A
dignidade cidadã jogada no lixo
Por
Alessandra Leles Rocha
De volta ao cenário
da realidade brasileira, a fome tem causado impacto sobre muita gente dentro e
fora das redes sociais. De repente, se perdeu a possibilidade de virar o rosto,
de fechar os olhos, de desviar a atenção, na tentativa de invisibilizar essa que
é uma questão tão incômoda e constrangedora para a sociedade brasileira; posto
que, o país sempre se colocou na condição de “celeiro do mundo”, por conta dos seus sucessivos superávits
agrícolas.
Acontece que, por
incrível que pareça, a fome não é só um resultado da quantidade de alimentos
disponíveis nesse ou naquele lugar. O que pesa na sua existência é o fenômeno
da má distribuição de renda, que configura os quadros de pobreza e extrema
pobreza ao redor do mundo. Sem recursos suficientes que garantam a manutenção dos
direitos sociais é óbvio que a população alcance a realidade da fome em curto
espaço de tempo.
Quem já teve a
oportunidade de ler o poema “O Bicho”,
escrito por Manuel Bandeira em 1947, só tem, em parte, a dimensão do que é essa
realidade. Não há nada mais triste e
impactante do que ver de perto um ser humano revirando o lixo em busca de
alimentos. Eu vivi essa experiência durante a construção da minha dissertação
de mestrado, quando tive a oportunidade de visitar lixões e áreas de descarte
de lixo. Ali, naquele lugar, não importa gênero, raça, credo, idade,
escolaridade, nada.
É simplesmente o ser
humano no seu estado bruto de indignidade, lutando por uma sobrevivência em
plena insalubridade. As imagens são sempre fortes; assim, como o mau cheiro oriundo
do chorume que escorre em meio aos restos. Tendo em vista que grande parte dos
resíduos nos centros urbanos é coletada por caminhões que os mistura e tritura,
as pessoas que sobrevivem do lixo precisam, então, “garimpar” a fim de encontrar algo que possa ser aproveitado ou
consumido.
O que torna a
experiência desses indivíduos profundamente desumana e cruel; pois, além de
insuficiente a sua sobrevivência, ela os expõem a todo tipo de riscos de
acidentes e de contaminações biológicas. Sem contar que ela os mantêm afastados
da sua cidadania, pela total ausência de perspectivas e expectativas de
melhorias a sua condição social. Afinal, há uma estereotipização em relação ao
ser humano que sobrevive do lixo que vai muito além da invisibilização.
Colocadas à margem da
sociedade, elas são vistas como incapazes, ou usuários de drogas e álcool, ou “vagabundos”, ou dispostos a viver às
custas do Estado, enfim... Rótulos atribuídos gratuitamente para não se reconhecer
a existência das fronteiras seculares das desigualdades no país; bem como, os
caminhos que as construíram. Assim, uma consulta breve as estatísticas sobre a
fome no Brasil para se perceber que os percentuais não são homogêneos e
plenamente regulares ao logo do tempo.
O que significa que
os projetos econômicos, a construção de políticas públicas menos enviesadas, os
investimentos em favor do combate às desigualdades, todos esses aspectos têm
seu peso fundamental na melhoria do perfil socioeconômico da população e, por
consequência, na redução da fome e da pobreza no país. Não se trata, então, exclusivamente,
dos esforços individuais dessas pessoas para alcançar novos patamares de
dignidade à sua sobrevivência. É preciso que o país crie condições a essas
pessoas, tornando-as parte efetiva do processo de desenvolvimento, de progresso
e de justiça social; sobretudo, quanto à distribuição da renda.
Pena que ao contrário
disso, as propostas ou medidas a serem tomadas são sempre ineficientes,
insuficientes e atabalhoadas. De modo que em médio e longo prazo elas acabam
representando um agravamento das turbulências que já perfazem o cenário
econômico nacional, porque elas se baseiam em investimento assistencial direto
aos mais necessitados, mas não cria simultaneamente mecanismos capazes de promover
a reinserção social dessas pessoas; bem como, garantir a sobrevivência delas a
partir da consolidação de sua própria autonomia.
Haja vista, por
exemplo, que o valor médio da cesta básica, em agosto deste ano, estava em
torno de R$650,50, e as pessoas têm outras demandas além da alimentação. Então,
o governo cria projetos de auxílio financeiro para aqueles que estão em
situação de vulnerabilidade social que são inócuos dada a sua insuficiência
para suprir tudo o que o cidadão necessita para sobreviver. No entanto, ao
tomar essa iniciativa ele gera um custo gigantesco para o erário público;
porém, sem resultar em algo efetivamente satisfatório e durador para a
população, ou seja, investe-se muito, mas investe-se mal.
O que demonstra um
total desapreço da gestão pública a respeito de uma discussão séria,
equilibrada e contemporânea sobre as desigualdades. Tudo o que se vê é um
transitar em uma espiral indefinida que não permite se deslocar para outras
posições, reafirmando uma cronificação das mazelas, as quais só fazem
amplificar os próprios custos de manutenção sem devolver quaisquer respostas sociais
positivas. Parece que o Brasil se acostumou a assistir à luz do dia a
degradante exibição da sua involução social.
É triste a miséria. É
triste a fome. É triste o desalento. Mas, ainda mais triste é perceber que há
séculos ninguém se dispõe a transformar esse quadro. Que o abismo social
brasileiro parece cada vez mais legitimado, institucionalizado, por uns e
outros que enxergam o país apenas da perspectiva do próprio umbigo. E não é só
isso, acham graça do desperdício, da gastança irresponsável, porque se enxergam
“afortunados”, “bem-nascidos”, “bem
nutridos”, “bem espertos”, “bem importantes”, ...
Com certeza, eles
nunca leram o tal poema do pernambucano Manuel Bandeira e, nem tampouco, as
seguintes palavras de Matias Aires, filósofo e escritor nascido no Brasil
Colônia, “Quem são os homens mais do que
a aparência do teatro? A vaidade e a fortuna governam a farsa desta vida.
Ninguém escolhe o seu papel, cada um recebe o que lhe dão. Aquele que sai sem
fausto nem cortejo e que logo no rosto indica que é sujeito à dor, à aflição, à
miséria, esse é o que representa o papel de homem. A morte, que está de
sentinela, em uma das mãos segura o relógio do tempo. Na outra, a foice fatal.
E com esta, em um só golpe, certeiro e inevitável, dá fim a tragédia, fecha a
cortina e desaparece”.
Mas, não nos deixemos inquietar pela incompreensão que esses poderosos ou pseudopoderosos despertam em nós. O mundo ainda gira à revelia dos seres humanos. Então, quando menos se espera, quem ainda não viu pode, de repente, ver a fome, a pobreza, a miséria ao alcance das próprias mãos. Quem sabe, não possa até entender que “Miséria e injustiça acabarão por desaparecer se for permitido à pura luz da razão penetrar nas cavernas escuras da ignorância, da superstição e do ódio” (Erasmo de Rotterdam – teólogo e humanista neerlandês). Aguardemos...