domingo, 16 de janeiro de 2022

Qual é a graça?


Qual é a graça?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Qual é a graça? Estarmos vivos, ora essa! Sim, porque apesar dos pesares, de tanta coisa estar jogando contra a nossa sobrevivência, quantos de nós ainda estão aí esbanjando resistência, hein? As razões que explicam esse fenômeno incrível devem ser muitas. Fé. Coragem. Perseverança. Otimismo. Fraternidade. Comunhão. ... Elementos que ultrapassam as fronteiras do palpável, do material, do consumível, porque brotam da subjetividade mais profunda do ser.

E aí, caro (a) leitor (a), segue-se o baile na medida das possibilidades, ou seja, a depender das circunstâncias que nos permitiram ficar vivos em meio ao caos. Afinal de contas, parafraseando Maysa, “o nosso mundo caiu”1. Pandemia do vírus desconhecido, o Sars-Cov-2. Novas variantes virais. Epidemia de gripe H3N2. Surtos de Candida auris. Biomas queimados e devastados. Crise hídrica. Crise Energética. Enchentes. Desmoronamentos. Inflação. Desemprego. Fome. Miséria. ... A lista de infortúnios é longa.

Assim, lá vamos nós resistindo! Ora, e tem outro jeito a não ser resistir? Bem, se desistir, a vida vai embora em um piscar de olhos e isso ninguém quer. Perder essa luta só em última hipótese, quando não há mais nenhum fiapo de força, de gana, de superação, para colocar para fora, à flora da pele. No mais, estamos sempre dispostos a nos impregnar das palavras do poeta Fernando Pessoa, na medida em que “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”2.

Pois é, o (a) brasileiro (a) sempre encontra motivos, onde nem se imagina, para se apegar e fortalecer a sua resistência. Um grande amor. Um grande sonho. Um grande projeto. Uma grande viagem. Uma grande mudança. ... No entanto, isso não resume a história. Há algo mais. Sem que se perceba, dentro dele habita um espírito camaleônico, tão extraordinário, que lhe permite transitar por quaisquer adversidades e inesperados, sem o doloroso e agressivo processo de mudar de pele.  

Então, ele (a) muda de cor, de estampa, de tonalidade, para se fazer caber no mundo hostil que tenta lhe roubar os sentidos, a vida. Se disfarça para não ter que se disfarçar a si mesmo. E isso é de muitas maneiras revigorante. Uma sobrevida em meio ao caos. Tudo bem, que falhas podem acontecer no meio do caminho; mas, quando essas mutações eventuais cumprem seu papel, a vida ganha mais um bocadinho de contagem no relógio.

Vejo isso na menina treinando na laje, em nome do sonho de ser uma ginasta. Vejo isso nos músicos tocando e cantando nas ruas e estações de trem, aquecendo a chama da sua arte para ela não se apagar pelo descaso com a Cultura nacional. Vejo isso nos alunos e professores da zona rural, que enfrentam longas distâncias e desafios para garantir um mínimo de igualdade educacional no país. Vejo isso nos profissionais de saúde, que se desdobram em cuidados aos seus pacientes, mesmo nas piores adversidades. ...

E, ainda que esses exemplos pareçam poucos e pontuais, na verdade não são. É que o duelo que a vida precisa travar todos os dias, a cada segundo, acaba ofuscando as pequenas vitórias, os pequenos oásis de sucesso, que existem e resistem aqui, ali e acolá. Talvez, notas bem pequenas no fim das páginas dos jornais. Ou breves menções nos noticiários das rádios e das emissoras de televisão locais. Mas, estão lá, marcando presença. Dando o ar de sua graça. E que graça! Contrariando as expectativas enclausuradas por um senso comum descrente e cinzento.

Já dizia Platão, “Tente mover o mundo – o primeiro passo será mover a si mesmo”. É justamente isso que esses exemplos nos reafirmam, porque “Não importa sua velocidade, desde que você siga em frente” (Confúcio – filosofo chinês). Afinal de contas, “Sabemos muito pouco o que nós somos e menos ainda o que podemos ser” (Lord Byron – poeta inglês); mas, na medida em que valorizamos cada instante da vida que temos nas mãos, vamos nos revelando a nós mesmos e ao mundo. Vamos descortinando nossas habilidades, potencialidades, dificuldades e humanidades. E aí, então, podemos entender na íntegra a dimensão e o valor da graça que tudo isso representa.



1 https://www.letras.mus.br/maysa/126023/