quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Uma distopia à brasileira


Uma distopia à brasileira

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Jamais pensei que o mundo pudesse, tão rapidamente, ficar à beira de uma distopia. Uma notícia publicada, hoje, exemplifica bem essa realidade, “CPI investiga tratamentos feitos sem autorização ou informação a pacientes e mortes suspeitas não informadas aos familiares. Nove pacientes ‘cobaias’ morreram durante a pesquisa, mas os autores de estudo da empresa só mencionaram duas mortes” 1. O Brasil está diante, então, de um contexto em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação, motivadas por diferentes razões socioeconômicas que, de alguma forma, acabam por cair no trivialismo bárbaro de uma normalidade que nunca existiu.

De repente, é como se a sociedade tivesse perdido não só a compreensão da ética em si; mas, também, da bioética, que é um campo de estudos dedicado aos problemas e implicações morais e jurídicas despertados pelas pesquisas científicas em biociências e ciências médicas. Aliás, tanto a literatura quanto o cinema têm se dedicado a trazer esses assuntos para o cotidiano da sociedade mundial, estimulando uma reflexão a respeito sob diferentes vieses. É o caso, por exemplo, dos filmes “Cobaias” (1997), “O Jardineiro Fiel” (2005) e “Não me abandone jamais” (2010).

O primeiro aborda a intenção governamental de um determinado país em estudar o desenvolvimento da Sífilis nos negros para comparar se eles eram biologicamente iguais ou diferentes aos brancos. O segundo se refere ao trabalho das grandes empresas farmacêuticas e de um governo, que utilizariam pessoas contaminadas pelo vírus HIV no continente africano, como cobaias. E o terceiro é baseado no livro distópico de Kazuo Ishiguro, “Never let me go”, de 2005, sobre a criação de clones humanos para a doação de órgãos.

Com esses panos de fundo, os roteiros são compostos por informações e questionamentos em torno das infinitas possibilidades de controle dos seres humanos, do bloqueio a criticidade e o pensamento, do surgimento de um automatismo alienante, os quais fazem romper os parâmetros éticos nas relações sociais.

A questão é que nem tudo o que acontece de grotesco e perverso no mundo, é verdadeiramente permitido enxergar. A forma como os indivíduos são usados e manipulados diariamente por outros seres humanos, há tempos, vem sendo justificada por uma ultrajante naturalização, que tem como objetivo principal conduzir a uma abstenção do peso e do sofrimento de lutar contra essa corrente de interesses degenerados.

De modo que por trás desse movimento há o que Foucault explicou como Biopoder, ou seja, “uma tecnologia de poder voltada para o ‘fazer viver’ e o ‘deixar morrer’, que será um poder que vai se encarregar da preservação da vida, eliminando tudo aquilo que ameaça a preservação e o bem-estar da população2. Mas, quem decide o que é ameaça ou não a preservação e o bem-estar da população? Esse é o ponto principal. Porque há sempre alguém a se apropriar de argumentos próprios para exercer o Biopoder, ou seja, a controlar tudo e todos, segundo seus próprios interesses, sua própria ética e sua própria moral. Isso explica a razão de a vida se encontrar tão ameaçada; embora, permaneça declarada como direito humano universal.  

Isso aponta para uma relativização exacerbada em relação à importância da vida. O limite entre viver e morrer está cada vez mais por um triz. E não precisa ir muito longe para se encontrar exemplos desse fenômeno no Brasil. Uma passada de olhos no Anuário de Segurança Pública/2021 traz o perfil das violências nesse contexto. Já o Observatório COVID-19, da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), revela o andamento da Pandemia em território nacional. E assim, diversas outras entidades e Organizações Não-Governamentais (ONGs) contribuem para dissecar os desafios para a vida da população brasileira, em todos os seus matizes de raça, gênero, idade, escolaridade, religião e status social.

Entenda, se o mundo chegou a essa realidade absurda e irracional foi, em grande parte, em razão do desconhecimento. Seja ele voluntário ou não. Ele é a via mais rápida para a vulnerabilidade, porque torna as pessoas alvos fáceis. Não bastam leis, códigos, declarações, doutrinas a afirmar e reafirmar o direito à vida; é fundamental se interessar em saber, em conhecer, em entender como esse processo acontece no mundo. Esse é o primeiro passo para resgatar a importância que se dá a própria vida; mas, também, a principal barreira de contenção contra as atrocidades que vieram sendo perpetuadas ao longo da história e permanecem, quando ninguém faz oposição a elas.



2 DINIZ, F. R. A.; OLIVEIRA, A. A. de. FOUCAULT: Do Poder Disciplinar ao Biopoder. Scientia, Sobral, CE, v.2, n.3, p.143-158, nov.2013/jun.2014.