terça-feira, 19 de outubro de 2021

Será mesmo que tudo pode ser perdoado?!


Será mesmo que tudo pode ser perdoado?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Será mesmo que tudo pode ser perdoado?! Na contemporaneidade parece que sim. Pelo menos tem sido essa a ideia para ofuscar a covardia de quem se expõe deliberadamente a ofender, agredir, insultar, difamar, inferiorizar, seja pelos meios virtuais ou reais, quem não segue as suas opiniões e/ou comportamentos. Como se as palavras pudessem se abster dos limites éticos e morais da convivência humana; particularmente, aqueles estabelecidos dentro dos ordenamentos jurídicos.

E pensando dessa maneira, muitos “valentões de ocasião” saem por aí derramando a sua verborragia furiosa e descompensada, cheios de si e de uma arrogância estúpida, até serem constrangidos a reconsiderarem suas atitudes sob pena de punições mais incisivas. Aí começam as ladainhas desculposas, os arrependimentos oportunistas, que podem ou não surtir algum efeito, segundo a gravidade dos fatos.

No entanto, o ponto crítico da questão não se resume a isso, ao fato das manifestações desrespeitosas e, muitas vezes, até violentas. É preciso entender que nos tempos contemporâneos quaisquer possibilidades de se abrir precedentes para atenuar ou minimizar esse tipo de comportamento se transforma, automaticamente, em licença para fazê-lo. E é exatamente isso o que ocorre na maioria dos casos.

Antes que a situação ganhe proporções graves e seja responsabilizada e punida dentro dos parâmetros legais, há sempre uma “turma do deixa disso” para contemporizar e demover, a outra parte envolvida, do exercício do seu direito de reparação e justiça. Utilizam das desculpas mais esfarrapadas e inconsistentes possíveis para criar uma narrativa de convencimento capaz de transformar o absurdo em coisa banal, em impulso temperamental, em descontrole momentâneo.

Ora, nada é dito por acaso, dito sem pensar. O mecanismo de linguagem humano não tem nada de simples. Antes de expressar em palavras, oralizadas ou escritas, as ideias são construídas a partir dos mecanismos de coesão, aqueles que asseguram a ligação entre as palavras e as frases, e de coerência, os quais estabelecem a conexão lógica entre as ideias, permitindo a expressão de um sentido. Portanto, a linguagem perpassa tanto pelos caminhos do consciente quanto do inconsciente.

Isso significa que ao se dispor a ofender, a agredir, a insultar, a difamar e/ou a inferiorizar alguém, por meio da linguagem, o indivíduo traz à tona aquilo o que ele pensa a respeito do outro. De modo que a desculpa, de saída, já não cabe, porque negar o que foi expresso não altera as convicções interiores. A desculpa é um pretexto para não ser social e juridicamente punido; mas, não porque suas atitudes trouxeram algum desconforto, constrangimento ou eventual arrependimento. Ela é meramente protocolar.

Sendo assim, a desculpa se banaliza e se torna um instrumento de refúgio em quaisquer situações semelhantes que esse indivíduo venha a repetir. Tem-se, então, um processo que deseduca a sociedade, porque flexibiliza a tal ponto os limites da convivência humana que os indivíduos se sentem, suficientemente, à vontade para invadir e transgredir os espaços uns dos outros. Como se tudo isso não impusesse quaisquer consequências, desdobramentos, sanções ou represálias. 

Não é à toa que as Fake News estão por aí, sob diferentes formas e conteúdos, satisfazendo a esse movimento contemporâneo. Quando os seus idealizadores e/ou disseminadores são reconhecidos e responsabilizados, eles sempre apelam para uma desculpa formalizada. Não é que eles não reconheçam ou entendam a dimensão das consequências de suas atitudes, eles apenas se abstêm de pensar a respeito e tentam por fim ao caso através de um pedido de desculpas, porque a própria sociedade lhes faz parecer suficiente. De certo modo é como se a vida pudesse ser resolvida a partir de uma perspectiva infantilizada.

Entretanto, isso é muito sério. Porque lança as relações humanas a uma arena de barbáries que se resumem ao final, com desculpas frias e vulgares ou, muitas vezes, nem isso. Um dos exemplos mais emblemáticos foi o assassinato do índio Galdino, em Brasília, em 1997. Ele foi queimado vivo, enquanto dormia em uma parada de ônibus, por um grupo de cinco rapazes de classe média alta que, saindo de uma festa de madrugada, decidiram fazer uma “brincadeira”.

Na teoria, eles foram punidos pela justiça; mas, na prática, seu poder aquisitivo falou mais alto e a vida voltou a ser como sempre foi. Quanto ao ser humano que, a princípio eles pensaram ser “só um mendigo” e voluntariamente mataram sem quaisquer chances de defesa, não teve essa mesma sorte, essa benesse da sociedade. Ganhou sua visibilidade no mundo dos invisíveis pela imortalidade oriunda da violência.     

Portanto, é bom que se esclareça de uma vez por todas que desculpas não são sinônimo para todo esse afã de liberdade que consome o ser humano contemporâneo. Admitindo ou não, continuamos responsáveis por tudo de bom e de ruim que realizamos em cada dia do cotidiano, porque as voltas que o mundo dá são sempre implacáveis a bater a nossa porta, em algum momento, cobrando a conta. Não se satisfaça, então, a viver pedindo desculpas por isso ou aquilo.

Há tempos o homem vem domesticando os seus instintos para dar vida, luz e brilho a sua capacidade mental de pensar e, de repente, do nada, as pessoas decidem abrir mão disso à toa para se curvar, logo em seguida, a covardia de se refugiar sob desculpas frágeis e não condizentes com elas mesmas. Por isso, não se deve abdicar de pensar, refletir, ponderar todos os prós e contras que habitam os pensamentos mais profundos. Só depois desse processo é que se deve dizer ou fazer qualquer coisa.

Esse é o ponto da ruptura com as desculpas, com o hábito de usá-las como estratégia de sobrevivência e aceitação social. É aí que você vai realmente vai entender que “A liberdade não consiste só em seguir a sua própria vontade, mas às vezes também em fugir dela” (Kobo Abe – escritor japonês). Sem contar que “Mudar de opinião e seguir quem te corrige é também o comportamento do homem livre” (Marco Aurélio – imperador romano).