sábado, 4 de setembro de 2021

O esporte posto em xeque


O esporte posto em xeque

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A indignação é amarga; mas, talvez, sem ela não se consiga descortinar certas verdades que se escondem por aí. Nem só de paz, harmonia e amizade entre os povos se constrói a competição que enaltece o mais rápido, o mais alto, o mais forte. Por trás do ideário olímpico, o qual também sustenta o paralímpico, se começa a conhecer a face obscura das medalhas.

O excesso de rigor em relação ao doping ou quaisquer outros instrumentos que venham beneficiar o desempenho dos atletas, é uma marca presente na Olimpíada (Paralimpíada) da era Moderna. Entretanto, mal sabiam os atletas, jornalistas e torcedores que a igualdade desportiva poderia estar em risco por outras vias.

Embora existam as regras para cada desporto e árbitros, que se orientam por elas, posicionados adequadamente para validar e dirimir eventuais dúvidas que possam surgir no ato da disputa, isso não é tudo. Há um júri de apelação que pode ser acionado pelas equipes, em caso de contestação dos resultados. No entanto, esse recurso fere diretamente o princípio de igualdade competitiva e não permite a quem foi penalizado se manifestar.

Que o diga o atleta brasileiro, Thiago Paulino, competidor do arremesso de peso, categoria F57, nessa Paralimpíada, quando lhe foi retirado o primeiro lugar, depois de uma apelação manifesta por um atleta chinês. Não só faltaram informações precisas do júri de apelação a respeito do caso, como o prazo de análise ocorreu muitas horas depois do término da disputa. Ocasionando, inclusive, atraso na cerimônia de premiação, ocorrida no dia seguinte à prova.

Então, tudo isso faz pensar. Querendo ou não, os jogos Olímpicos e Paralímpicos são oriundos dos interesses de pessoas importantes e influentes nas sociedades dominantes do mundo. Ainda que haja uma participação quase que maciça das delegações desportivas de todo o planeta, advém desse grupo seleto, o Comitê Olímpico Internacional (COI), o poder organizacional de todo o evento.

Portanto, há uma tendência natural de que os Jogos Olímpicos e Paralímpicos sejam delineados pela perspectiva dos países hegemônicos do mundo. É sob a luz de suas crenças, valores e interesses que tudo é pensado. Sem contar que as escolhas dos respectivos representantes no COI e demais entidades envolvidas são baseadas na influência política, porque eles precisam ser bons interlocutores para visibilizar a melhor imagem de sua nação.

Não é à toa que, aqui e ali, se percebam a formação de grupos representativos em determinados desportos; de modo que, romper essas bolhas é quase um ato desafiador. Não se trata apenas de superar a consagração de estruturas técnicas, táticas e de performance dos atletas; mas, do olhar mais condescendente e favorável das equipes de arbitragem para eles. Sob o argumento de uma subjetividade que não só envolve a análise e interpretação dos árbitros; de certo modo, flexibilizam o teor das regras e das contestações de maneira desigual. 

Em síntese, esse movimento encoberta perversas distorções e sutis tendenciosidades, beneficiando alguns em detrimento de outros. Porque quaisquer tentativas de contestação podem acabar silenciadas, como aconteceu com o atleta brasileiro, na medida em que as próprias regras criam subterfúgios para se absolver de suas próprias condutas antiéticas e contraditórias ao ideário do evento.

Infelizmente, os Jogos Olímpicos e Paralímpicos são mais que uma vitrine do cenário geopolítico mundial. Olhe para as bandeiras tremulando no alto do pódio e busque nos quadros de medalhas a quantidade de vezes que isso aconteceu. Não há grandes surpresas. Não há grandes alternâncias de destaque.  

Mais do que uma eficiência competitiva nas quadras, ginásios, arenas, piscinas, ... são jogos de eficiência de poder. Ainda que de maneira subliminar, os desempenhos de alguns estão sim, baseados em velhas e novas alianças. Quem assistiu ao filme Raça (Race) 1, de 2016, compreende isso muito bem.

Apesar da indignação, da frustração, do desapontamento, ou qualquer outra tentativa de definição para o que possamos estar compartilhando com Thiago Paulino, nesse momento, houve uma sucessão de vitórias que ultrapassam quaisquer medalhas.

Primeiro, porque ele venceu. Contra tudo e contra todos. Ele arremessou mais longe, mais forte, e todos viram. Os presentes ou aqueles pelas lentes poderosas das câmeras.

Segundo, porque retiramos as máscaras da hipocrisia. Ficou muito claro que não basta vencer, não basta dizer que há igualdade, não basta... Os Jogos Olímpicos e Paralímpicos nos mostraram que permanecem existindo para a reafirmar os pilares que sustentam as identidades nacionais e revelam a sua distinção.

Por fim, a maior das vitórias foi termos dado o primeiro passo na ruptura com a submissão secular. O pódio de Thiago Paulino ficou marcado na história. Braço direito erguido no ar, punho cerrado, e toda a simbologia de enfrentamento e resistência contra as injustiças, as desigualdades, as opressões. Chega de silêncio. Chega de apatia. Chega de subserviência. Não precisamos necessariamente de palavras para nos expressar, só precisamos de atitude. Porque o esporte foi posto em xeque, mais uma vez.

Agora, não temos mais dúvidas de que, em qualquer tempo, em qualquer lugar, em qualquer situação, é preciso se posicionar, questionar a nossa própria identidade, ressignificar e reafirmar os nossos próprios valores e crenças, redimensionar o nosso papel no mundo. Só assim, será possível ocupar o nosso verdadeiro lugar, ainda que, tentem nos impedir ou nos silenciar.