segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Proliferação de “células nazistas” no Brasil...


Proliferação de “células nazistas” no Brasil...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Apesar do fluxo contínuo de ideias e acontecimentos, é curioso como a dissociação destes tenha se tornado uma constante pelas pessoas, como se tudo pudesse existir compartimentalizado, fragmentado, em pequenas gavetas dotadas de total incompatibilidade dialógica. E, por isso, vez por outra o sentimento de surpresa, de estarrecimento, toma de assalto os comentários, como se de fato houvesse mesmo razões para tamanho espanto. Exatamente o que aconteceu, ontem, a partir de uma matéria jornalística que trouxe à tona descobertas recentes sobre a proliferação de “células nazistas” 1 no país.  

Bem, não bastassem as velhas lições das aulas de História do Brasil e de História Geral, para se aprofundar nos registros desse assunto ao longo do tempo, as próprias crenças, valores e princípios demarcam com exatidão os comportamentos da sociedade, delineando uma interface importante nesse contexto. Assim, vem de lá, do Brasil Colônia, a construção de um apreço pelo autoritarismo, pela supremacia branca, pelo racismo, pela xenofobia, pela homofobia e transfobia, pelo ultranacionalismo, pelo chauvinismo e pelas ideias reacionárias. São séculos e séculos marcando as fronteiras dessas manifestações, cada vez com tintas mais fortes.

De modo que, na medida das oportunidades, esses traços da personalidade identitária brasileira escondidos por véus de obscurantismo tendem a sair das sombras e do silêncio, garantidos por uma legitimidade discursiva respaldada pelo próprio governo em curso. O que significa que a imagem idealizada de país alegre, festivo, receptivo, fraterno, pacífico, encontra-se sempre na iminência de ser desconstruída por um contingente amostral significativo de sua própria gente. Começa pela formulação de narrativas fortes e agressivas até alcançar as manifestações de violência explícita.  

Nacional e internacionalmente, os registros de violências, violações e desigualdades no Brasil são acompanhados, há décadas, por diversas entidades e organizações não-governamentais de Direitos Humanos, tais como o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (CDH/ONU), a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Instituto Igarapé, o Instituto Maria da Penha (IMP), o Instituto Sou da Paz, dentre outros. É a partir desse ponto que se descortinam a razões que levam o país a se permitir a existência de um número considerável de “células nazistas” ou de “extrema-direita”.

Ora, na medida em que a uma parcela expressiva da sociedade assume qualquer tipo de comportamento permissivo das violências, das violações e das desigualdades; sobretudo, em relação a grupos considerados socialmente minoritários – povos indígenas e tradicionais, comunidades camponesas, mulheres, populações negras, idosos, pessoas LGBTQIA+, habitantes de periferias –, se abre uma janela de perspectivas para que outras ideologias extremistas venham figurar no cenário nacional.

A questão é que esse não é um movimento recente, contemporâneo, ele sempre existiu na sociedade brasileira. Como se tivesse sido pactuado pelo colonialismo e revalidado ao longo de toda a pós-colonialidade. Portanto, essas manifestações mais recentes do nazismo e da extrema-direita acreditam que existe um terreno fértil para se estabelecerem e colocarem em prática as suas ações. De certo modo, elas partem do pressuposto da fragilidade e da dissociação do conhecimento histórico, por parte, principalmente, das novas gerações; bem como, do cenário político e socioeconômico desfavorável, expresso principalmente pelo desemprego, pela ausência de oportunidades, pelas perdas de regalias e privilégios institucionalizados, enfim...

Daí a descrição feita por Bertolt Brecht ser tão contundente: “Primeiro levaram os negros. Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso. Porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados. Mas como tenho meu emprego, também não me importei. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”. É na banalização, na trivialização, que se criam e estabelecem precedentes para legitimação popular.

Alguma vez você, caro (a) leitor (a), já parou para refletir sobre manchetes como essas? “Brasil não sabe quantos homicídios são esclarecidos porque maioria das vítimas é negra” 2. “O Brasil precisa olhar para as mulheres vítimas de violência” 3. Número de armas registradas por civis aumentou 330% nos últimos seis meses” 4. “Mortes violentas de LGBTQIA+ já superam 200 no ano e devem ultrapassar total de 2020” 5. “Aporofobia: conheça o significado da palavra usada em campanha por Padre Júlio Lancellotti no país” 6. Imagino que não! Ou se o fez foi de maneira superficial, sem oferecer a devida atenção.

É fundamental se conscientizar de que o silêncio, a omissão, a negligência, o descaso, não são fenômenos de geração espontânea. Surgem do nada, ao acaso. Não, eles são meticulosamente fiados ao longo do tempo, até que consigam se impregnar no inconsciente coletivo das populações, tornando-se parte comum ao cotidiano e desmerecendo quaisquer atenções a seu respeito. E ao não se colocarem na posição do outro, as pessoas deixam de enxergar esse “outro” e passam a se sentir mais importantes, detentoras de um espaço social maior e mais relevante, fortalecendo ainda mais a ideologização extremista.

E é justamente aí que reside o perigo. Como não é possível escapar da figura, da presença, desse “outro”, o tempo todo, ele adquire uma conotação de ameaça, de perturbação, de inconveniência aos interesses da sociedade, a tal ponto que medidas precisam ser tomadas a esse respeito. E quais seriam? Banimento, invisibilização, marginalização, ... extermínio. As mazelas do mundo seriam, então, sintetizadas e personificadas nas figuras humanas consideradas indesejáveis. Ora, mas já não é isso o que se vê acontecer cotidianamente, dentro e fora das fronteiras do Brasil? Independentemente se em tempos de paz ou de guerra, a verdade é que os seres humanos vivem a subjugar os seres humanos. Como se a vida pudesse ser ranqueada em estratos de importância e desimportância.  

Isso explica porque a Segunda Guerra Mundial acabou; mas, o nazismo e o fascismo não. Esse ideário sempre esteve acima do conflito bélico. Ele, no fundo, é parte da barbárie humana. Aqui e ali sempre existiram e existirão indivíduos que se comprazem a essas ideias e comportamentos. O extremismo, o radicalismo, não passa de uma pseudoprojeção de poder, de superioridade, de controle, quando de fato não os têm. Tudo começa pela síndrome dos pequenos poderes, quando ao receber alguma função de comando ou liderança, o indivíduo usa do seu papel para manifestar-se de forma absoluta, imperativa, autoritária, desconsiderando os desdobramentos e consequências que podem resultar disso.

A grande questão é que sempre irá existir mais de um nessa posição. E aí, como fica? Ninguém vai querer ceder. Ou eles dão um passo atrás ou terão que lutar até o fim pela vitória. Pode ser, então, que ambos não resistam e a história fique o dito pelo não dito. O que, olhando para a contemporaneidade, me parece o mais provável de acontecer. Afinal, apesar de todas as tentativas de domesticar e frear os arroubos da barbárie humana, vez por outra, eles escapam ao controle e se exibem por aí, na maior desfaçatez. Tudo porque rege essa dinâmica deturpada e prejudicial a existência intrínseca de uma dose generosa de condescendência, de tolerância, de benevolência.

Quaisquer mudanças dependeriam da ruptura desse acordo velado. Acontece que ele envolve muitas coisas difíceis, complexas, que já se consolidaram ao longo da existência humana, a tal ponto que nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi capaz de demovê-las. Entendo que a presença de “células nazistas” ou de “extrema-direita” é constrangedora, desnecessária, perturbadora; mas, quando olhamos para o lado e nos deparamos com o autoritarismo, a supremacia branca, o racismo, a xenofobia, a homofobia/transfobia, a aporofobia, as ideias reacionárias, ... tudo isso não deveria nos despertar o mesmo? Pois é. Então, esse deve ser o ponto da reflexão, da desconstrução, da mutação, da verdadeira ressignificação a respeito desse assunto.