sábado, 18 de setembro de 2021

Um sopro de esperança “freireana” sobre nós


Um sopro de esperança “freireana” sobre nós

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Como em tudo nesse país, a Educação também é influenciada pelos ranços históricos da colonização brasileira. Razão pela qual os desafios parecem girar em uma espiral sem fim, se agravando em ciclos de repetição, dependentes das influências políticas preocupadas com a satisfação de seus próprios interesses no campo nacional e internacional. Daí a fácil percepção de que muito pouco se avança em termos de consolidação de um sistema educacional capaz de construir conhecimento, em quantidade e qualidade satisfatórios; mas, também, realizar a lapidação do indivíduo para fazer luzir a sua cidadania.

Embora ciente da vasta dimensão territorial brasileira e todas as implicações que advém dessa realidade, a verdade é que as investigações quanto aos problemas enfrentados pela Educação brasileira não são muito diferentes nas cinco regiões. Fragilidade na formação e capacitação docente. Remuneração insuficiente aliada a ausência de infraestrutura logística para o desenvolvimento dos trabalhos educacionais. Desinteresse pela carreira de professor. Altos índices de evasão escolar nos diferentes níveis de ensino. Dificuldades de lidar com as violências a partir da perspectiva interna dos muros da escola. ...

No entanto, é a incapacidade de perceber que “escola é lugar de gente”, o maior de todos os desafios. Sem seres humanos existindo e coexistindo naquele espaço, chão, paredes e telhado se tornam uma estrutura inerte e sem significado. E pessoas não são iguais, são plurais, são diferentes. Seu modo de ser e estar no mundo é único, por consequência, elas irão construir seus alicerces cognitivos e intelectuais de maneira muito particular, a partir das suas vivências e experimentações cotidianas.

Por isso, tem dado tão errado essa ideia de impor um padrão único, quase uma receita de bolo, para ensinar. Primeiro, porque ele parte de um ponto de análise que, certamente, não é o mesmo para todos os alunos. Haja vista aqueles questionários socioculturais, que os alunos preenchem no ato da matrícula, que acabam se perdendo no fundo de gavetas empoeiradas, na medida em que não resultam em perfis traçados para sustentar as diretrizes dos planos político pedagógicos a serem implementados pelas instituições de ensino.

Segundo, porque desconsidera as evoluções geracionais que estão intimamente relacionadas as transformações sociais e tecnológicas do mundo. O que significa que, apesar da influência das desigualdades sociais impactando a acessibilidade dos alunos nesse ou naquele lugar social, eles vivem sob uma realidade de construção de conhecimento muito mais expandida do que se permite propor a escola. O mundo contemporâneo lhes mostra infinitas possibilidades de aprendizado, convidando-os para um exercício de autonomia e autoralidade; mas, a escola trabalha engessada por excessos de burocracias obsoletas que obstaculizam esse processo.

E assim, vai sendo minado o interesse, a disposição, a compreensão dos alunos sobre a importância da Educação. Simplesmente, porque fizeram dela um universo à parte e alheio ao mundo em que vivem os alunos. De modo que é cansativo viver se equilibrando entre dois lados que não dialogam entre si. Então, muitos desistem, abrem mão da escola, do saber educacional, e vão para a luta do dia a dia, com a cara e a coragem, extraindo do despreparo cognitivo e intelectual alguma gota que possa lhes aplacar a sede do desemprego.

Refletindo profundamente sobre esses cenários e conjunturas, partindo muitas vezes de experiências próprias, foi que o advogado pernambucano Paulo Reglus Neves Freire, ou simplesmente Paulo Freire, trocou as leis pela arte de ensinar, de alfabetizar os mais pobres. Sua proposta didático-pedagógica, que ultrapassou as fronteiras brasileiras para influenciar o mundo, buscava fazer da construção do conhecimento uma escada para a liberdade, na qual o cidadão, em contínua formação, dependeria para poder sobreviver com dignidade humana em um mundo repleto de injustiças.

Ele acreditava que a própria vivência do indivíduo era a base que retroalimentava a sua capacidade de aprendizado. Assim, um ensino contextualizado a partir da realidade do aluno potencializaria um conhecimento mais consistente e efetivo. Por isso, ele afirmava que “A teoria sem a prática vira ‘verbalismo’, assim como a prática sem teoria, vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade”.

E apesar do legado registrado em áudios, vídeos e livros1; bem como, os diversos títulos de Doutor Honoris Causa recebidos de diversas universidades (41), dentre elas Harvard, Cambridge e Oxford, em seu país ele encontrou uma combativa resistência ao seu trabalho e sua ideologia. Ao ponto que chegou a ser preso e exilado no Chile, durante o Regime Militar no Brasil, sob a acusação de “agitador”. Porém, mesmo com a Lei da Anistia, em 1979, o trabalho de Paulo Freire não conseguiu resgatar a integralidade da sua importância e discussão no cenário educacional brasileiro, permanecendo apenas cultuado e reverenciado fora do país.

Tanto que, às vésperas do seu centenário de nascimento, a ser comemorado amanhã, 19 de setembro, em meio a inúmeras homenagens, incluindo uma exposição intitulada “Ocupação Paulo Freire”2, no Itaú Cultural, em São Paulo, um episódio lastimável chamou a atenção. “Em decisão liminar, a Justiça Federal do Rio de Janeiro proibiu o governo federal de ‘praticar qualquer ato institucional atentatório a dignidade do professor Paulo Freire’ considerado Patrono da Educação Brasileira [...]”3. Entre os apontamentos que fundamentaram a solicitação dessa liminar pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), está o plano de governo apesentado pelo atual Presidente da República, durante a campanha eleitoral de 2018, no qual ele cita “expurgar ‘a ideologia de Paulo Freire’ da educação”.

Então, mediante as correntes que vêm arrastando a “nau” brasileira, não é de se espantar um gesto tão absurdo como esse; mas, é imprescindível percebê-lo e compreender que, realmente, “Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda” (Paulo Freire – Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. UNESP, 2000). Porque, “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão” (Paulo Freire – Pedagogia do Oprimido), algo que só uma Educação robusta é capaz de oportunizar e desenvolver. Uma Educação que se permita ensinar; mas, ao mesmo tempo, aprender.    



1 Educação como prática da liberdade (1967); Pedagogia do Oprimido (1968); Cartas à Guiné-Bissau (1975); Educação e Mudança (1981); Prática e Educação (1985); Por uma pedagogia da pergunta (1985); Pedagogia da Esperança (1992); Professora sim, Tia não: Carta a quem ousa ensinar (1993); À sombra desta mangueira (1995); Pedagogia da autonomia (1997).

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