Nessa
linha tênue que separa a vida e a morte
Por
Alessandra Leles Rocha
Pensando nessa linha tênue que
separa a vida e a morte, cada vez mais, não encontro sentido para a realidade
do mundo que se descortina diante de nós. Todas as manifestações perversas, cruéis,
abomináveis que disputam palmo a palmo o cotidiano são desnecessárias, na
medida em que já temos tantas prioridades a serem resolvidas ou mitigadas,
ocupando a nossa mente e as nossas emoções.
Não, não há razões suficientes
para sustentar as guerras, os conflitos, as disputas de poder, a ambição
desmedida, a ganância vaidosa, a corrupção desenfreada. Basta fechar os olhos
por um segundo e respirar fundo para entender que a vida é tão frágil, tão efêmera,
que se não fizermos bonito ela desaparece, sem nos darmos conta. De modo que
tudo de bom e de ruim, todos os nossos erros, tropeços, desalinhos, conquistas,
vitórias se tornam a partir desse “de
repente” um amontoado de lembranças, de histórias, de marcas de uma vida
que um dia existiu, e só.
Daí a importância de lançar-se
nesse campo de reflexão, pensando em tudo o que temos visto, ouvido e vivido,
nos últimos tempos, dentro do país. Porque esse imponderável chamado morte desconstrói
e ressignifica os acontecimentos de uma maneira tão precisa, que extrai camada
por camada até trazer à tona o que é relevante ou não. Como se batêssemos a bateia
e nela restasse alguns diminutos grãos de proveito, mostrando que as aparências
eram só volume de areia sem importância.
É, as pessoas se entregam a um
desatino, uma consumição, um desespero, em nome de tantas coisas, ao longo da
vida, e se esquecem de que todas elas um dia hão de ficar entregues à própria sorte
ou aos cuidados e descuidos alheios. Principalmente, quando se olha para os
jogos de poder. Querem mandar. Querem subjugar. Querem espoliar. Querem...
tudo. Só para satisfazer os seus próprios desvarios e insanidades. Para conquistar
uma superioridade que não existe; visto que, o ser humano só pode ser humano,
não há outra opção.
A grande questão é que, em
momento algum, as pessoas se permitem questionar esses caminhos, esses
movimentos. Como escreveu José Saramago, “Se
antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever todas as consequências deles, a
pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as
possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o
primeiro pensamento nos tivesse feito parar”. Por isso, essa banalização ou
trivialização do cotidiano contribui para o apagamento de uma reflexão tão necessária.
Ao considerar que esse é o modelo
institucionalizado e legitimado para a sociedade, particularmente a contemporânea,
as pessoas se permitem abster de olhar além dos fatos, para abstrair o que é
realmente importante. Então, elas se entregam nessa espiral de loucura imposta
pelas manifestações doutrinárias materialistas e mercantis, cujo lema se resume
em “ter”. O explica o porquê de “O egoísmo
pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano,
tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste
em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for
susceptível de servir os nossos interesses” (José Saramago - Nobel de Literatura de 1998).
Assim, quando nos permitimos
olhar com bastante atenção, acabamos percebendo que a humanidade vem perecendo
antes mesmo da morte chegar. Ora, é fácil de comprovar o que estou dizendo! Observe
o fastio que nutrem as pessoas e as faz sentir constantemente insatisfeitas,
incompletas, frustradas, casmurras e tristes. Nada parece ser suficiente para
aplacar o vazio que preenche suas almas. Porque elas não sabem o que querem,
como querem, quanto querem. Se precisam ou não. O mundo não lhes traz à saciedade
de absolutamente nada.
Há, portanto, uma nítida ausência
de critérios, de foco, de uma leitura da vida mais contundente e precisa, conduzindo
uma parcela significativa da população a perda do viço, da criatividade, da
esperança, de todos os sentimentos e emoções que alicerçam a sobrevivência existencial
humana. Dia a dia as pessoas vêm depositando o sentido da vida em coisas que
são incapazes de fazê-las renascer das próprias cinzas, ou seja, “Nós estamos a assistir ao que eu chamaria a
morte do cidadão e, no seu lugar, o que temos e, cada vez mais, é o cliente. Agora
já ninguém nos pergunta o que é que pensamos, agora perguntam-nos qual a marca
do carro, de fato, de gravata que temos, quanto ganhamos” (José Saramago - Nobel de Literatura de 1998).
De modo que, talvez, seja essa a explicação para que a chegada da morte, propriamente dita, esteja se tornando
um pouco menos impactante. Porque, como escreveu João Cabral de Melo Neto, “[...]E se somos Severinos iguais em tudo na
vida, morremos de morte igual, mesma morte Severina: que é a morte de que se
morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um
pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer
idade, e até gente não nascida). [...]” (Morte e Vida Severina, 1955).
Então, como poderia uma criatura de veste negra e foice na mão ser mais assustadora do que o próprio retrato do cotidiano? Admitindo ou não, nossa alma está sendo forjada diariamente pelo sofrimento exalado das perdas interiores e exteriores. Materiais. Imateriais. Por ações. Por omissões. Por palavras. Por silêncios. Por indiferenças. Por interesses. ... De modo que cada um, na fila, aguarda a sua vez. Alguns com mais, outros com menos resignação. Afinal, no fundo qualquer um é capaz de entender que “Não é difícil escapar da morte. Todo soldado sabe, basta sair fugindo. O mais difícil é escapar da maldade, pois ela é mais rápida que nós” (Sócrates – filósofo grego).