quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Uma liberdade acorrentada por mentiras...


Uma liberdade acorrentada por mentiras...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por mais indigesto que seja, o individualismo da forma e conteúdo para explicar as Fake News. Quando me refiro ao instinto de sobrevivência humano como algo vestigial, é por isso. O senso de coletividade empático que deveria nos proteger dos piores inimigos e adversidades está desaparecendo sumariamente, para dar lugar a exacerbação do “eu” contemporâneo. Por isso, as pessoas não só transitam por suas próprias realidades, como, também, não se importam de distorcer ou corromper a verdade em favor de seus próprios interesses.

Lamento, mas esse movimento há muito já ultrapassou a possibilidade de ser visto como mero descuido ou imprevidência. Depois de tantas consequências desastrosas, como as centenas de milhares de mortes pela COVID-19, por exemplo, as pessoas estão muito bem orientadas sobre o que são as Fake News, como elas se disseminam, os riscos que podem representar e os mecanismos de combate a elas; contudo, isso parece inócuo, como se não houvesse nenhuma razão para resistir. 

Talvez, seja mais simples do que pareça, compreender tudo isso. Dentro da sua bolha individualista, o disseminador de Fake News consegue algo, além de recursos financeiros vultosos; ele consegue o poder de influenciar, controlar e manipular a sociedade. Doutrinados por uma ideia perceptível de pressa e insuficiência temporal, as pessoas foram gradativamente se abstendo de despender seu tempo em análises criteriosas e mais profundas do cotidiano; portanto, tornando-se vulneráveis a ouvir e aceitar as informações propagadas no ambiente coletivo, elevando-as ao status de verdade.

Pensar é trabalhoso. Checar é trabalhoso. Refletir é trabalhoso. Então, a sociedade contemporânea se rendeu ao “efeito manada” para poupar tempo e energia. Mais uma vez, entre a liberdade e a segurança, a primeira falou mais alto. O problema é que as pessoas se esqueceram de perguntar o custo dessa liberdade. Assim, as escolhas, as decisões, as manifestações, nada é genuinamente pessoal. Por trás de cada uma delas há alguém no controle, medindo e pesando os impactos quanto a sua velocidade, direção e sentido. Assim, sem se dar conta, a humanidade nunca foi tão massificada quanto na era das Fake News.

E a massificação invisibiliza e silencia o indivíduo naquilo que deveria ser o mais importante, a sua identidade. O que explica o entendimento a respeito de tudo isso vir se comprometendo está na própria deterioração da educação e da cultura. Há um bombardeamento de informações milimetricamente estruturadas para criar modismos e interesses, tanto educacionais quanto culturais, que se adequem com perfeição a determinadas demandas de poder. Algo que é fácil de perceber pelas linhas divisórias que passam a perfazer a segregação dos grupos dentro da sociedade. 

Observe, por exemplo, o caso das polarizações ideológicas. De um lado ou de outro, os argumentos e os comportamentos se tornam homogeneizados, um modelo padrão típico. O que em longo prazo repercute em um grave empobrecimento intelectual da sociedade; pois, há uma perda tanto da capacidade crítico-reflexiva quanto das linguagens. A condição humana se metamorfisa em uma condição autômata de existência e sobrevivência.

Ao contrário do que possam pensar algumas pessoas, o papel das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) nesse contexto, não representa o fiel da balança. Dadas as devidas proporções, durante a Segunda Guerra Mundial, quando elas ainda nem sonhavam existir, os governos fascista e nazista já se valiam das Fake News, propagadas em folders, outdoors, jornais, revistas e nos discursos transmitidos pelas rádios.

A diferença é que nesse recorte temporal, a vulnerabilidade estava concentrada nas próprias questões sociais, tais como desemprego, miséria, custo de vida, carga de impostos. Não era a pressa ou o excesso de compromissos diários. Então, a manipulação pelas Fake News buscava trazer a essas pessoas as mensagens que elas gostariam de ouvir, que correspondessem exatamente às suas próprias indignações. De modo que, rapidamente, elas cumpriam o seu papel de inflamar e organizar a sociedade conforme os interesses dos grupos dominantes.

Então, o que vemos hoje é mais um desdobramento desse mecanismo de deterioração identitária social. Cada passo desse processo veio sendo meticulosamente delineado ao longo da história; sobretudo, no Pós-Revolução Industrial. Afinal, o individualismo se tornou fundamental para garantir o consumismo, o enriquecimento capital de uns em detrimento do empobrecimento de uma grande maioria, e, particularmente, essa disputa narrativa pelo controle social. A qual faz manter ocupados os indivíduos acreditando piamente estarem agindo na defesa de seus próprios interesses; quando, na verdade, estão apenas servindo a um ideário maior e mais complexo de poder.

No fim das contas, todos se tornam inimigos de todos. E não é culpa da verdade! Tudo foi transformado em uma ameaça, ou seja, o que existe, o que não existe e o que poderia vir a existir. Então, as pessoas são arrastadas como em um tsunami e tentam se apegar a qualquer coisa para não sucumbir ao desespero de ser deixada às margens da história.  Acreditar para não questionar. Uma liberdade acorrentada por mentiras. Que triste descaminho involutivo, este, que a evolução da humanidade impôs a si mesma!