Quando
a cidadania é estilhaçada ...
Por
Alessandra Leles Rocha
Tudo já anda tão pesado, que não
vejo sentido para mais desestabilização. A Pandemia que afeta o mundo, e a nós
brasileiros, de maneira ainda mais severa e cruel, é motivo suficiente para manifestar
a indignação de maneira franca e objetiva; mas, menos comburente.
Ainda que uma minoria da
população se sinta flutuando na espuma do leite, o restante vive a efervescência
silenciosa do luto e de tudo mais que agride e abala o cotidiano nacional; de modo
que essa gente está cansada demais para despender o resto de energia disponível.
Daí a importância de saber usar a voz, na oportunidade da vez.
Ir para as ruas é um direito. Ir para
as ruas é legítimo. Ir para as ruas é exercício de cidadania. Mas há de se
saber como fazê-lo, para não cair no descrédito, na desgraça, no oportunismo
barato dos outros. Para não anular as forças que sustentam a direção e o
sentido das reivindicações.
Afinal, a democracia não é homogênea,
não é uniforme. Existem perspectivas divergentes, convergentes e, muitas,
distantes de um posicionamento final. Portanto, o espaço da manifestação ainda
que abrigue uma amostra representativa, esta não é a totalidade.
Até ontem, tudo transitava dentro
da normalidade de uma coexistência pacífica. Mas, eis que um grupo, já na
dispersão do movimento, em São Paulo, incendiou uma agência bancária, quebrou
vidraças de uma concessionária de veículos, depredou pontos de ônibus, ateou
fogo em lixo espalhado pela rua, enfim... Sem se dar conta, ofereceram, de
bandeja, um bom argumento para as políticas ultraliberais de extrema direita no
país e, assim, justificarem o seu “asco” a incivilidade tupiniquim.
A questão é que, antes mesmo do
fato de depredar o patrimônio público e/ou privado, eles degradaram a
manifestação em si. Eles vilipendiaram os esforços de milhares de pessoas que,
apesar da Pandemia, saíram de suas residências para defender, de maneira
ordeira e pacífica, a sua cidadania contra as inúmeras perversidades e
desumanidades, que têm tomado conta do país.
Portanto, a depredação de uns e
outros foi um verdadeiro gol contra, uma estupidez sem sentido algum, um golpe
contra o exercício cidadão, que não traduziu nada além de ignorância em estado
bruto. Mas, infelizmente, conseguiu seus 15 minutos de fama sem merecimento.
Sei que é pedir demais, para uma
população que convive com o esfacelamento da Educação e da Cultura, tentar
entender o significado da luta de Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr; mas, seria
muito importante. Embora adeptos da não-violência, o resultado de seus
movimentos foi positivo para suas respectivas sociedades; bem como, para o mundo.
O primeiro, empenhou todos os
seus esforços de resistência não violenta para liderar a campanha de independência
da Índia do Reino Unido. O segundo, inspirado pelo primeiro, tornou-se a figura
de maior destaque e liderança do movimento dos Direitos Civis, nos EUA. Quem já
não ouviu falar sobre o discurso dele, em 28 de agosto de 1963, para mais de
250 mil pessoas sobre o sonho de uma sociedade sem discriminação 1?
Considerando que a história da
humanidade vem sendo traçada a partir das violências, Gandhi e Luther King demonstraram
na prática que a força pode sim, ser substituída pelo diálogo. A vida adquire
outra conotação quando apresentada a partir de palavras bem colocadas, de
argumentos bem consolidados.
Não é uma questão de hastear a
bandeira de certo ou errado para angariar adeptos e popularidade; mas, propor
uma reflexão, uma análise crítica dos fatos em si. Por isso, as legiões que os
seguiam, em suas manifestações, eram levadas a fazê-lo por livre e espontânea vontade,
pela própria consciência, pela própria perspectiva de suas vidas.
Logicamente, na contramão deles
estavam aqueles que detinham o poder, aqueles que defendiam a ordem, aqueles
que temiam por seus próprios interesses; de modo que, a repressão existiu de
maneira intensa e hostil, mesmo com a postura não violenta dos manifestantes.
Entretanto, ao contrário do que
se possa pensar, isso foi fundamental, porque de tanto os registros das manifestações
darem conta de que as violências aconteciam a partir de um único lado, a
repressão foi gradativamente arrefecendo. O rosto da repressão e da violência
ficou, portanto, marcado nas páginas da história de maneira muito bem definida.
Daí a importância de perceber
como a frágil e cambaleante democracia brasileira, recuperada há tão pouco
tempo, cria episódios assim, em que os indivíduos não entendem que “A prática da cidadania só adquire
sentido se em seu horizonte estão os direitos de todos, a igualdade perante a
lei, a defesa do bem comum” (João Batista Libânio – padre jesuíta, escritor
e teólogo brasileiro).
No fundo, cada vez, então, que a
incivilidade assume as rédeas da situação, fica claro como o brasileiro desdenha
a sua identidade. Ora, “Sem identidade
não se é. E a gente tem que ser, isso é que é importante. Mas a identidade
obriga depois à dignidade. Sem identidade não há dignidade, sem dignidade não
há identidade, sem estas duas não há liberdade. A liberdade impõe, logo de
começo, o respeito pelo próximo. Isto pode explicar um pouco os limites da própria
vida” (Manoel Oliveira – cineasta português).