sábado, 6 de novembro de 2021

Nessa linha tênue que separa a vida e a morte


Nessa linha tênue que separa a vida e a morte

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Pensando nessa linha tênue que separa a vida e a morte, cada vez mais, não encontro sentido para a realidade do mundo que se descortina diante de nós. Todas as manifestações perversas, cruéis, abomináveis que disputam palmo a palmo o cotidiano são desnecessárias, na medida em que já temos tantas prioridades a serem resolvidas ou mitigadas, ocupando a nossa mente e as nossas emoções.

Não, não há razões suficientes para sustentar as guerras, os conflitos, as disputas de poder, a ambição desmedida, a ganância vaidosa, a corrupção desenfreada. Basta fechar os olhos por um segundo e respirar fundo para entender que a vida é tão frágil, tão efêmera, que se não fizermos bonito ela desaparece, sem nos darmos conta. De modo que tudo de bom e de ruim, todos os nossos erros, tropeços, desalinhos, conquistas, vitórias se tornam a partir desse “de repente” um amontoado de lembranças, de histórias, de marcas de uma vida que um dia existiu, e só.

Daí a importância de lançar-se nesse campo de reflexão, pensando em tudo o que temos visto, ouvido e vivido, nos últimos tempos, dentro do país. Porque esse imponderável chamado morte desconstrói e ressignifica os acontecimentos de uma maneira tão precisa, que extrai camada por camada até trazer à tona o que é relevante ou não. Como se batêssemos a bateia e nela restasse alguns diminutos grãos de proveito, mostrando que as aparências eram só volume de areia sem importância.

É, as pessoas se entregam a um desatino, uma consumição, um desespero, em nome de tantas coisas, ao longo da vida, e se esquecem de que todas elas um dia hão de ficar entregues à própria sorte ou aos cuidados e descuidos alheios. Principalmente, quando se olha para os jogos de poder. Querem mandar. Querem subjugar. Querem espoliar. Querem... tudo. Só para satisfazer os seus próprios desvarios e insanidades. Para conquistar uma superioridade que não existe; visto que, o ser humano só pode ser humano, não há outra opção.

A grande questão é que, em momento algum, as pessoas se permitem questionar esses caminhos, esses movimentos. Como escreveu José Saramago, “Se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever todas as consequências deles, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar”. Por isso, essa banalização ou trivialização do cotidiano contribui para o apagamento de uma reflexão tão necessária.

Ao considerar que esse é o modelo institucionalizado e legitimado para a sociedade, particularmente a contemporânea, as pessoas se permitem abster de olhar além dos fatos, para abstrair o que é realmente importante. Então, elas se entregam nessa espiral de loucura imposta pelas manifestações doutrinárias materialistas e mercantis, cujo lema se resume em “ter”. O explica o porquê de “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses” (José Saramago -  Nobel de Literatura de 1998).

Assim, quando nos permitimos olhar com bastante atenção, acabamos percebendo que a humanidade vem perecendo antes mesmo da morte chegar. Ora, é fácil de comprovar o que estou dizendo! Observe o fastio que nutrem as pessoas e as faz sentir constantemente insatisfeitas, incompletas, frustradas, casmurras e tristes. Nada parece ser suficiente para aplacar o vazio que preenche suas almas. Porque elas não sabem o que querem, como querem, quanto querem. Se precisam ou não. O mundo não lhes traz à saciedade de absolutamente nada.

Há, portanto, uma nítida ausência de critérios, de foco, de uma leitura da vida mais contundente e precisa, conduzindo uma parcela significativa da população a perda do viço, da criatividade, da esperança, de todos os sentimentos e emoções que alicerçam a sobrevivência existencial humana. Dia a dia as pessoas vêm depositando o sentido da vida em coisas que são incapazes de fazê-las renascer das próprias cinzas, ou seja, “Nós estamos a assistir ao que eu chamaria a morte do cidadão e, no seu lugar, o que temos e, cada vez mais, é o cliente. Agora já ninguém nos pergunta o que é que pensamos, agora perguntam-nos qual a marca do carro, de fato, de gravata que temos, quanto ganhamos” (José Saramago -  Nobel de Literatura de 1998).

De modo que, talvez, seja essa a explicação para que a chegada da morte, propriamente dita, esteja se tornando um pouco menos impactante. Porque, como escreveu João Cabral de Melo Neto, “[...]E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte Severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). [...]” (Morte e Vida Severina, 1955).

Então, como poderia uma criatura de veste negra e foice na mão ser mais assustadora do que o próprio retrato do cotidiano? Admitindo ou não, nossa alma está sendo forjada diariamente pelo sofrimento exalado das perdas interiores e exteriores. Materiais. Imateriais. Por ações. Por omissões. Por palavras. Por silêncios. Por indiferenças. Por interesses. ... De modo que cada um, na fila, aguarda a sua vez. Alguns com mais, outros com menos resignação. Afinal, no fundo qualquer um é capaz de entender que “Não é difícil escapar da morte. Todo soldado sabe, basta sair fugindo. O mais difícil é escapar da maldade, pois ela é mais rápida que nós” (Sócrates – filósofo grego).