Será
mesmo que tudo pode ser perdoado?!
Por
Alessandra Leles Rocha
Será mesmo que tudo pode ser
perdoado?! Na contemporaneidade parece que sim. Pelo menos tem sido essa a
ideia para ofuscar a covardia de quem se expõe deliberadamente a ofender,
agredir, insultar, difamar, inferiorizar, seja pelos meios virtuais ou reais, quem
não segue as suas opiniões e/ou comportamentos. Como se as palavras pudessem se
abster dos limites éticos e morais da convivência humana; particularmente,
aqueles estabelecidos dentro dos ordenamentos jurídicos.
E pensando dessa maneira, muitos “valentões de ocasião” saem por aí
derramando a sua verborragia furiosa e descompensada, cheios de si e de uma
arrogância estúpida, até serem constrangidos a reconsiderarem suas atitudes sob
pena de punições mais incisivas. Aí começam as ladainhas desculposas, os
arrependimentos oportunistas, que podem ou não surtir algum efeito, segundo a
gravidade dos fatos.
No entanto, o ponto crítico da
questão não se resume a isso, ao fato das manifestações desrespeitosas e,
muitas vezes, até violentas. É preciso entender que nos tempos contemporâneos
quaisquer possibilidades de se abrir precedentes para atenuar ou minimizar esse
tipo de comportamento se transforma, automaticamente, em licença para fazê-lo.
E é exatamente isso o que ocorre na maioria dos casos.
Antes que a situação ganhe
proporções graves e seja responsabilizada e punida dentro dos parâmetros legais,
há sempre uma “turma do deixa disso”
para contemporizar e demover, a outra parte envolvida, do exercício do seu
direito de reparação e justiça. Utilizam das desculpas mais esfarrapadas e
inconsistentes possíveis para criar uma narrativa de convencimento capaz de
transformar o absurdo em coisa banal, em impulso temperamental, em descontrole
momentâneo.
Ora, nada é dito por acaso, dito
sem pensar. O mecanismo de linguagem humano não tem nada de simples. Antes de
expressar em palavras, oralizadas ou escritas, as ideias são construídas a
partir dos mecanismos de coesão, aqueles que asseguram a ligação entre as
palavras e as frases, e de coerência, os quais estabelecem a conexão lógica
entre as ideias, permitindo a expressão de um sentido. Portanto, a linguagem
perpassa tanto pelos caminhos do consciente quanto do inconsciente.
Isso significa que ao se dispor a
ofender, a agredir, a insultar, a difamar e/ou a inferiorizar alguém, por meio
da linguagem, o indivíduo traz à tona aquilo o que ele pensa a respeito do
outro. De modo que a desculpa, de saída, já não cabe, porque negar o que foi
expresso não altera as convicções interiores. A desculpa é um pretexto para não
ser social e juridicamente punido; mas, não porque suas atitudes trouxeram
algum desconforto, constrangimento ou eventual arrependimento. Ela é meramente
protocolar.
Sendo assim, a desculpa se
banaliza e se torna um instrumento de refúgio em quaisquer situações
semelhantes que esse indivíduo venha a repetir. Tem-se, então, um processo que
deseduca a sociedade, porque flexibiliza a tal ponto os limites da convivência humana
que os indivíduos se sentem, suficientemente, à vontade para invadir e
transgredir os espaços uns dos outros. Como se tudo isso não impusesse
quaisquer consequências, desdobramentos, sanções ou represálias.
Não é à toa que as Fake News estão por aí, sob diferentes
formas e conteúdos, satisfazendo a esse movimento contemporâneo. Quando os seus
idealizadores e/ou disseminadores são reconhecidos e responsabilizados, eles sempre
apelam para uma desculpa formalizada. Não é que eles não reconheçam ou entendam
a dimensão das consequências de suas atitudes, eles apenas se abstêm de pensar
a respeito e tentam por fim ao caso através de um pedido de desculpas, porque a
própria sociedade lhes faz parecer suficiente. De certo modo é como se a vida
pudesse ser resolvida a partir de uma perspectiva infantilizada.
Entretanto, isso é muito sério.
Porque lança as relações humanas a uma arena de barbáries que se resumem ao
final, com desculpas frias e vulgares ou, muitas vezes, nem isso. Um dos
exemplos mais emblemáticos foi o assassinato do índio Galdino, em Brasília, em
1997. Ele foi queimado vivo, enquanto dormia em uma parada de ônibus, por um
grupo de cinco rapazes de classe média alta que, saindo de uma festa de
madrugada, decidiram fazer uma “brincadeira”.
Na teoria, eles foram punidos
pela justiça; mas, na prática, seu poder aquisitivo falou mais alto e a vida
voltou a ser como sempre foi. Quanto ao ser humano que, a princípio eles
pensaram ser “só um mendigo” e voluntariamente
mataram sem quaisquer chances de defesa, não teve essa mesma sorte, essa
benesse da sociedade. Ganhou sua visibilidade no mundo dos invisíveis pela
imortalidade oriunda da violência.
Portanto, é bom que se esclareça
de uma vez por todas que desculpas não são sinônimo para todo esse afã de
liberdade que consome o ser humano contemporâneo. Admitindo ou não, continuamos
responsáveis por tudo de bom e de ruim que realizamos em cada dia do cotidiano,
porque as voltas que o mundo dá são sempre implacáveis a bater a nossa porta,
em algum momento, cobrando a conta. Não se satisfaça, então, a viver pedindo
desculpas por isso ou aquilo.
Há tempos o homem vem domesticando
os seus instintos para dar vida, luz e brilho a sua capacidade mental de pensar
e, de repente, do nada, as pessoas decidem abrir mão disso à toa para se
curvar, logo em seguida, a covardia de se refugiar sob desculpas frágeis e não
condizentes com elas mesmas. Por isso, não se deve abdicar de pensar, refletir,
ponderar todos os prós e contras que habitam os pensamentos mais profundos. Só
depois desse processo é que se deve dizer ou fazer qualquer coisa.
Esse é o ponto da ruptura com as desculpas, com o hábito de usá-las como estratégia de sobrevivência e aceitação social. É aí que você vai realmente vai entender que “A liberdade não consiste só em seguir a sua própria vontade, mas às vezes também em fugir dela” (Kobo Abe – escritor japonês). Sem contar que “Mudar de opinião e seguir quem te corrige é também o comportamento do homem livre” (Marco Aurélio – imperador romano).