Um
sopro de esperança “freireana” sobre
nós
Por
Alessandra Leles Rocha
Como em tudo nesse país, a
Educação também é influenciada pelos ranços históricos da colonização
brasileira. Razão pela qual os desafios parecem girar em uma espiral sem fim,
se agravando em ciclos de repetição, dependentes das influências políticas
preocupadas com a satisfação de seus próprios interesses no campo nacional e
internacional. Daí a fácil percepção de que muito pouco se avança em termos de
consolidação de um sistema educacional capaz de construir conhecimento, em
quantidade e qualidade satisfatórios; mas, também, realizar a lapidação do
indivíduo para fazer luzir a sua cidadania.
Embora ciente da vasta dimensão
territorial brasileira e todas as implicações que advém dessa realidade, a
verdade é que as investigações quanto aos problemas enfrentados pela Educação
brasileira não são muito diferentes nas cinco regiões. Fragilidade na formação
e capacitação docente. Remuneração insuficiente aliada a ausência de infraestrutura
logística para o desenvolvimento dos trabalhos educacionais. Desinteresse pela
carreira de professor. Altos índices de evasão escolar nos diferentes níveis de
ensino. Dificuldades de lidar com as violências a partir da perspectiva interna
dos muros da escola. ...
No entanto, é a incapacidade de
perceber que “escola é lugar de gente”,
o maior de todos os desafios. Sem seres humanos existindo e coexistindo naquele
espaço, chão, paredes e telhado se tornam uma estrutura inerte e sem
significado. E pessoas não são iguais, são plurais, são diferentes. Seu modo de
ser e estar no mundo é único, por consequência, elas irão construir seus
alicerces cognitivos e intelectuais de maneira muito particular, a partir das
suas vivências e experimentações cotidianas.
Por isso, tem dado tão errado
essa ideia de impor um padrão único, quase uma receita de bolo, para ensinar.
Primeiro, porque ele parte de um ponto de análise que, certamente, não é o
mesmo para todos os alunos. Haja vista aqueles questionários socioculturais,
que os alunos preenchem no ato da matrícula, que acabam se perdendo no fundo de
gavetas empoeiradas, na medida em que não resultam em perfis traçados para
sustentar as diretrizes dos planos político pedagógicos a serem implementados
pelas instituições de ensino.
Segundo, porque desconsidera as
evoluções geracionais que estão intimamente relacionadas as transformações
sociais e tecnológicas do mundo. O que significa que, apesar da influência das
desigualdades sociais impactando a acessibilidade dos alunos nesse ou naquele
lugar social, eles vivem sob uma realidade de construção de conhecimento muito
mais expandida do que se permite propor a escola. O mundo contemporâneo lhes
mostra infinitas possibilidades de aprendizado, convidando-os para um exercício
de autonomia e autoralidade; mas, a escola trabalha engessada por excessos de
burocracias obsoletas que obstaculizam esse processo.
E assim, vai sendo minado o
interesse, a disposição, a compreensão dos alunos sobre a importância da
Educação. Simplesmente, porque fizeram dela um universo à parte e alheio ao
mundo em que vivem os alunos. De modo que é cansativo viver se equilibrando
entre dois lados que não dialogam entre si. Então, muitos desistem, abrem mão
da escola, do saber educacional, e vão para a luta do dia a dia, com a cara e a
coragem, extraindo do despreparo cognitivo e intelectual alguma gota que possa
lhes aplacar a sede do desemprego.
Refletindo profundamente sobre
esses cenários e conjunturas, partindo muitas vezes de experiências próprias,
foi que o advogado pernambucano Paulo Reglus Neves Freire, ou simplesmente
Paulo Freire, trocou as leis pela arte de ensinar, de alfabetizar os mais
pobres. Sua proposta didático-pedagógica, que ultrapassou as fronteiras
brasileiras para influenciar o mundo, buscava fazer da construção do
conhecimento uma escada para a liberdade, na qual o cidadão, em contínua
formação, dependeria para poder sobreviver com dignidade humana em um mundo
repleto de injustiças.
Ele acreditava que a própria
vivência do indivíduo era a base que retroalimentava a sua capacidade de
aprendizado. Assim, um ensino contextualizado a partir da realidade do aluno
potencializaria um conhecimento mais consistente e efetivo. Por isso, ele
afirmava que “A teoria sem a prática vira
‘verbalismo’, assim como a prática sem teoria, vira ativismo. No entanto,
quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e
modificadora da realidade”.
E apesar do legado registrado em
áudios, vídeos e livros1; bem
como, os diversos títulos de Doutor Honoris Causa recebidos de diversas
universidades (41), dentre elas Harvard, Cambridge e Oxford, em seu país ele
encontrou uma combativa resistência ao seu trabalho e sua ideologia. Ao ponto
que chegou a ser preso e exilado no Chile, durante o Regime Militar no Brasil,
sob a acusação de “agitador”. Porém,
mesmo com a Lei da Anistia, em 1979, o trabalho de Paulo Freire não conseguiu
resgatar a integralidade da sua importância e discussão no cenário educacional
brasileiro, permanecendo apenas cultuado e reverenciado fora do país.
Tanto que, às vésperas do seu
centenário de nascimento, a ser comemorado amanhã, 19 de setembro, em meio a
inúmeras homenagens, incluindo uma exposição intitulada “Ocupação Paulo Freire”2, no
Itaú Cultural, em São Paulo, um episódio lastimável chamou a atenção. “Em decisão liminar, a Justiça Federal do
Rio de Janeiro proibiu o governo federal de ‘praticar qualquer ato
institucional atentatório a dignidade do professor Paulo Freire’ considerado
Patrono da Educação Brasileira [...]”3.
Entre os apontamentos que fundamentaram a solicitação dessa liminar pelo
Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), está o plano de governo
apesentado pelo atual Presidente da República, durante a campanha eleitoral de
2018, no qual ele cita “expurgar ‘a
ideologia de Paulo Freire’ da educação”.
Então, mediante as correntes que vêm arrastando a “nau” brasileira, não é de se espantar um gesto tão absurdo como esse; mas, é imprescindível percebê-lo e compreender que, realmente, “Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda” (Paulo Freire – Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. UNESP, 2000). Porque, “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão” (Paulo Freire – Pedagogia do Oprimido), algo que só uma Educação robusta é capaz de oportunizar e desenvolver. Uma Educação que se permita ensinar; mas, ao mesmo tempo, aprender.
1
Educação como prática da liberdade
(1967); Pedagogia do Oprimido (1968); Cartas à Guiné-Bissau (1975); Educação e
Mudança (1981); Prática e Educação (1985); Por uma pedagogia da pergunta
(1985); Pedagogia da Esperança (1992); Professora sim, Tia não: Carta a quem
ousa ensinar (1993); À sombra desta mangueira (1995); Pedagogia da autonomia
(1997).