Muito
além das 1000 páginas...
Por
Alessandra Leles Rocha
Dentre tantas
análises que a pandemia nos propiciou tecer, certamente, o resultado mais
doloroso a que chegamos foi descobrir que a defesa, incondicional e irrestrita,
da vida não é mais um consenso entre os seres humanos. Um Negacionismo histérico, sob diferentes vieses, e a disseminação
inescrupulosa e irresponsavelmente perigosa das Fake News deixou essa compreensão muita clara e bem fundamentada. Infelizmente,
o instinto de sobrevivência humano foi severamente relativizado dentro das
relações contemporâneas, deslocando a vida para um patamar de desimportância dentro
do rol das prioridades.
Então, quando a
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), sobre a gestão da Pandemia no Brasil, faz
a leitura do relatório consolidado a partir das investigações, depoimentos e
coletas de material comprobatório, que duraram pouco mais de seis meses, é
impossível não pairar uma sensação de como o país falhou enquanto sociedade. Aquelas
mais de 1000 páginas descrevem como a vida de mais de 213 milhões de
brasileiros foi negligenciada e comprometida, começando pelo governo que não só
agiu conscientemente contra as orientações da Organização Mundial da Saúde
(OMS); mas, também, conseguiu influenciar seus fiéis eleitores e seguidores a
defender e a agir dentro da sua perspectiva ideológica.
Em síntese,
fracassamos. Como seres humanos. Como brasileiros. Infelizmente, porque permitimos
que a vida deixasse de ser o mais importante ponto de agregação e defesa
coletiva. E por essa razão, o país alcançou a trágica cifra de mais de 600 mil
mortos pelo Sars-Cov-2 e continua diariamente perdendo em média 200 vidas, o
que representa quase a capacidade total dos grandes aviões de passageiros em
circulação. No entanto, para muitos, incluindo o próprio governo, isso não tem
a menor importância, não significa nada. Para essas pessoas, a ideia de que a
morte é inevitável, é uma consequência da existência humana, torna-se um
excelente pretexto para se acharem no direito frio e desumano de se abster em evitá-la.
Nesse ponto é preciso
ponderar que há uma diferença de comportamentos entre o governo e seus
apoiadores. Em ambos os casos, não defender a vida é algo ética e moralmente
condenável. No entanto, quando se trata do governo, de uma instituição constituída
a partir da escolha popular para representá-la e defendê-la em seus direitos
constitucionais, a não defesa da vida se torna um fato criminoso e passível de
responsabilização no campo jurídico nacional e, também, internacional. Afinal,
comumente se espera, a partir do arcabouço das responsabilidades
juridicoinstitucionais do núcleo principal do Executivo Federal, uma postura
comprometida e responsável em relação aos deveres impostos pela liturgia dos
cargos assumidos.
Assim, na dianteira dessas
responsabilidades e compromissos citados está a figura da liderança maior do
país, o Presidente da República. A ele foram apontados pelo relatório da CPI, os
crimes de epidemia com resultado de
morte, de infração a medidas sanitárias preventivas, de emprego irregular de
verba pública, de incitação ao crime, de falsificação de documentos
particulares, de charlatanismo, de prevaricação, contra a humanidade, e de responsabilidade. De modo que esse
relatório traz para as páginas da história brasileira uma mácula sem precedentes,
tornando os cidadãos brasileiros, ao menos em parte, incapazes de não sentir
consternação, constrangimento, vergonha, desolação, ... diante do mundo, nesse
momento. Afinal, em 1º de janeiro de 2019, tanto o Presidente, quanto o
Vice-Presidente, assumiram o compromisso de “Manter,
defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do
povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”.
Mas, não foi isso o
que aconteceu, causando perplexidade e indignação interna e externamente as
fronteiras brasileiras. Dentro do cenário da Pandemia, o Brasil assumiu em
todos os segmentos da sua gestão pública uma estratégia adversa ao restante do
planeta, abdicando de considerar as ações que deram certo, as práticas eficazes
que foram sendo consagradas, para se isolar no umbral de um ceticismo
oportunista e tendencioso. Assistindo em posição privilegiada o desespero e o morticínio
da população, especialmente, daqueles mais vulneráveis e já desassistidos pela carência
de políticas públicas que foram suprimidas, total ou parcialmente, pela atual
gestão governamental.
Certamente, em tempo
impossível de determinar com precisão, o mundo e o Brasil terão superado a
Pandemia. No entanto, as marcas deixadas pela experimentação do imprevisível não
tendem a se apagar, do mesmo modo que as especulações sobre a possibilidade de
novas epidemias (e pandemias) causadas por agentes infectocontagiosos
desconhecidos pairam no ar. Então, esse é o ponto sobre o qual o desejo de
reparação, de responsabilização, por tudo o que aconteceu no território brasileiro
se torna tão urgente.
Afinal de contas, a dor, o sofrimento, a tragicidade ao longo de todos esses meses fez emergir uma demanda muito grande por justiça. E conforme disse Rui Barbosa, “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. Assim, não acolher o clamor popular somado à materialidade comprobatória do relatório da CPI seria apunhalar o direito cidadão mais uma vez e conceder um gigantesco precedente de impunidade. Seria desconsiderar o fato de que “Não há nada mais relevante para a vida social que a formação do sentimento da justiça” (Rui Barbosa), lançando as consequências e desdobramentos das imprevisibilidades inscritas nas páginas do futuro aos braços da própria sorte.