quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Muito além das 1000 páginas...


Muito além das 1000 páginas...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Dentre tantas análises que a pandemia nos propiciou tecer, certamente, o resultado mais doloroso a que chegamos foi descobrir que a defesa, incondicional e irrestrita, da vida não é mais um consenso entre os seres humanos. Um Negacionismo histérico, sob diferentes vieses, e a disseminação inescrupulosa e irresponsavelmente perigosa das Fake News deixou essa compreensão muita clara e bem fundamentada. Infelizmente, o instinto de sobrevivência humano foi severamente relativizado dentro das relações contemporâneas, deslocando a vida para um patamar de desimportância dentro do rol das prioridades.

Então, quando a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), sobre a gestão da Pandemia no Brasil, faz a leitura do relatório consolidado a partir das investigações, depoimentos e coletas de material comprobatório, que duraram pouco mais de seis meses, é impossível não pairar uma sensação de como o país falhou enquanto sociedade. Aquelas mais de 1000 páginas descrevem como a vida de mais de 213 milhões de brasileiros foi negligenciada e comprometida, começando pelo governo que não só agiu conscientemente contra as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS); mas, também, conseguiu influenciar seus fiéis eleitores e seguidores a defender e a agir dentro da sua perspectiva ideológica.

Em síntese, fracassamos. Como seres humanos. Como brasileiros. Infelizmente, porque permitimos que a vida deixasse de ser o mais importante ponto de agregação e defesa coletiva. E por essa razão, o país alcançou a trágica cifra de mais de 600 mil mortos pelo Sars-Cov-2 e continua diariamente perdendo em média 200 vidas, o que representa quase a capacidade total dos grandes aviões de passageiros em circulação. No entanto, para muitos, incluindo o próprio governo, isso não tem a menor importância, não significa nada. Para essas pessoas, a ideia de que a morte é inevitável, é uma consequência da existência humana, torna-se um excelente pretexto para se acharem no direito frio e desumano de se abster em evitá-la.

Nesse ponto é preciso ponderar que há uma diferença de comportamentos entre o governo e seus apoiadores. Em ambos os casos, não defender a vida é algo ética e moralmente condenável. No entanto, quando se trata do governo, de uma instituição constituída a partir da escolha popular para representá-la e defendê-la em seus direitos constitucionais, a não defesa da vida se torna um fato criminoso e passível de responsabilização no campo jurídico nacional e, também, internacional. Afinal, comumente se espera, a partir do arcabouço das responsabilidades juridicoinstitucionais do núcleo principal do Executivo Federal, uma postura comprometida e responsável em relação aos deveres impostos pela liturgia dos cargos assumidos.

Assim, na dianteira dessas responsabilidades e compromissos citados está a figura da liderança maior do país, o Presidente da República. A ele foram apontados pelo relatório da CPI, os crimes de epidemia com resultado de morte, de infração a medidas sanitárias preventivas, de emprego irregular de verba pública, de incitação ao crime, de falsificação de documentos particulares, de charlatanismo, de prevaricação, contra a humanidade, e de responsabilidade. De modo que esse relatório traz para as páginas da história brasileira uma mácula sem precedentes, tornando os cidadãos brasileiros, ao menos em parte, incapazes de não sentir consternação, constrangimento, vergonha, desolação, ... diante do mundo, nesse momento. Afinal, em 1º de janeiro de 2019, tanto o Presidente, quanto o Vice-Presidente, assumiram o compromisso de “Manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”.

Mas, não foi isso o que aconteceu, causando perplexidade e indignação interna e externamente as fronteiras brasileiras. Dentro do cenário da Pandemia, o Brasil assumiu em todos os segmentos da sua gestão pública uma estratégia adversa ao restante do planeta, abdicando de considerar as ações que deram certo, as práticas eficazes que foram sendo consagradas, para se isolar no umbral de um ceticismo oportunista e tendencioso. Assistindo em posição privilegiada o desespero e o morticínio da população, especialmente, daqueles mais vulneráveis e já desassistidos pela carência de políticas públicas que foram suprimidas, total ou parcialmente, pela atual gestão governamental.

Certamente, em tempo impossível de determinar com precisão, o mundo e o Brasil terão superado a Pandemia. No entanto, as marcas deixadas pela experimentação do imprevisível não tendem a se apagar, do mesmo modo que as especulações sobre a possibilidade de novas epidemias (e pandemias) causadas por agentes infectocontagiosos desconhecidos pairam no ar. Então, esse é o ponto sobre o qual o desejo de reparação, de responsabilização, por tudo o que aconteceu no território brasileiro se torna tão urgente.

Afinal de contas, a dor, o sofrimento, a tragicidade ao longo de todos esses meses fez emergir uma demanda muito grande por justiça. E conforme disse Rui Barbosa, “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. Assim, não acolher o clamor popular somado à materialidade comprobatória do relatório da CPI seria apunhalar o direito cidadão mais uma vez e conceder um gigantesco precedente de impunidade. Seria desconsiderar o fato de que “Não há nada mais relevante para a vida social que a formação do sentimento da justiça” (Rui Barbosa), lançando as consequências e desdobramentos das imprevisibilidades inscritas nas páginas do futuro aos braços da própria sorte.