A
ONU, a Pandemia e um certo cartão de vacinação...
Por
Alessandra Leles Rocha
Enquanto um constrangimento
paira no ar, por conta da ida do Presidente da República Federativa do Brasil à
abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, sem ter sido
vacinado contra a COVID-19, o que me surpreendeu foi a atitude da Organização
das Nações Unidas (ONU), até o momento.
É claro que eles têm o
direito de deliberar sobre as diretrizes do evento; mas, essa é uma questão que
vai muito além do fato de algum cidadão ou representação diplomática apresentar
ou não o cartão de imunização, em razão da Pandemia.
Atualmente, a ONU possui
193 Estados-Membros. Ainda que muitos deles estejam encontrando imenso desafio logístico
e orçamentário para cumprir o protocolo de imunização de suas populações, o que
não seria o caso do Brasil, a ideia de quaisquer dessas lideranças utilizar de
uma eventual prerrogativa diplomática para agir na contramão dos esforços
empenhados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ao longo desses quase dois
anos, é um total desserviço.
Primeiro, porque transmite
um sinal trocado para a população mundial, em relação à gravidade da Pandemia e
a importância crucial da imunização para a retomada da dinâmica socioeconômica.
Considerando tantas outras doenças existentes, as quais ainda não dispõem do benefício
de uma vacina para a sua prevenção, como é o caso da AIDS, a Ciência ter
conseguido alcançar tamanho êxito, em relativo espaço de tempo, representa não
só uma vitória gigantesca para a sobrevivência humana frente à COVID-19; mas,
também, um fator mitigador de impactos em cada estrato do cotidiano.
Segundo, porque esbarra
diretamente no principal pilar de sustentação da entidade que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
promulgada em 1948, em meio aos esforços de recuperação do planeta após o término
da Segunda Guerra Mundial. Logo em seu 1º artigo, se manifesta que “Todos
os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de
razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade”.
E justamente por saber que
a realidade, sobretudo a contemporânea, espelha um enorme relativismo dessa igualdade,
na medida da persistente escalada de desigualdades socioeconômicas em todo o
planeta, certas flexibilizações fazem transparecer que de fato algumas vidas
são mais importantes do que outras.
Transitando, inclusive, na
contramão dos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela própria ONU. Afinal, eles
dizem respeito a garantir uma agenda global para a construção e implementação
de políticas públicas que respeitem a igualdade e a equidade em relação as
pessoas, ao planeta, a prosperidade, as parcerias e a paz.
Não nos esqueçamos de que nas
estatísticas de vítimas da COVID-19, estão mais de 590 mil brasileiros que
perderam a oportunidade de viver em razão de Fake News, do emprego de fármacos ineficientes para o tratamento do
Sars-COV-2 e suas variantes, de insuficiência de recursos médico-hospitalares, de
demora na compra de vacinas e construção de protocolos de imunização. Razões que
se explicam por uma arraigada e irresponsável defesa de convicções próprias do
governo brasileiro.
Se a ONU é, então, capaz de
criar certas concessões, de ser tão condescendente, mesmo em tempos de uma
Pandemia que já vitimou mais de 4,55 milhões de seres humanos em todo o mundo,
como fazer as nações se engajarem de maneira plena e efetiva em torno de
projetos como os ODS?
Não se pode esquecer de que
nas entrelinhas de cada um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estão,
também, marcados os princípios dos Direitos Humanos, e “garantir o acesso à saúde de qualidade e promover o bem-estar para
todos, em todas as idades”1 é o
terceiro desses objetivos.
Não é preciso dizer que o
século XXI vive um contexto de crises profundas para a manutenção da liberdade,
da justiça e da paz, em decorrência de movimentos antrópicos que atingem não só
a raça humana; mas, todo o Meio Ambiente.
Mais do que nunca se faz
necessário ecoar um discurso uníssono, sem exceções, sem potencial para criar
dissensos e beligerâncias, para que o objetivo maior de sobrevivência humana
possa ser devidamente alcançado.
E nesse contexto, a consciência
em relação aos iminentes riscos de novas epidemias provocadas por agentes
infectocontagiosos desconhecidos não pode ser negligenciada. Por piores que
estejam sendo as experiências vivenciadas durante a COVID-19, elas são fundamentais
para se enfrentar as imprevisibilidades futuras, em todos os nichos de existência
social.
Daí a necessidade de que os
discursos e narrativas não produzam ruídos capazes de dispersar e confundir a
atenção da população. Haja vista quantas distorções, equívocos e mentiras foram
produzidas a partir de um maciço movimento Negacionista ao redor do planeta.
No Brasil, por exemplo, tem
havido uma drástica redução na imunização contra o Sarampo, a Poliomielite, a
Difteria e a Rubéola, nos últimos anos, de modo que essas doenças estão
gradativamente retornando a um cenário epidemiológico preocupante no país.
Diariamente, as notícias ao
redor do planeta dão conta das idas e vindas estatísticas do Sars-COV-2 e suas
variantes, ou seja, números de contaminados, mortos e sobreviventes dessa
pandemia em curso. Isso ocorre porque, apesar de todos os esforços técnico-científicos
para debelar essa crise sanitária sem precedentes, há inúmeras perguntas dentro
do escopo da biologia desse vírus que ainda não foram respondidas.
Trata-se de algo natural
dentro de contextos excepcionais como esse; mas, significa que não chegamos ao
fim da Pandemia. Ela está aí e é fundamental permanecer atento e precavido,
para se evitar desdobramentos cada vez mais complexos.
Esse é o ponto de reflexão
que cabe a cada cidadão do planeta; mas, sobretudo, a ONU. A sua importância enquanto
organização intergovernamental, criada para promover a cooperação governamental
nos assuntos de segurança, paz mundial, direitos humanos, desenvolvimento econômico,
progresso social, meio ambiente, ajuda humanitária e saúde, precisa manter vivo
e contínuo o seu protagonismo.
O que significa
expressar-se sempre de maneira clara e objetiva, a fim de que não venha a ser
arranhada ou comprometida a sua credibilidade junto as populações de todo
mundo. Afinal, o lugar de fala da ONU não se resume a um diálogo restrito às
lideranças e delegações estrangeiras; mas, principalmente, com os cidadãos que
representam o último elo de acesso dos seus esforços e projetos em cada canto
do planeta.