sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Pelas trilhas históricas em busca da cidadania


Pelas trilhas históricas em busca da cidadania

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nem sempre a história se coloca inteira e completa à compreensão, simultaneamente, ao desenrolar dos acontecimentos. Às vezes, leva tempo. Às vezes, demanda um conhecimento maior para apurar as análises. Às vezes, requer o surgimento de desdobramentos chaves. Enfim... O importante é que, mais dia menos dia, a verdade vem à tona, o quebra-cabeça finalmente é concluído, e os fragmentos históricos passam a ocupar o seu verdadeiro lugar.

Acontece que para muitas pessoas esse movimento ainda é insuficiente para se desapegar de certas convicções, crenças e valores. E faço essa ressalva aqui, pensando justamente naquelas que persistem acreditando, por exemplo, que a corrupção no Brasil é algo que se possa liquidar. O que explica haver eleitores aguardando o surgimento de um nome que venha lhes satisfazer esse desejo. Vejo nisso, então, um idealismo quase pueril, o qual se permitiu negar as lições das aulas de História do Brasil e Geral, apagando da memória, o fato de que essa é uma mazela antiga para a humanidade.

Afinal, as construções políticas são fiadas a partir de alianças e apoios, que não se podem afirmar, de uma natureza altruísta e tão bem-intencionada, assim. Na vida nada é de graça, e na política muito menos. O que não faltam nas páginas da história brasileira são exemplos disso, a tal ponto que conseguiram consolidar um fisiologismo crônico no país. No qual certos representantes e servidores públicos acabam cedendo a certas condutas e práticas para satisfazerem interesses pessoais ou partidários, em prejuízo da nação. De modo que essas práxis há muito já revelaram a inespecificidade quanto a sujeitos e/ou partidos, entregando-se a realidade de um verdadeiro “balaio de gatos” bastante plural.

E diante disso, todo pleito eleitoral no Brasil já deveria partir da premissa de que nem tudo seguirá pelo script de uma ética e de uma moral idealizada. Portanto, esconder-se atrás dessa pauta para não revelar o que de fato guarda na alma, como anseio depositado secretamente no voto, é de certa forma uma hipocrisia que vem se repetindo há séculos, nesse país. Afinal, reside um certo relativismo na condição de ex-colônia brasileira, quando se trata da sua organização político-social.

Isso significa que a estrutura conservadora colonial resistiu ao longo do tempo na expressão da direita nacional, seja ela mais ou menos radical, implicando em um exercício político de defesas inflamadas em torno de uma “pauta de costumes”. Assim, na medida do espaço disponibilizado pelas lideranças, em cada momento da história brasileira, questões como igualdade de gênero, racismo, direitos sexuais e reprodutivos, direitos humanos, políticas afirmativas e de reconhecimento da diversidade, tendem a ser visibilizadas ou não.

De modo que é essa pauta, que muitos eleitores tentaram encobrir através dos manifestos anticorrupção, nas eleições de 2018. A fúria embasada no pretexto de uma corrupção absurdamente fora de controle, reduzida aos recentes governos de esquerda, desobrigava a necessidade de declarar guerra ao “politicamente correto” e despejar uma avalanche de ofensas, exclusões e/ou marginalizações aos desfavorecidos ou discriminados por raça, credo, gênero, educação e classe social. Além disso, eles reconheciam que uma manifestação, às claras, de suas convicções poderia ser antiproducente aos seus interesses econômicos.

Sob o silêncio, então, de suas verdadeiras intenções, a direita alcançou seu objetivo de retornar ao poder, reconquistando o espaço para sua referida “pauta”. Mas, não contavam com o imponderável da vida, na forma de uma Pandemia. O desenho de governança traçado pela direita foi desconstruído em piscar de olhos. Diante de um vírus desconhecido, sem tratamento, sem prevenção por via medicamentosa, o mundo se viu obrigado a isolar a população em suas residências por longos períodos, determinar o uso de máscaras, reafirmar a necessidade da higienização corporal, especialmente das mãos, com água e sabão ou álcool em gel. O modo de ser e estar no mundo contemporâneo, portanto, foi abruptamente transformado, o que impactou, também, os modos de produção e consumo.

O que significa que, no Brasil, um país em desenvolvimento, esse processo desencadeou desdobramentos ainda mais severos para as conjunturas socioeconômicas, totalmente despreparadas para um desafio dessa magnitude. O solavanco da Economia foi tamanho que repercutiu em ondas, como um tsunami, sobre as camadas mais vulneráveis e desprotegidas da população. Houve um crescimento exponencial do desemprego, da pobreza, da miséria, do desalento, da evasão escolar, ... Em meio a tudo isso, mais de meio milhão de brasileiros morreu em decorrência da COVID-19. Muitos deles, em razão dos processos de exclusão e/ou marginalização social, defendidos pela direita, que os lançaram sem redes de proteção aos riscos sanitários oferecidos pelo Sars-Cov-2 e suas variantes.

Um estudo publicado, em abril deste ano, pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made/USP) apontou, conforme explica uma das autoras, que “[...] em 2019, antes da pandemia, a taxa de extrema pobreza no país era de 6,6%, o que representa 13,9 milhões de pessoas. Já a taxa de pobreza era de 24,8%, afetando 51,9 milhões de brasileiros. Considerando o valor médio de R$250 estabelecido para o auxílio emergencial em 2021, vemos que a taxa de extrema pobreza esse ano deverá ser de 9,1% (19,3 milhões de pessoas) e a de pobreza de 28,9% (61,1 milhões de pessoas). Assim, após um ano de pandemia, teremos um acréscimo de aproximadamente 9 milhões de brasileiros em situação de pobreza e insegurança alimentar”1.

O que acende um alerta para o fato de que outros brasileiros poderão, então, morrer por razões que ultrapassam a Pandemia; poderão morrer pelas outras faces da desassistência. Mas, enquanto isso, o país orbita a realidade paralela de uma eleição presidencial que está por vir, ou seja, no grande tabuleiro do jogo político, as estratégias estão sendo pensadas sobre um ano que ainda não chegou. De modo que não há interesse, nem sequer preocupação, em relação ao bem-estar e a dignidade da população; sobretudo, quanto as suas parcelas mais vulneráveis. Essas pessoas não estão sendo computadas no rol das prioridades nacionais como cidadãs, de fato e de direito; no máximo, como depositantes de um voto, que não tem rosto, não tem alma.

Assim, diante de tudo isso, pare e pense, “Não acredite em algo simplesmente porque ouviu. Não acredite em algo simplesmente porque todos falam a respeito. Não acredite em algo simplesmente porque está escrito em seus livros religiosos. Não acredite em algo só porque seus professores e mestres dizem que é verdade. Não acredite em tradições só porque foram passadas de geração em geração. Mas, depois de muita análise e observação, se você vê que algo concorda com a razão e que conduz ao bem e benefício de todos, aceite-o e viva-o” (Siddhartha Gautama – “Buda”). Ao que tudo indica, esse é o verdadeiro caminho da cidadania que o brasileiro precisa aprender a trilhar para ressignificar a sua história.