Em tempos de
inimigos íntimos...
Por Alessandra
Leles Rocha
Por mais difícil que seja admitir ou aceitar,
um dos maiores presentes que existe nessa vida é conviver com pessoas capazes
de lhe dizer a verdade, por pior que ela seja. É esse o tipo de ser humano em
que se pode confiar. Porque ele não faz barganha da amizade, não joga com
interesses, não corrompe a própria paz de espírito. Ele faz pelo outro o que
espera que outros façam por ele, também.
E como é do ser humano, vez por outra,
extrapolar os limites, agir irrefletidamente, abusar do excesso de autoestima,
falar pelos cotovelos, etc.etc.etc. é bom saber que existe alguém atento o
bastante para servir como freio e contrapeso, evitando os arroubos, as
inconsequências mais desastrosas e absurdas, a fim de minimizar as
consequências. Pena, que pessoas assim estão cada vez mais raras.
Coisas dessa Pós-Modernidade fluida! Ninguém
quer se responsabilizar por aquilo que diz, pensa e faz, tanto do ponto de
vista pessoal quanto em relação aos seus pares. De modo que o ser humano cada
vez mais se abstém de intervir, de manifestar as suas opiniões e ponderações,
de auxiliar seus semelhantes em situações críticas, desagradáveis,
constrangedoras. Dentro do contexto de que “cada
um é responsável por si mesmo”, o mundo pode até desabar que ninguém sai do
lugar para tomar qualquer providência. Às vezes, quando age já é tarde e o
estrago não pode ser reparado.
Acontece que esse tipo de movimento não se
resume ao cotidiano das “vidinhas comuns”
da grande população. Tendo ultrapassado as fronteiras dos campos das relações
sociais, ele consegue atingir anônimos e famosos, invisíveis e visíveis,
desimportantes e importantes, como queiram definir. Tudo por conta da efemeridade das
convivências e coexistências, as quais na contemporaneidade parecem ter
estabelecido um prazo de validade e profundidade de interação bastante
definidos, a partir dos jogos de interesse suspensos no ar.
Como as pessoas estão cada vez mais absortas
dentro dos seus próprios casulos de individualismo, elas acabam se expondo e se
vulnerabilizando pela ausência de alguém que lhes possa recobrar a razão.
Muitos acabam se tornando “memes”,
por aí, à revelia de sua própria vontade e por razões, nem sempre, engraçadas. Tudo
por conta de uma insensibilidade que se aflorou em decorrência da ruptura que
se estabeleceu com a empatia. Mas, se hoje isso acontece com o outro, amanhã
pode ser com você. Infelizmente, é assim!
Por trás do que se pode apurar de visível
nesse fenômeno, há muita coisa a se conhecer e se discutir; sobretudo, no campo
da saúde mental. Ora, não foi só a Pandemia do Sars-Cov-2 que fez muita gente “pirar”. Antes dela, a construção da
própria contemporaneidade já cobrava um preço alto da humanidade, no que tange
ao equilíbrio psicoemocional. Todo o stress, a competitividade, o consumismo, o
individualismo, as relações de poder, ... remexiam com as emoções, os
sentimentos, os sonhos, as aspirações, as projeções, as carências e as
frustrações dos seres humanos que só pensavam em ser livres.
Em contrapartida, a vida se tornou cada vez
mais hostil e brutalizada. De modo que, à flor da pele, as pessoas passaram a revelar
a perda total do tato, da diplomacia, do “jogo
de cintura”, do humor, para sobreviver no contexto das diversas relações
sociais. Os discursos, as narrativas, os gestos, as ações, se tornaram cada vez
mais ásperos, mais inconvenientes, mais incongruentes, mais beligerantes, mais
irracionais, dando origem a estopins de conflitos intensos e agudizados. Como
se os indivíduos estivessem literalmente fora do controle de si mesmos e
desguarnecidos de qualquer amparo eficiente para sustentá-los nos momentos mais
críticos.
Algo que é extremamente importante refletir
porque, somado as inaptidões, incapacidades e incompetências naturais de
qualquer ser humano, o indivíduo se transforma em uma bomba que pode explodir a
qualquer momento, por qualquer razão. Tudo vai depender dos níveis de tensão e
pressão os quais ele é submetido diariamente. Não é à toa que a violência está
em todos os lugares, sob formas e conteúdos estarrecedores. Ela assumiu o papel
de válvula de escape desse movimento social.
Entretanto, como o ser humano é singular e tem
lá, as suas especificidades e particularidades, pode ser que ele opte por se
embrenhar em si mesmo até se afundar e alcançar o suicídio. Fato que tem
preocupado autoridades e especialistas em todo o planeta, dados os parâmetros
estatísticos a respeito, especialmente, em relação aos jovens. O modelo de
relações sociais que eles experenciam não parece lhes oportunizar algo
verdadeiramente bom e salutar. Portanto, muitos não encontram sentido na
violência para ressignificar os seus desconfortos; mas, também, não sabem
construir uma dialogia eficiente. A solução acaba sendo a autodestruição.
Por isso, há de se ter muito cuidado na
superficialização das análises cotidianas. Nem tudo o que parece, realmente é.
O comportamento humano é dissecável, há inúmeras camadas a serem extraídas para
se traduzir o conjunto de informações presentes. Nem tudo é bobagem. Nem é tudo
é supérfluo. Nem tudo é descartável. Nem tudo está solto e perdido. Afinal, o
ser humano é uma linha do tempo, uma história contada em fascículos diários,
repleta de “plot twists” a fazer rir,
chorar ou prender a respiração, quando menos se espera. Então, ela não pode ser
lida em recortes, em “frames”, como é de costume fazer o homem contemporâneo na
sua sede de ansiedade tendenciosa.
Por trás das bizarrices, das esquisitices, dos
absurdos chulos, das vulgaridades, das verborragias, há questões reais pedindo
socorro, pedindo solução, pedindo intervenção, pedindo limite, porque estão
cansadas de se arrastar pelo tempo. Mas, para isso é preciso que alguém se
mova, que alguém estenda a mão, que alguém se manifeste de maneira apropriada.
Quem fica aplaudindo sem razão, rindo diante da mais plena falta de graça,
incentivando o irracional, desnuda as piores intenções e atenções, deixando
visível os contornos de um caráter inconfessável, oportunista e perverso, de
alguém que se julga melhor e capaz de extrair benefícios da desgraça alheia.
Sidarta Gautama (ou Buda), dizia que “Uma mentira pode salvar o seu presente, mas condena o seu futuro”. É preciso, então, olhar com atenção para as pessoas que nos rodeiam, por mais complexa que possa parecer essa tarefa. Porque “um falso amigo deixará que tu sigas livremente por qualquer direção. Apenas os amigos verdadeiros farão advertências, porque quem ama de verdade critica e se preocupa, tal modo que sempre te apontarão os obstáculos, as limitações e o abismo no final do caminho, enquanto o falso amigo se regozijará de ver-te tropeçando e caindo no precipício” (Augusto Branco – escritor e poeta brasileiro). Então, considerando o curso da contemporaneidade é preciso não esquecer que “os piores inimigos são os que aplaudem sempre” (Tácito – orador e político romano); por essa razão é que “de todos os perigos, o maior é o de subestimarmos os nossos inimigos” (Pearl Buck – escritora norte-americana).