quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Vivos? Pelo menos por enquanto...


Vivos? Pelo menos por enquanto...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É sempre assim, toda vez que o Brasil tenta dar um passo adiante em favor da dignidade humana, ele deixa claro como foi desnecessariamente cruel e perverso por muito tempo. O exemplo mais recente foi o anúncio, ontem, 2 de fevereiro, pelo presidente do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), de que o cidadão não precisará mais sair de sua casa para fazer “prova de vida” e assim, garantir o recebimento do benefício a que tem direito.

Pois é, por quase três décadas, 36 milhões de brasileiros foram obrigados a comparecer anualmente as agências do INSS para comprovar que estavam vivos e, dessa forma, auxiliar o governo na contenção de fraudes e desvios de recursos públicos, os quais apesar dos pesares nunca deixaram efetivamente de existir.

Como se não bastasse o valor irrisório pago pelo governo a esses trabalhadores, depois de uma vida inteira de trabalho e sacrifício dedicado ao país, o INSS nunca esteve nem aí para o fato de que a grande maioria dos seus beneficiários tem idade avançada, é portadora de doenças graves e incapacitantes, além de notória impossibilidade de locomoção e deslocamento até suas agências. Portanto, um calvário de constrangimentos e humilhações sem que nenhuma providência fosse tomada a respeito. Décadas de um rosário desfiado de promessas vazias e ultrajantes. Mas, como é ano eleitoral...  

De repente, como em um passe de mágica, descobriram uma solução. É claro, que ela não passaria pela complexidade da acessibilidade nas agências, que é um direito de todo e qualquer cidadão. Afinal de contas, isso demanda tempo e dinheiro, tudo o que o governo não pretender esbanjar. Então, em pleno século XXI, por que não usar a tecnologia, não é mesmo? Como se colocassem “o Ovo de Colombo em pé”, se propuseram, então, a cruzar os dados a partir de diferentes fontes para aferir se os beneficiários estariam vivos ou não.

Fazendo um “mea culpa” enviesado, o INSS admitiu que a responsabilidade em saber se o beneficiário está vivo ou não é da referida instituição. Por isso, a notícia soa bem; mas, não completa. Porque ela não apaga todos os absurdos cometidos contra milhares de cidadãos que tiveram a sua dignidade aviltada por práticas inadequadas e depreciativas aos direitos humanos, dentro de um órgão público que deveria cuidar e protegê-los.

Quem não se lembra de um idoso de 80 anos, em 2021, no Piauí, que precisou ser levado de maca a uma agência bancária para fazer a tal “prova de vida” 1? Dadas as suas graves condições clínicas, ele acabou falecendo dias depois do ocorrido. Como esse, quantos outros casos não aconteceram, país afora? Sem retratação, sem pedidos formais de desculpa, sem indenização e, particularmente, sem nenhuma intenção de mudança nos protocolos institucionais diante da situação. Mas, agora, como é ano eleitoral...  

As mazelas históricas caem como presas fáceis nas artimanhas da esperteza. Quem nunca ouviu falar sobre a “indústria da seca” no Nordeste brasileiro, hein?  Uma memória política que vive de lapsos prolongados e restauros estranhamente oportunistas. Todo ano de eleição é assim, as soluções miraculosas começam a jorrar como fontes, pelo menos em nível de discurso, porque de prática há de se esperar a confirmação; posto que, “seguro morreu de velho”. Tudo para jogar uma gigantesca pá de cal sobre os infortúnios legítimos do povo sofrido desse país.

Algo que me parece cada vez mais insuficiente. Com a vida cada vez mais rude, mais implacável, a memória do povo não consegue mais adormecer ou se entorpecer por qualquer coisa. É bom saber que não vai ter mais que enfrentar fila, dormir no relento à espera do atendimento, pagar caro a condução para ir até à agência do INSS, padecer o risco de uma eventual suspensão de pagamento do minguado benefício, ... No entanto, o retrato do desalento nacional continua se refletindo nos caraminguás que não conseguem vencer a luta contra uma inflação de dois dígitos, uma perda do poder de compra evidente, uma pobreza que começa a rondar o cotidiano.

Então, bondade mesmo seria se fosse completa, se desaparecesse com essa realidade atroz. Se o cidadão não fosse respeitado, à conta-gotas, só em tempo de eleição. Ora, mas é assim porque se trata de uma legião desprivilegiada de direitos e regalias, refém de uma estrutura social criada justamente para mantê-la cativa das políticas públicas e eventuais benesses políticas.

Como bem escreveu o sociólogo Darcy Ribeiro, “o espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, “democracia racial”, raramente percebem os profundos abismos que separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade” (O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, 1995).

Portanto, “ a estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as relações de classes chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram toda comunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e a maltrata, a explora e a deplora, como se esta fosse uma conduta natural” (Darcy Ribeiro. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, 1995). Mas, agora, como é ano eleitoral... temporariamente isso muda.