Vivos?
Pelo menos por enquanto...
Por
Alessandra Leles Rocha
É sempre assim, toda vez que o
Brasil tenta dar um passo adiante em favor da dignidade humana, ele deixa claro
como foi desnecessariamente cruel e perverso por muito tempo. O exemplo mais
recente foi o anúncio, ontem, 2 de fevereiro, pelo presidente do Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS), de que o cidadão não precisará mais sair de
sua casa para fazer “prova de vida” e
assim, garantir o recebimento do benefício a que tem direito.
Pois é, por quase três décadas, 36
milhões de brasileiros foram obrigados a comparecer anualmente as agências do
INSS para comprovar que estavam vivos e, dessa forma, auxiliar o governo na
contenção de fraudes e desvios de recursos públicos, os quais apesar dos
pesares nunca deixaram efetivamente de existir.
Como se não bastasse o valor
irrisório pago pelo governo a esses trabalhadores, depois de uma vida inteira
de trabalho e sacrifício dedicado ao país, o INSS nunca esteve nem aí para o
fato de que a grande maioria dos seus beneficiários tem idade avançada, é
portadora de doenças graves e incapacitantes, além de notória impossibilidade
de locomoção e deslocamento até suas agências. Portanto, um calvário de constrangimentos
e humilhações sem que nenhuma providência fosse tomada a respeito. Décadas de
um rosário desfiado de promessas vazias e ultrajantes. Mas, como é ano
eleitoral...
De repente, como em um passe de
mágica, descobriram uma solução. É claro, que ela não passaria pela
complexidade da acessibilidade nas agências, que é um direito de todo e
qualquer cidadão. Afinal de contas, isso demanda tempo e dinheiro, tudo o que o
governo não pretender esbanjar. Então, em pleno século XXI, por que não usar a
tecnologia, não é mesmo? Como se colocassem “o
Ovo de Colombo em pé”, se propuseram, então, a cruzar os dados a partir de diferentes
fontes para aferir se os beneficiários estariam vivos ou não.
Fazendo um “mea culpa” enviesado, o INSS admitiu que a responsabilidade em
saber se o beneficiário está vivo ou não é da referida instituição. Por isso, a
notícia soa bem; mas, não completa. Porque ela não apaga todos os absurdos
cometidos contra milhares de cidadãos que tiveram a sua dignidade aviltada por
práticas inadequadas e depreciativas aos direitos humanos, dentro de um órgão
público que deveria cuidar e protegê-los.
Quem não se lembra de um idoso de
80 anos, em 2021, no Piauí, que precisou ser levado de maca a uma agência bancária
para fazer a tal “prova de vida” 1? Dadas as suas graves condições
clínicas, ele acabou falecendo dias depois do ocorrido. Como esse, quantos
outros casos não aconteceram, país afora? Sem retratação, sem pedidos formais
de desculpa, sem indenização e, particularmente, sem nenhuma intenção de
mudança nos protocolos institucionais diante da situação. Mas, agora, como é ano
eleitoral...
As mazelas históricas caem como
presas fáceis nas artimanhas da esperteza. Quem nunca ouviu falar sobre a “indústria da seca” no Nordeste
brasileiro, hein? Uma memória política
que vive de lapsos prolongados e restauros estranhamente oportunistas. Todo ano
de eleição é assim, as soluções miraculosas começam a jorrar como fontes, pelo menos
em nível de discurso, porque de prática há de se esperar a confirmação; posto
que, “seguro morreu de velho”. Tudo para
jogar uma gigantesca pá de cal sobre os infortúnios legítimos do povo sofrido
desse país.
Algo que me parece cada vez mais
insuficiente. Com a vida cada vez mais rude, mais implacável, a memória do povo
não consegue mais adormecer ou se entorpecer por qualquer coisa. É bom saber
que não vai ter mais que enfrentar fila, dormir no relento à espera do atendimento,
pagar caro a condução para ir até à agência do INSS, padecer o risco de uma
eventual suspensão de pagamento do minguado benefício, ... No entanto, o
retrato do desalento nacional continua se refletindo nos caraminguás que não
conseguem vencer a luta contra uma inflação de dois dígitos, uma perda do poder
de compra evidente, uma pobreza que começa a rondar o cotidiano.
Então, bondade mesmo seria se
fosse completa, se desaparecesse com essa realidade atroz. Se o cidadão não
fosse respeitado, à conta-gotas, só em tempo de eleição. Ora, mas é assim
porque se trata de uma legião desprivilegiada de direitos e regalias, refém de uma
estrutura social criada justamente para mantê-la cativa das políticas públicas
e eventuais benesses políticas.
Como bem escreveu o sociólogo
Darcy Ribeiro, “o espantoso é que os
brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, “democracia racial”,
raramente percebem os profundos abismos que separam os estratos sociais. O mais
grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque
se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem
castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de
indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram
ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade”
(O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, 1995).
Portanto, “ a estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as relações de classes chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram toda comunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e a maltrata, a explora e a deplora, como se esta fosse uma conduta natural” (Darcy Ribeiro. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, 1995). Mas, agora, como é ano eleitoral... temporariamente isso muda.