica, fisiológica e hereditária. Outros de natureza externa e ambiental, tais como radiações, poluições, medicamentos e agrotóxicos; os quais, na maioria do tempo, passam despercebidos da análise e consideração da população em geral.

Por isso, o câncer é uma doença tão desafiadora. Daqui e dali os componentes desencadeadores acabam escapando às possibilidades de prevenção. Lamentavelmente, estamos imersos em condições e conjunturas muito desfavoráveis. A chamada “vida saudável” tão defendida como pressuposto na luta contra o câncer, por exemplo, é um ideário quase intangível. Para quem pensa somente na luta contra o sedentarismo, devo esclarecer que as práticas de atividades físicas são insuficientes se não vierem acompanhadas de outras bem mais complexas.  Assim, como ser saudável se … respiramos um ar de péssima qualidade, repleto de contaminantes, particulados e gases potencialmente carcinogênicos?

Se a água e o solo, onde se produzem os alimentos a serem consumidos, seguem pelo mesmo caminho ruim?  Se o nível de estresse, a que somos submetidos, ultrapassa e muito os limites do tolerável e acelera demasiadamente o envelhecimento e a deterioração celular? Se para tentar frear a ansiedade fazemos uso de álcool, fumo e outras drogas, notoriamente prejudiciais à saúde? Se somos bombardeados por diferentes emissões de radiação? Se consumimos alimentos produzidos a partir de tecnologias genéticas e químicas, que produzem efeitos cumulativos em nosso organismo, dada a sua incapacidade de metabolizá-los adequadamente?

É por essas e por outras, que as estimativas apontadas pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA), para o triênio 2020-2022, são de 625 mil novos casos oncológicos no Brasil2. Veja bem, só para o Brasil. Imagina em todo o mundo! Admitindo ou não, tudo isso reflete o modo como a humanidade se permitiu organizar as suas relações socioeconômicas e como cada indivíduo vem se encaixando nesse modelo, na sua luta diária pela sobrevivência.

A dinâmica do cotidiano tem sido cada vez mais frenética, intensa, que ela acaba absorvendo a capacidade de reflexão das pessoas até ao nível das minúcias; por isso, elas deixam de enxergar as doenças associadas aos seus agentes promotores. Elas não conseguem dimensionar o peso que os agentes de natureza externa e ambiental tiveram sobre o aparecimento daquela patologia. Que de certa forma, consciente ou não, eles próprios abriram canais que propiciaram essa ação nociva e degradante sobre seus corpos.

Aliás, dentre os afortunados que conseguem vencer a sua luta particular contra o câncer, ou qualquer outra doença muito grave, se torna um senso comum reavaliar o seu contexto existencial, os seus hábitos, seus comportamentos, suas prioridades na vida, em busca de uma relação muito mais harmoniosa e socioambientalmente equilibrada. É lógico que eles não vão conseguir um êxito completo nessa empreitada, porque o planeta já está muito comprometido do ponto de vista ambiental; mas, o simples fato de mitigar os efeitos ruins já contribui, e muito, para reduzir o potencial cumulativo.

Não nos esqueçamos de que nada nessa vida é de graça. O desenvolvimento, o progresso, a industrialização, a mecanização, a robotização e tudo mais que se interconecta com esses processos, cobra seu preço material e imaterial da sociedade e, por consequência, da nossa própria saúde. É curioso que toneladas de lixo acumuladas por aí, por exemplo, possam desencadear desconforto em nós; mas, não paramos para pensar sobre os resíduos que sujam o nosso corpo por dentro. Que bradamos contra os impactos ambientais negativos, sempre, de uma perspectiva externa a nós mesmos, como se o nosso organismo também não fosse um modelo de ecossistema.

Como dizia Sidarta Gautama (Buda), “os homens que perdem a saúde para juntar dinheiro e depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde; por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem o presente, de tal forma que acabam por nem viver no presente e nem no futuro; vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se nunca tivessem vivido”. Infelizmente, “não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente” (Jiddu Krishnamurti – filósofo e escritor indiano). Assim, pensemos a respeito!