sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Em tempos de inimigos íntimos...


Em tempos de inimigos íntimos...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por mais difícil que seja admitir ou aceitar, um dos maiores presentes que existe nessa vida é conviver com pessoas capazes de lhe dizer a verdade, por pior que ela seja. É esse o tipo de ser humano em que se pode confiar. Porque ele não faz barganha da amizade, não joga com interesses, não corrompe a própria paz de espírito. Ele faz pelo outro o que espera que outros façam por ele, também.

E como é do ser humano, vez por outra, extrapolar os limites, agir irrefletidamente, abusar do excesso de autoestima, falar pelos cotovelos, etc.etc.etc. é bom saber que existe alguém atento o bastante para servir como freio e contrapeso, evitando os arroubos, as inconsequências mais desastrosas e absurdas, a fim de minimizar as consequências. Pena, que pessoas assim estão cada vez mais raras. 

Coisas dessa Pós-Modernidade fluida! Ninguém quer se responsabilizar por aquilo que diz, pensa e faz, tanto do ponto de vista pessoal quanto em relação aos seus pares. De modo que o ser humano cada vez mais se abstém de intervir, de manifestar as suas opiniões e ponderações, de auxiliar seus semelhantes em situações críticas, desagradáveis, constrangedoras. Dentro do contexto de que “cada um é responsável por si mesmo”, o mundo pode até desabar que ninguém sai do lugar para tomar qualquer providência. Às vezes, quando age já é tarde e o estrago não pode ser reparado. 

Acontece que esse tipo de movimento não se resume ao cotidiano das “vidinhas comuns” da grande população. Tendo ultrapassado as fronteiras dos campos das relações sociais, ele consegue atingir anônimos e famosos, invisíveis e visíveis, desimportantes e importantes, como queiram definir.  Tudo por conta da efemeridade das convivências e coexistências, as quais na contemporaneidade parecem ter estabelecido um prazo de validade e profundidade de interação bastante definidos, a partir dos jogos de interesse suspensos no ar.

Como as pessoas estão cada vez mais absortas dentro dos seus próprios casulos de individualismo, elas acabam se expondo e se vulnerabilizando pela ausência de alguém que lhes possa recobrar a razão. Muitos acabam se tornando “memes”, por aí, à revelia de sua própria vontade e por razões, nem sempre, engraçadas. Tudo por conta de uma insensibilidade que se aflorou em decorrência da ruptura que se estabeleceu com a empatia. Mas, se hoje isso acontece com o outro, amanhã pode ser com você. Infelizmente, é assim!

Por trás do que se pode apurar de visível nesse fenômeno, há muita coisa a se conhecer e se discutir; sobretudo, no campo da saúde mental. Ora, não foi só a Pandemia do Sars-Cov-2 que fez muita gente “pirar”. Antes dela, a construção da própria contemporaneidade já cobrava um preço alto da humanidade, no que tange ao equilíbrio psicoemocional. Todo o stress, a competitividade, o consumismo, o individualismo, as relações de poder, ... remexiam com as emoções, os sentimentos, os sonhos, as aspirações, as projeções, as carências e as frustrações dos seres humanos que só pensavam em ser livres.

Em contrapartida, a vida se tornou cada vez mais hostil e brutalizada. De modo que, à flor da pele, as pessoas passaram a revelar a perda total do tato, da diplomacia, do “jogo de cintura”, do humor, para sobreviver no contexto das diversas relações sociais. Os discursos, as narrativas, os gestos, as ações, se tornaram cada vez mais ásperos, mais inconvenientes, mais incongruentes, mais beligerantes, mais irracionais, dando origem a estopins de conflitos intensos e agudizados. Como se os indivíduos estivessem literalmente fora do controle de si mesmos e desguarnecidos de qualquer amparo eficiente para sustentá-los nos momentos mais críticos.

Algo que é extremamente importante refletir porque, somado as inaptidões, incapacidades e incompetências naturais de qualquer ser humano, o indivíduo se transforma em uma bomba que pode explodir a qualquer momento, por qualquer razão. Tudo vai depender dos níveis de tensão e pressão os quais ele é submetido diariamente. Não é à toa que a violência está em todos os lugares, sob formas e conteúdos estarrecedores. Ela assumiu o papel de válvula de escape desse movimento social.

Entretanto, como o ser humano é singular e tem lá, as suas especificidades e particularidades, pode ser que ele opte por se embrenhar em si mesmo até se afundar e alcançar o suicídio. Fato que tem preocupado autoridades e especialistas em todo o planeta, dados os parâmetros estatísticos a respeito, especialmente, em relação aos jovens. O modelo de relações sociais que eles experenciam não parece lhes oportunizar algo verdadeiramente bom e salutar. Portanto, muitos não encontram sentido na violência para ressignificar os seus desconfortos; mas, também, não sabem construir uma dialogia eficiente. A solução acaba sendo a autodestruição.

Por isso, há de se ter muito cuidado na superficialização das análises cotidianas. Nem tudo o que parece, realmente é. O comportamento humano é dissecável, há inúmeras camadas a serem extraídas para se traduzir o conjunto de informações presentes. Nem tudo é bobagem. Nem é tudo é supérfluo. Nem tudo é descartável. Nem tudo está solto e perdido. Afinal, o ser humano é uma linha do tempo, uma história contada em fascículos diários, repleta de “plot twists” a fazer rir, chorar ou prender a respiração, quando menos se espera. Então, ela não pode ser lida em recortes, em “frames”, como é de costume fazer o homem contemporâneo na sua sede de ansiedade tendenciosa.

Por trás das bizarrices, das esquisitices, dos absurdos chulos, das vulgaridades, das verborragias, há questões reais pedindo socorro, pedindo solução, pedindo intervenção, pedindo limite, porque estão cansadas de se arrastar pelo tempo. Mas, para isso é preciso que alguém se mova, que alguém estenda a mão, que alguém se manifeste de maneira apropriada. Quem fica aplaudindo sem razão, rindo diante da mais plena falta de graça, incentivando o irracional, desnuda as piores intenções e atenções, deixando visível os contornos de um caráter inconfessável, oportunista e perverso, de alguém que se julga melhor e capaz de extrair benefícios da desgraça alheia.

Sidarta Gautama (ou Buda), dizia que “Uma mentira pode salvar o seu presente, mas condena o seu futuro”. É preciso, então, olhar com atenção para as pessoas que nos rodeiam, por mais complexa que possa parecer essa tarefa. Porque “um falso amigo deixará que tu sigas livremente por qualquer direção. Apenas os amigos verdadeiros farão advertências, porque quem ama de verdade critica e se preocupa, tal modo que sempre te apontarão os obstáculos, as limitações e o abismo no final do caminho, enquanto o falso amigo se regozijará de ver-te tropeçando e caindo no precipício” (Augusto Branco – escritor e poeta brasileiro). Então, considerando o curso da contemporaneidade é preciso não esquecer que “os piores inimigos são os que aplaudem sempre” (Tácito – orador e político romano); por essa razão é que “de todos os perigos, o maior é o de subestimarmos os nossos inimigos” (Pearl Buck – escritora norte-americana).