domingo, 7 de novembro de 2021

E tudo se resume em estética?!


E tudo se resume em estética?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Que saudade do Renascentismo! Achou estranha essa minha afirmação?! Pois é, claro que eu não vivi na Renascença; mas, o meu “saudosismo” brota daquelas pinturas clássicas de Da Vinci, Michelangelo, Donatello, Botticelli, Rafael, Ticiano, Caravaggio, ... nas quais as mulheres eram retratadas sem pudores, sem parâmetros estéticos pré-definidos. Não havia photoshop para retoques aqui e ali, para torná-las mais belas, mais magras, mais atraentes, mais ... mais ... elas eram simplesmente elas, captadas pelo olhar preciso de um artista.

E isso, por si só, já é fabuloso, tendo em vista que ser mulher na Renascença, ou seja, entre os séculos XIV e XVI, não era lá uma tarefa muito fácil. Mulheres não tinham vez, nem voz, viviam subjugadas aos homens, tinham suas relações sociais definidas ao propósito de vantajosos casamentos arranjados e pagos com bom dote, eram moldadas dentro de uma educação limitada a atender as características da boa esposa, da boa mãe e da fervorosa cristã. Então, se ao menos naquele recorte temporal elas foram retratadas segundo à sua verdadeira imagem, isso foi um avanço.

Porque se nos atentarmos para a realidade contemporânea, do século XXI, até esse olhar foi perdido. Daqui e dali, ao longo dos séculos, o que se vê são as mulheres sendo enquadradas dentro de estereótipos, de padrões, de protocolos, cada vez mais aprisionantes à sua verdadeira identidade. Saber que elas são capazes, competentes, habilidosas, talentosas, isso o mundo está cansado de saber. Haja vista quantos espaços no mercado de trabalho elas vêm galgando com excelência e maestria.  

A questão é que os homens, ainda em posição de poder e controle na sociedade, não estão dispostos a dividir, compartilhar esse espaço. Eles não querem ser confrontados, colocados à prova, testados na sua capacidade, na sua competência, na sua habilidade e nos seus talentos. Então, a solução encontrada por eles foi atingi-las na sua autoestima visual, estabelecendo um padrão imagético a ser aceito socialmente. Algo que perpassa por vieses de discussão como raça, peso, altura, cor dos olhos, ...

Na verdade, um caminho obscurantista para manter a vigência de critérios que excluem a essência em razão da aparência, garantindo a continuidade da objetificação feminina secular. Sendo assim, o objeto é escolhido segundo os critérios e interesses do outro. Não se trata do que elas são; mas, do que eles esperam que elas sejam. 

A partir disso, a discriminação em relação as mulheres se espalha por todos os cantos da sociedade, desde a mais tenra infância. Lentamente, elas passam a ser classificadas segundo parâmetros estéticos e lançadas, assim, dentro do rol de importância social. Tornando-se expostas a diversas manifestações de violência psicológica, física e moral, as quais tendem a se perpetuar por toda a vida. Sim, porque a medida em que o tempo flui, o nível de pressão e tensão sobre as mulheres se acirra, em razão delas passarem, também, a competir entre si por um espaço.

Como dizem por aí, falta sororidade entre as mulheres! E os homens sabem muito bem disso e se valem dessa carência para fomentar os conflitos. Sem que nos demos conta da gravidade desse movimento, a verdade é que as mulheres são diariamente lançadas as arenas do mundo real e virtual, por meio de pretextos, tais como as novas dietas, os tratamentos estéticos revolucionários, as tendências ditadas pelos “hair stylists” mais renomados, as últimas coleções de roupas e calçados.

A ideia é fazer parecer que tudo isso pode deslocá-las de um patamar para outro na atenção masculina. Só que não. Pode ser que em alguns casos isso surta um efeito temporário; mas, basta um pequeno deslize aqui e outro ali, para ela voltar à estaca zero e ir parar no fim da fila das prioridades. As eleitas já foram escolhidas há tempos. Então, as demais ficam expostas aos insultos, aos desrespeitos, aos abusos, as arbitrariedades, apesar de todos os esforços que vêm sendo implementados para desconstruir essas práxis.

Pois é, em pleno século XXI, nenhuma diva renascentista estaria, então, na capa da Vogue, da Elle ou da Harper’s Bazaar, porque elas não se adequam aos “padrões” contemporâneos. Uau! O mundo não quer, mesmo, perder o controle masculino e se entrega a limitação feminina de uma maneira ridícula. Afinal, o que é um rosto bonito? Um corpo bonito? Uma estética visual perfeita? Esses são valores e conceitos altamente subjetivos. Pontos de vista individuais. Portanto, distantes de poderem ser considerados padrões; posto que, este é um conceito homogeneizante que supõe um consenso, no caso inexistente.

Ora, ora. Com o mundo pegando fogo, deteriorando a olhos vistos, e os homens preocupados em invisibilizar as mulheres de uma maneira tão torpe. Faça-me o favor! Enquanto, ainda, resta espaço para a sobrevivência dessa tal raça humana, se entende que há espaço para todos sem distinção. Cada um na sua. Cada um aceitando a sua identidade, a sua essência, a sua imagem. Cada um colaborando da melhor forma. Cada um exercendo o seu papel em prol de uma transformação positiva.

Quem sabe não seja hora de resgatar o Renascentismo, hein? De dar-lhe uma repaginada contemporânea, reacendendo a valorização humana em suas múltiplas possibilidades existenciais. Porque todo esse apego estético é, no mínimo, inútil. A forma está inevitavelmente submetida as ações imperiosas do tempo, de modo que o viço e o esplendor são fugazes. Mas, com o conteúdo é diferente. O tempo o lapida de maneira especial, elaborando cada vez mais a sua essência. No fim das contas, é ele quem sobra para traduzir o que somos. Ah, e como precisamos saber quem habita em nós!

Como disse Ralph Waldo Emerson, “Podemos viajar por todo o mundo em busca do que é belo, mas se já não o trouxemos conosco, nunca o encontraremos”. E isso vale para homens e mulheres. Quem sabe não é esta a hora de romper com tantas amarras, tantas idealizações. Ser humano que é ser humano vive em eterna construção. Nunca está completo. Nunca está inteiro. Nunca é perfeito. E é justamente nisso, nessa metamorfose, que reside o apogeu da sua beleza, do seu encanto, do seu fascínio. Cada influência do tempo sobre nós conta uma história, de modo que nossas mudanças estéticas falam silenciosamente por onde andamos, o que fizemos, como transitamos pela vida.

Sendo assim, “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante [...]”1. Não quero ser a musa de ninguém que não me aceite como sou. Não quero me enquadrar a esse ou aquele padrão da moda. Não quero ceder as tentações objetificantes do mundo. Em pleno século XXI, eu me reservo no direito de me autorretratar como sou. Sejamos honestos, enquanto a sociedade cobra tantas adequações, tantas perfeições estéticas, ela deveria repensar as deformidades éticas e morais que estão distribuídas por aí, em cada esquina, causando tantos estragos irreparáveis. Afinal de contas, elas sim, são muito mais graves e degradantes do que qualquer ruguinha ou gordurinha existente no corpo de muita gente por aí.  

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