De
pires na mão...
Por
Alessandra Leles Rocha
Prática presente nas relações
sociais brasileiras, desde a época em que éramos Colônia da Metrópole
Portuguesa, o ato de dar esmolas não é simplesmente uma expressão da caridade
humana; mas, um mecanismo sórdido de demarcar sutilmente as fronteiras da
desigualdade e aplacar a consciência sobre a aviltante má distribuição de bens
e riquezas em uma sociedade. Por isso, ela persiste, sob formas e conteúdos diferentes,
se manifestando cada vez mais visível através do modo como as políticas
públicas são (ou não) pensadas e executadas no país.
A ideia da esmola é sempre
imediatista. Aplacar de maneira pontual e agudamente uma demanda do indivíduo menos
favorecido. Bom, em primeiro lugar só é desfavorecido quem não tem acesso aos seus
direitos fundamentais. Assim, a pergunta a se fazer sempre é, ‘por que não tem’?
São cidadãos, como quaisquer outros nascidos ou legalizados nessa terra! Na
verdade, foram deixados nessa condição para servir aos interesses de quem
sempre esteve na posição de favorecido.
Aliás, é por serem favorecidos e
beneficiados, através de regalias e privilégios, os quais vieram sendo
amealhados de gerações em gerações, que não lhes passa pela cabeça a ideia de
ampliar as fronteiras da dignidade e compartilhá-las com tantos outros mais. Porque
isso poderia representar algum risco de redução do seu próprio quinhão. Particularmente
àqueles que estão no topo da pirâmide, com as rédeas dos poderes nas mãos. Daí eles
se abstêm de pensar, de fazer, de transformar, deixando tudo como sempre
esteve, na base da esmola.
Perspicazes, eles sabem que a
esmola é “ajuda pouca”; mas, não
deixa de ser um instrumento eficaz no sentido de inspirar a gratidão, o
respeito, a obrigação, ... por parte de quem recebe, criando-se um vínculo
certeiro para as pretensões, sempre crescentes, de quem a oferece. Pois é,
quando se vê, a esmola se transfigura em barganha silenciosa e oportunista para
quem se dispõe a ofertá-la. Valendo-se da necessidade humana mais profunda,
mais cruel, ela surge como o último bastião da esperança, da sobrevivência. E
para os desvalidos isso pode representar o último suspiro.
Assim, entra década sai década, e
o país não consegue superar a gigantesca tecitura da aporofobia que se desenvolve
em cada núcleo institucional (ou não), porque encontra manifestações diversas
de resistência. Algumas sutis, outras diretas e violentas. De modo que, no
campo das políticas públicas propriamente ditas, as ações se arrastam e se
perdem em meio a uma enxurrada de entraves burocráticos, cuidadosamente
dispostos para esse fim. Sempre que se consegue subir um degrau, de repente, um
retrocesso faz descer outros dez e, assim, os resultados acabam se
transformando em uma esmola com ares de contemporaneidade.
O que em síntese se torna o
retrato do imobilismo social, na dimensão das desigualdades que ele representa.
Aliás, que fique claro, esmola não foi, não é e nem nunca será sinônimo de política
de transferência de renda, ainda que ambas possam ter caráter transitório,
temporário. Afinal de contas, é na política de transferência de renda, que
reside o primeiro nível de um projeto maior e bem estruturado de mobilidade
social, que visa oportunizar a dignidade e o acesso aos direitos fundamentais
ao cidadão que se encontra invisibilizado, preterido e marginalizado. Portanto,
esse tipo de política é sim, uma alavanca social importantíssima, na medida em
que ela possibilita alçar esse indivíduo a um novo patamar de autonomia e independência.
No entanto, pensam alguns que é
justamente aí que se encontra o problema. O indivíduo que se ergue, que se
transforma, que se torna economicamente sustentável, também passa a tomar suas próprias
decisões, fazer suas próprias escolhas, ou seja, sai da condição de “massa de manobra social”. Então, no
estranho cálculo político-econômico, ainda que esse cidadão recém-integrado à
sua cidadania possa estar mais apto a contribuir com o progresso e o
desenvolvimento do país, eles preferem continuar oferecendo-lhe a esmola. Não,
os vinténs na porta da igreja, ou das esquinas, ou das praças públicas. Mas, a
esmola repaginada pela insuficiência dos recursos destinados a esse contingente
populacional.
Um exemplo recente dessas práxis
é o “Vale-gás 2022”. Tendo em vista a
escalada vertiginosa dos combustíveis no país, a média atual do valor do
botijão de 13 kg de gás utilizado pelas famílias é em torno de R$100. Acontece
que, aproximadamente 28 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza no
Brasil e 13,5 milhões estão desempregadas, o que significa uma impossibilidade
real para esse vasto contingente de pessoas arcar com o custo desse insumo para
cozinhar.
Assim, o governo federal decidiu
oferecer uma ajuda às famílias inscritas no Cadastro Único para Programas
Sociais (CadÚnico) ou no Benefício de Prestação Continuada (BPC), com renda
mensal per capita menor ou igual a
meio salário mínimo, um valor correspondente a 50% da média do preço nacional
de referência do botijão, a ser pago a cada dois meses. Além da notória insuficiência
no valor, o fato de os pagamentos ocorrerem por bimestre, impossibilita a essas
famílias de se alimentarem regularmente, a partir de refeições que demandem o
cozimento dos alimentos.
É bom que se diga, esse é só um exemplo
entre milhares de outros. Depois de legitimada socialmente, a esmola foi, com o
passar do tempo, então, se institucionalizando pelas searas do poder e
adquirindo esse contorno bizarro. E esse é o ponto, porque se construiu uma
banalização total em torno desse assunto. Ocorre que ao trivializar a situação
faz-se o mesmo com as pessoas desfavorecidas, através da estereotipização, dos rótulos
preconceituosos, das narrativas degradantes, para que se estabeleça um silêncio,
um obscurantismo, um tabu, a esse respeito. Tudo o que mais deseja a inércia do
poder.
E isso, caro (a) leitor (a), não
é simples, não é pouco. Segundo a Oxfam, durante o Fórum Econômico Mundial, que
ocorre em ambiente virtual de 17 a 21 de janeiro, “um novo bilionário surge a cada 26 horas desde o início da pandemia. Os
dez homens mais ricos do mundo dobraram suas fortunas, enquanto mais de 160 milhões
de pessoas foram empurradas para a pobreza. Nesse meio tempo, estima-se que 17
milhões de pessoas morreram de COVID-19 no mundo. O custo da profunda
desigualdade que enfrentamos é pago em vidas humanas”, e no Brasil, podemos
entender melhor isso quando se sabe que “os
20 maiores bilionários do país têm mais riqueza do que 128 milhões de
brasileiros (60% da população)” 1.
Se o assunto chegou a mais alta cúpula
mundial, é sinal claro que os paradigmas estão sendo desconstruídos ou, pelo
menos, ressignificados. Esmolas não são mais uma escolha voluntária, uma
prática automatizada qualquer, que possa satisfazer como aceitável. A contemporaneidade,
pelo viés da pandemia, está impondo uma nova ordem nas relações socioeconômicas,
tendo em vista que “por causa da covid,
hoje 160 milhões de pessoas a mais vivem com menos de US$5,50 (R$30) por dia” 2. Portanto, somente através de
políticas públicas sólidas, bem constituídas e de alcance social abrangente, o
mundo vai conseguir um panorama menos sombrio quando a pós-pandemia se iniciar.
Enquanto as conjunturas trabalham
e se acomodam, a cada um cabe pensar e refletir. Sendo assim, depois de
discorrer sobre a esmola, a pobreza, a desigualdade, a aporofobia, ... tendo cada
palavra me trazido uma notável e profunda tristeza desalentadora, faço a breve
síntese desse processo através da seguinte citação: “Na verdade, é de extrema dificuldade perceber quem é o mais pobre: o
que tem pouco e isso lhe basta ou o que tem muito e isso não lhe chega” (José
Luís Nunes Martins – filósofo português). ...