domingo, 4 de julho de 2021

Quando a cidadania é estilhaçada ...


Quando a cidadania é estilhaçada ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Tudo já anda tão pesado, que não vejo sentido para mais desestabilização. A Pandemia que afeta o mundo, e a nós brasileiros, de maneira ainda mais severa e cruel, é motivo suficiente para manifestar a indignação de maneira franca e objetiva; mas, menos comburente.

Ainda que uma minoria da população se sinta flutuando na espuma do leite, o restante vive a efervescência silenciosa do luto e de tudo mais que agride e abala o cotidiano nacional; de modo que essa gente está cansada demais para despender o resto de energia disponível. Daí a importância de saber usar a voz, na oportunidade da vez.     

Ir para as ruas é um direito. Ir para as ruas é legítimo. Ir para as ruas é exercício de cidadania. Mas há de se saber como fazê-lo, para não cair no descrédito, na desgraça, no oportunismo barato dos outros. Para não anular as forças que sustentam a direção e o sentido das reivindicações.

Afinal, a democracia não é homogênea, não é uniforme. Existem perspectivas divergentes, convergentes e, muitas, distantes de um posicionamento final. Portanto, o espaço da manifestação ainda que abrigue uma amostra representativa, esta não é a totalidade.

Até ontem, tudo transitava dentro da normalidade de uma coexistência pacífica. Mas, eis que um grupo, já na dispersão do movimento, em São Paulo, incendiou uma agência bancária, quebrou vidraças de uma concessionária de veículos, depredou pontos de ônibus, ateou fogo em lixo espalhado pela rua, enfim... Sem se dar conta, ofereceram, de bandeja, um bom argumento para as políticas ultraliberais de extrema direita no país e, assim, justificarem o seu “asco” a incivilidade tupiniquim.

A questão é que, antes mesmo do fato de depredar o patrimônio público e/ou privado, eles degradaram a manifestação em si. Eles vilipendiaram os esforços de milhares de pessoas que, apesar da Pandemia, saíram de suas residências para defender, de maneira ordeira e pacífica, a sua cidadania contra as inúmeras perversidades e desumanidades, que têm tomado conta do país.

Portanto, a depredação de uns e outros foi um verdadeiro gol contra, uma estupidez sem sentido algum, um golpe contra o exercício cidadão, que não traduziu nada além de ignorância em estado bruto. Mas, infelizmente, conseguiu seus 15 minutos de fama sem merecimento.

Sei que é pedir demais, para uma população que convive com o esfacelamento da Educação e da Cultura, tentar entender o significado da luta de Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr; mas, seria muito importante. Embora adeptos da não-violência, o resultado de seus movimentos foi positivo para suas respectivas sociedades; bem como, para o mundo.

O primeiro, empenhou todos os seus esforços de resistência não violenta para liderar a campanha de independência da Índia do Reino Unido. O segundo, inspirado pelo primeiro, tornou-se a figura de maior destaque e liderança do movimento dos Direitos Civis, nos EUA. Quem já não ouviu falar sobre o discurso dele, em 28 de agosto de 1963, para mais de 250 mil pessoas sobre o sonho de uma sociedade sem discriminação 1?

Considerando que a história da humanidade vem sendo traçada a partir das violências, Gandhi e Luther King demonstraram na prática que a força pode sim, ser substituída pelo diálogo. A vida adquire outra conotação quando apresentada a partir de palavras bem colocadas, de argumentos bem consolidados.

Não é uma questão de hastear a bandeira de certo ou errado para angariar adeptos e popularidade; mas, propor uma reflexão, uma análise crítica dos fatos em si. Por isso, as legiões que os seguiam, em suas manifestações, eram levadas a fazê-lo por livre e espontânea vontade, pela própria consciência, pela própria perspectiva de suas vidas.

Logicamente, na contramão deles estavam aqueles que detinham o poder, aqueles que defendiam a ordem, aqueles que temiam por seus próprios interesses; de modo que, a repressão existiu de maneira intensa e hostil, mesmo com a postura não violenta dos manifestantes.

Entretanto, ao contrário do que se possa pensar, isso foi fundamental, porque de tanto os registros das manifestações darem conta de que as violências aconteciam a partir de um único lado, a repressão foi gradativamente arrefecendo. O rosto da repressão e da violência ficou, portanto, marcado nas páginas da história de maneira muito bem definida.

Daí a importância de perceber como a frágil e cambaleante democracia brasileira, recuperada há tão pouco tempo, cria episódios assim, em que os indivíduos não entendem que “A prática da cidadania só adquire sentido se em seu horizonte estão os direitos de todos, a igualdade perante a lei, a defesa do bem comum” (João Batista Libânio – padre jesuíta, escritor e teólogo brasileiro).

No fundo, cada vez, então, que a incivilidade assume as rédeas da situação, fica claro como o brasileiro desdenha a sua identidade. Ora, “Sem identidade não se é. E a gente tem que ser, isso é que é importante. Mas a identidade obriga depois à dignidade. Sem identidade não há dignidade, sem dignidade não há identidade, sem estas duas não há liberdade. A liberdade impõe, logo de começo, o respeito pelo próximo. Isto pode explicar um pouco os limites da própria vida” (Manoel Oliveira – cineasta português).