Pelas
trilhas históricas em busca da cidadania
Por
Alessandra Leles Rocha
Nem sempre a história se
coloca inteira e completa à compreensão, simultaneamente, ao desenrolar dos
acontecimentos. Às vezes, leva tempo. Às vezes, demanda um conhecimento maior
para apurar as análises. Às vezes, requer o surgimento de desdobramentos
chaves. Enfim... O importante é que, mais dia menos dia, a verdade vem à tona,
o quebra-cabeça finalmente é concluído, e os fragmentos históricos passam a
ocupar o seu verdadeiro lugar.
Acontece que para muitas
pessoas esse movimento ainda é insuficiente para se desapegar de certas
convicções, crenças e valores. E faço essa ressalva aqui, pensando justamente
naquelas que persistem acreditando, por exemplo, que a corrupção no Brasil é
algo que se possa liquidar. O que explica haver eleitores aguardando o
surgimento de um nome que venha lhes satisfazer esse desejo. Vejo nisso, então,
um idealismo quase pueril, o qual se permitiu negar as lições das aulas de
História do Brasil e Geral, apagando da memória, o fato de que essa é uma
mazela antiga para a humanidade.
Afinal, as construções
políticas são fiadas a partir de alianças e apoios, que não se podem afirmar,
de uma natureza altruísta e tão bem-intencionada, assim. Na vida nada é de
graça, e na política muito menos. O que não faltam nas páginas da história
brasileira são exemplos disso, a tal ponto que conseguiram consolidar um
fisiologismo crônico no país. No qual certos representantes e servidores públicos
acabam cedendo a certas condutas e práticas para satisfazerem interesses
pessoais ou partidários, em prejuízo da nação. De modo que essas práxis há
muito já revelaram a inespecificidade quanto a sujeitos e/ou partidos,
entregando-se a realidade de um verdadeiro “balaio
de gatos” bastante plural.
E diante disso, todo pleito
eleitoral no Brasil já deveria partir da premissa de que nem tudo seguirá pelo
script de uma ética e de uma moral idealizada. Portanto, esconder-se atrás
dessa pauta para não revelar o que de fato guarda na alma, como anseio
depositado secretamente no voto, é de certa forma uma hipocrisia que vem se
repetindo há séculos, nesse país. Afinal, reside um certo relativismo na
condição de ex-colônia brasileira, quando se trata da sua organização
político-social.
Isso significa que a
estrutura conservadora colonial resistiu ao longo do tempo na expressão da
direita nacional, seja ela mais ou menos radical, implicando em um exercício
político de defesas inflamadas em torno de uma “pauta de costumes”. Assim, na medida do espaço disponibilizado
pelas lideranças, em cada momento da história brasileira, questões como
igualdade de gênero, racismo, direitos sexuais e reprodutivos, direitos
humanos, políticas afirmativas e de reconhecimento da diversidade, tendem a ser
visibilizadas ou não.
De modo que é essa pauta, que
muitos eleitores tentaram encobrir através dos manifestos anticorrupção, nas
eleições de 2018. A fúria embasada no pretexto de uma corrupção absurdamente
fora de controle, reduzida aos recentes governos de esquerda, desobrigava a
necessidade de declarar guerra ao “politicamente
correto” e despejar uma avalanche de ofensas, exclusões e/ou
marginalizações aos desfavorecidos ou discriminados por raça, credo, gênero,
educação e classe social. Além disso, eles reconheciam que uma manifestação, às
claras, de suas convicções poderia ser antiproducente aos seus interesses
econômicos.
Sob o silêncio, então, de
suas verdadeiras intenções, a direita alcançou seu objetivo de retornar ao
poder, reconquistando o espaço para sua referida “pauta”. Mas, não contavam com o imponderável da vida, na forma de
uma Pandemia. O desenho de governança traçado pela direita foi desconstruído em
piscar de olhos. Diante de um vírus desconhecido, sem tratamento, sem prevenção
por via medicamentosa, o mundo se viu obrigado a isolar a população em suas
residências por longos períodos, determinar o uso de máscaras, reafirmar a
necessidade da higienização corporal, especialmente das mãos, com água e sabão
ou álcool em gel. O modo de ser e estar no mundo contemporâneo, portanto, foi
abruptamente transformado, o que impactou, também, os modos de produção e
consumo.
O que significa que, no
Brasil, um país em desenvolvimento, esse processo desencadeou desdobramentos
ainda mais severos para as conjunturas socioeconômicas, totalmente despreparadas
para um desafio dessa magnitude. O solavanco da Economia foi tamanho que repercutiu
em ondas, como um tsunami, sobre as camadas mais vulneráveis e desprotegidas da
população. Houve um crescimento exponencial do desemprego, da pobreza, da
miséria, do desalento, da evasão escolar, ... Em meio a tudo isso, mais de meio
milhão de brasileiros morreu em decorrência da COVID-19. Muitos deles, em razão
dos processos de exclusão e/ou marginalização social, defendidos pela direita,
que os lançaram sem redes de proteção aos riscos sanitários oferecidos pelo
Sars-Cov-2 e suas variantes.
Um estudo publicado, em abril
deste ano, pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade
de São Paulo (Made/USP) apontou, conforme explica uma das autoras, que “[...] em 2019, antes da pandemia, a taxa de
extrema pobreza no país era de 6,6%, o que representa 13,9 milhões de pessoas.
Já a taxa de pobreza era de 24,8%, afetando 51,9 milhões de brasileiros.
Considerando o valor médio de R$250 estabelecido para o auxílio emergencial em
2021, vemos que a taxa de extrema pobreza esse ano deverá ser de 9,1% (19,3
milhões de pessoas) e a de pobreza de 28,9% (61,1 milhões de pessoas). Assim, após
um ano de pandemia, teremos um acréscimo de aproximadamente 9 milhões de
brasileiros em situação de pobreza e insegurança alimentar”1.
O que acende um alerta para o
fato de que outros brasileiros poderão, então, morrer por razões que
ultrapassam a Pandemia; poderão morrer pelas outras faces da desassistência.
Mas, enquanto isso, o país orbita a realidade paralela de uma eleição
presidencial que está por vir, ou seja, no grande tabuleiro do jogo político,
as estratégias estão sendo pensadas sobre um ano que ainda não chegou. De modo
que não há interesse, nem sequer preocupação, em relação ao bem-estar e a
dignidade da população; sobretudo, quanto as suas parcelas mais vulneráveis.
Essas pessoas não estão sendo computadas no rol das prioridades nacionais como
cidadãs, de fato e de direito; no máximo, como depositantes de um voto, que não
tem rosto, não tem alma.
Assim, diante de tudo isso, pare e pense, “Não acredite em algo simplesmente porque ouviu. Não acredite em algo simplesmente porque todos falam a respeito. Não acredite em algo simplesmente porque está escrito em seus livros religiosos. Não acredite em algo só porque seus professores e mestres dizem que é verdade. Não acredite em tradições só porque foram passadas de geração em geração. Mas, depois de muita análise e observação, se você vê que algo concorda com a razão e que conduz ao bem e benefício de todos, aceite-o e viva-o” (Siddhartha Gautama – “Buda”). Ao que tudo indica, esse é o verdadeiro caminho da cidadania que o brasileiro precisa aprender a trilhar para ressignificar a sua história.