Proliferação
de “células nazistas” no Brasil...
Por
Alessandra Leles Rocha
Apesar do fluxo contínuo de
ideias e acontecimentos, é curioso como a dissociação destes tenha se tornado
uma constante pelas pessoas, como se tudo pudesse existir compartimentalizado,
fragmentado, em pequenas gavetas dotadas de total incompatibilidade dialógica. E,
por isso, vez por outra o sentimento de surpresa, de estarrecimento, toma de
assalto os comentários, como se de fato houvesse mesmo razões para tamanho espanto.
Exatamente o que aconteceu, ontem, a partir de uma matéria jornalística que
trouxe à tona descobertas recentes sobre a proliferação de “células nazistas” 1 no país.
Bem, não bastassem as velhas
lições das aulas de História do Brasil e de História Geral, para se aprofundar
nos registros desse assunto ao longo do tempo, as próprias crenças, valores e princípios
demarcam com exatidão os comportamentos da sociedade, delineando uma interface
importante nesse contexto. Assim, vem de lá, do Brasil Colônia, a construção de
um apreço pelo autoritarismo, pela supremacia branca, pelo racismo, pela
xenofobia, pela homofobia e transfobia, pelo ultranacionalismo, pelo
chauvinismo e pelas ideias reacionárias. São séculos e séculos marcando as
fronteiras dessas manifestações, cada vez com tintas mais fortes.
De modo que, na medida das
oportunidades, esses traços da personalidade identitária brasileira escondidos
por véus de obscurantismo tendem a sair das sombras e do silêncio, garantidos
por uma legitimidade discursiva respaldada pelo próprio governo em curso. O que
significa que a imagem idealizada de país alegre, festivo, receptivo, fraterno,
pacífico, encontra-se sempre na iminência de ser desconstruída por um contingente
amostral significativo de sua própria gente. Começa pela formulação de
narrativas fortes e agressivas até alcançar as manifestações de violência explícita.
Nacional e internacionalmente, os
registros de violências, violações e desigualdades no Brasil são acompanhados, há
décadas, por diversas entidades e organizações não-governamentais de Direitos
Humanos, tais como o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações
Unidas (CDH/ONU), a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Instituto
Igarapé, o Instituto Maria da Penha (IMP), o Instituto Sou da Paz, dentre
outros. É a partir desse ponto que se descortinam a razões que levam o país a
se permitir a existência de um número considerável de “células nazistas” ou de “extrema-direita”.
Ora, na medida em que a uma
parcela expressiva da sociedade assume qualquer tipo de comportamento permissivo
das violências, das violações e das desigualdades; sobretudo, em relação a
grupos considerados socialmente minoritários – povos indígenas e tradicionais,
comunidades camponesas, mulheres, populações negras, idosos, pessoas LGBTQIA+, habitantes
de periferias –, se abre uma janela de perspectivas para que outras ideologias extremistas
venham figurar no cenário nacional.
A questão é que esse não é um
movimento recente, contemporâneo, ele sempre existiu na sociedade brasileira. Como
se tivesse sido pactuado pelo colonialismo e revalidado ao longo de toda a
pós-colonialidade. Portanto, essas manifestações mais recentes do nazismo e da
extrema-direita acreditam que existe um terreno fértil para se estabelecerem e colocarem
em prática as suas ações. De certo modo, elas partem do pressuposto da fragilidade
e da dissociação do conhecimento histórico, por parte, principalmente, das
novas gerações; bem como, do cenário político e socioeconômico desfavorável,
expresso principalmente pelo desemprego, pela ausência de oportunidades, pelas
perdas de regalias e privilégios institucionalizados, enfim...
Daí a descrição feita por Bertolt
Brecht ser tão contundente: “Primeiro
levaram os negros. Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida
levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu também não era
operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso. Porque eu
não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados. Mas como tenho meu
emprego, também não me importei. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu
não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”. É na banalização,
na trivialização, que se criam e estabelecem precedentes para legitimação
popular.
Alguma vez você, caro (a) leitor
(a), já parou para refletir sobre manchetes como essas? “Brasil não sabe quantos homicídios são esclarecidos porque maioria das
vítimas é negra” 2. “O Brasil precisa olhar
para as mulheres vítimas de violência” 3.
Número de armas registradas por civis aumentou 330% nos últimos seis meses” 4. “Mortes violentas de LGBTQIA+ já
superam 200 no ano e devem ultrapassar total de 2020” 5.
“Aporofobia: conheça o significado da palavra usada em campanha por Padre Júlio
Lancellotti no país” 6. Imagino
que não! Ou se o fez foi de maneira superficial, sem oferecer a devida atenção.
É fundamental se conscientizar de
que o silêncio, a omissão, a negligência, o descaso, não são fenômenos de
geração espontânea. Surgem do nada, ao acaso. Não, eles são meticulosamente fiados
ao longo do tempo, até que consigam se impregnar no inconsciente coletivo das
populações, tornando-se parte comum ao cotidiano e desmerecendo quaisquer atenções
a seu respeito. E ao não se colocarem na posição do outro, as pessoas deixam de
enxergar esse “outro” e passam a se
sentir mais importantes, detentoras de um espaço social maior e mais relevante,
fortalecendo ainda mais a ideologização extremista.
E é justamente aí que reside o
perigo. Como não é possível escapar da figura, da presença, desse “outro”, o tempo todo, ele adquire uma
conotação de ameaça, de perturbação, de inconveniência aos interesses da
sociedade, a tal ponto que medidas precisam ser tomadas a esse respeito. E
quais seriam? Banimento, invisibilização, marginalização, ... extermínio. As mazelas
do mundo seriam, então, sintetizadas e personificadas nas figuras humanas
consideradas indesejáveis. Ora, mas já não é isso o que se vê acontecer
cotidianamente, dentro e fora das fronteiras do Brasil? Independentemente se em
tempos de paz ou de guerra, a verdade é que os seres humanos vivem a subjugar
os seres humanos. Como se a vida pudesse ser ranqueada em estratos de importância
e desimportância.
Isso explica porque a Segunda
Guerra Mundial acabou; mas, o nazismo e o fascismo não. Esse ideário sempre
esteve acima do conflito bélico. Ele, no fundo, é parte da barbárie humana. Aqui
e ali sempre existiram e existirão indivíduos que se comprazem a essas ideias e
comportamentos. O extremismo, o radicalismo, não passa de uma pseudoprojeção de
poder, de superioridade, de controle, quando de fato não os têm. Tudo começa
pela síndrome dos pequenos poderes, quando ao receber alguma função de comando
ou liderança, o indivíduo usa do seu papel para manifestar-se de forma absoluta,
imperativa, autoritária, desconsiderando os desdobramentos e consequências que
podem resultar disso.
A grande questão é que sempre irá
existir mais de um nessa posição. E aí, como fica? Ninguém vai querer ceder. Ou
eles dão um passo atrás ou terão que lutar até o fim pela vitória. Pode ser,
então, que ambos não resistam e a história fique o dito pelo não dito. O que,
olhando para a contemporaneidade, me parece o mais provável de acontecer. Afinal,
apesar de todas as tentativas de domesticar e frear os arroubos da barbárie humana,
vez por outra, eles escapam ao controle e se exibem por aí, na maior
desfaçatez. Tudo porque rege essa dinâmica deturpada e prejudicial a existência
intrínseca de uma dose generosa de condescendência, de tolerância, de benevolência.
Quaisquer mudanças dependeriam da
ruptura desse acordo velado. Acontece que ele envolve muitas coisas difíceis,
complexas, que já se consolidaram ao longo da existência humana, a tal ponto
que nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi capaz de demovê-las. Entendo
que a presença de “células nazistas” ou
de “extrema-direita” é constrangedora,
desnecessária, perturbadora; mas, quando olhamos para o lado e nos deparamos
com o autoritarismo, a supremacia branca, o racismo, a xenofobia, a homofobia/transfobia,
a aporofobia, as ideias reacionárias, ... tudo isso não deveria nos despertar o
mesmo? Pois é. Então, esse deve ser o ponto da reflexão, da desconstrução, da mutação,
da verdadeira ressignificação a respeito desse assunto.
1 https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/01/16/grupos-neonazistas-crescem-270percent-no-brasil-em-3-anos-estudiosos-temem-que-presenca-online-transborde-para-ataques-violentos.ghtml
2 https://soudapaz.org/noticias/opiniao-el-pais-brasil-nao-sabe-quantos-homicidios-sao-esclarecidos-porque-maioria-das-vitimas-e-negra/
3 https://soudapaz.org/noticias/opiniao-el-pais-o-brasil-precisa-olhar-para-as-mulheres-vitimas-de-violencia/
4 https://soudapaz.org/noticias/jornal-hoje-numero-de-armas-registradas-por-civis-aumentou-330-nos-ultimos-seis-meses/