terça-feira, 18 de janeiro de 2022

De pires na mão...


De pires na mão...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Prática presente nas relações sociais brasileiras, desde a época em que éramos Colônia da Metrópole Portuguesa, o ato de dar esmolas não é simplesmente uma expressão da caridade humana; mas, um mecanismo sórdido de demarcar sutilmente as fronteiras da desigualdade e aplacar a consciência sobre a aviltante má distribuição de bens e riquezas em uma sociedade. Por isso, ela persiste, sob formas e conteúdos diferentes, se manifestando cada vez mais visível através do modo como as políticas públicas são (ou não) pensadas e executadas no país.

A ideia da esmola é sempre imediatista. Aplacar de maneira pontual e agudamente uma demanda do indivíduo menos favorecido. Bom, em primeiro lugar só é desfavorecido quem não tem acesso aos seus direitos fundamentais. Assim, a pergunta a se fazer sempre é, ‘por que não tem’? São cidadãos, como quaisquer outros nascidos ou legalizados nessa terra! Na verdade, foram deixados nessa condição para servir aos interesses de quem sempre esteve na posição de favorecido.

Aliás, é por serem favorecidos e beneficiados, através de regalias e privilégios, os quais vieram sendo amealhados de gerações em gerações, que não lhes passa pela cabeça a ideia de ampliar as fronteiras da dignidade e compartilhá-las com tantos outros mais. Porque isso poderia representar algum risco de redução do seu próprio quinhão. Particularmente àqueles que estão no topo da pirâmide, com as rédeas dos poderes nas mãos. Daí eles se abstêm de pensar, de fazer, de transformar, deixando tudo como sempre esteve, na base da esmola.

Perspicazes, eles sabem que a esmola é “ajuda pouca”; mas, não deixa de ser um instrumento eficaz no sentido de inspirar a gratidão, o respeito, a obrigação, ... por parte de quem recebe, criando-se um vínculo certeiro para as pretensões, sempre crescentes, de quem a oferece. Pois é, quando se vê, a esmola se transfigura em barganha silenciosa e oportunista para quem se dispõe a ofertá-la. Valendo-se da necessidade humana mais profunda, mais cruel, ela surge como o último bastião da esperança, da sobrevivência. E para os desvalidos isso pode representar o último suspiro.

Assim, entra década sai década, e o país não consegue superar a gigantesca tecitura da aporofobia que se desenvolve em cada núcleo institucional (ou não), porque encontra manifestações diversas de resistência. Algumas sutis, outras diretas e violentas. De modo que, no campo das políticas públicas propriamente ditas, as ações se arrastam e se perdem em meio a uma enxurrada de entraves burocráticos, cuidadosamente dispostos para esse fim. Sempre que se consegue subir um degrau, de repente, um retrocesso faz descer outros dez e, assim, os resultados acabam se transformando em uma esmola com ares de contemporaneidade.

O que em síntese se torna o retrato do imobilismo social, na dimensão das desigualdades que ele representa. Aliás, que fique claro, esmola não foi, não é e nem nunca será sinônimo de política de transferência de renda, ainda que ambas possam ter caráter transitório, temporário. Afinal de contas, é na política de transferência de renda, que reside o primeiro nível de um projeto maior e bem estruturado de mobilidade social, que visa oportunizar a dignidade e o acesso aos direitos fundamentais ao cidadão que se encontra invisibilizado, preterido e marginalizado. Portanto, esse tipo de política é sim, uma alavanca social importantíssima, na medida em que ela possibilita alçar esse indivíduo a um novo patamar de autonomia e independência.

No entanto, pensam alguns que é justamente aí que se encontra o problema. O indivíduo que se ergue, que se transforma, que se torna economicamente sustentável, também passa a tomar suas próprias decisões, fazer suas próprias escolhas, ou seja, sai da condição de “massa de manobra social”. Então, no estranho cálculo político-econômico, ainda que esse cidadão recém-integrado à sua cidadania possa estar mais apto a contribuir com o progresso e o desenvolvimento do país, eles preferem continuar oferecendo-lhe a esmola. Não, os vinténs na porta da igreja, ou das esquinas, ou das praças públicas. Mas, a esmola repaginada pela insuficiência dos recursos destinados a esse contingente populacional.

Um exemplo recente dessas práxis é o “Vale-gás 2022”. Tendo em vista a escalada vertiginosa dos combustíveis no país, a média atual do valor do botijão de 13 kg de gás utilizado pelas famílias é em torno de R$100. Acontece que, aproximadamente 28 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza no Brasil e 13,5 milhões estão desempregadas, o que significa uma impossibilidade real para esse vasto contingente de pessoas arcar com o custo desse insumo para cozinhar.

Assim, o governo federal decidiu oferecer uma ajuda às famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) ou no Benefício de Prestação Continuada (BPC), com renda mensal per capita menor ou igual a meio salário mínimo, um valor correspondente a 50% da média do preço nacional de referência do botijão, a ser pago a cada dois meses. Além da notória insuficiência no valor, o fato de os pagamentos ocorrerem por bimestre, impossibilita a essas famílias de se alimentarem regularmente, a partir de refeições que demandem o cozimento dos alimentos.

É bom que se diga, esse é só um exemplo entre milhares de outros. Depois de legitimada socialmente, a esmola foi, com o passar do tempo, então, se institucionalizando pelas searas do poder e adquirindo esse contorno bizarro. E esse é o ponto, porque se construiu uma banalização total em torno desse assunto. Ocorre que ao trivializar a situação faz-se o mesmo com as pessoas desfavorecidas, através da estereotipização, dos rótulos preconceituosos, das narrativas degradantes, para que se estabeleça um silêncio, um obscurantismo, um tabu, a esse respeito. Tudo o que mais deseja a inércia do poder.

E isso, caro (a) leitor (a), não é simples, não é pouco. Segundo a Oxfam, durante o Fórum Econômico Mundial, que ocorre em ambiente virtual de 17 a 21 de janeiro, “um novo bilionário surge a cada 26 horas desde o início da pandemia. Os dez homens mais ricos do mundo dobraram suas fortunas, enquanto mais de 160 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza. Nesse meio tempo, estima-se que 17 milhões de pessoas morreram de COVID-19 no mundo. O custo da profunda desigualdade que enfrentamos é pago em vidas humanas”, e no Brasil, podemos entender melhor isso quando se sabe que “os 20 maiores bilionários do país têm mais riqueza do que 128 milhões de brasileiros (60% da população)” 1.

Se o assunto chegou a mais alta cúpula mundial, é sinal claro que os paradigmas estão sendo desconstruídos ou, pelo menos, ressignificados. Esmolas não são mais uma escolha voluntária, uma prática automatizada qualquer, que possa satisfazer como aceitável. A contemporaneidade, pelo viés da pandemia, está impondo uma nova ordem nas relações socioeconômicas, tendo em vista que “por causa da covid, hoje 160 milhões de pessoas a mais vivem com menos de US$5,50 (R$30) por dia” 2. Portanto, somente através de políticas públicas sólidas, bem constituídas e de alcance social abrangente, o mundo vai conseguir um panorama menos sombrio quando a pós-pandemia se iniciar.

Enquanto as conjunturas trabalham e se acomodam, a cada um cabe pensar e refletir. Sendo assim, depois de discorrer sobre a esmola, a pobreza, a desigualdade, a aporofobia, ... tendo cada palavra me trazido uma notável e profunda tristeza desalentadora, faço a breve síntese desse processo através da seguinte citação: “Na verdade, é de extrema dificuldade perceber quem é o mais pobre: o que tem pouco e isso lhe basta ou o que tem muito e isso não lhe chega” (José Luís Nunes Martins – filósofo português). ...