O
inverno sob constrangimento...
Por
Alessandra Leles Rocha
Não sei você, caro (a) leitor
(a); mas, eu já estou sem paciência com o Brasil do século XXI travestido de
século XVI, com todos os seus hábitos e comportamentos coloniais. A notícia do
dia foi de revirar o estômago, tamanha a indignação despertada.
Juntos em uma campanha
beneficente, o Ministro da Economia e a Primeira-Dama divulgaram o resultado de
uma arrecadação de agasalhos, contemplada no Programa Pátria
Voluntária. Foram 148 itens, ou seja, algo impossível de atender a demanda de
vulneráveis existentes no país.
Há tempos, que muita gente, por
aí, tenta angariar popularidade e aceitação social, posando de filantropo de
fim de semana. Uma benesse aqui. Uma esmola ali. Um discurso social acolá. Mas,
tudo tão pré-fabricado, que não sustenta a identidade do “bom moço” ou da “boa moça”,
de plantão. Porque não há uma verdade histórica, por parte daquele indivíduo,
suficiente para sustentar a encenação. Tudo acontece em um “de repente” que não dialoga com nada manifesto ou realizado
anteriormente.
Portanto, não passa de um
casuísmo barato, para parecer antenado aos discursos da contemporaneidade e
tentar surfar a onda do “politicamente
correto”. Só que ao tentar balizar a questão pelo certo ou errado, a
própria superficialidade genuína implícita no gesto, já demonstra o quão
limitada é a percepção a respeito do assunto.
Assim, ainda que o resultado da
tal campanha tenha sido pífio, o cerne da discussão é outro. Esse é um governo
distante, anos luz, de qualquer política pública que tenha caráter social e
humanitário, porque ele foi pensado para atender a um perfil infinitamente
minoritário de pessoas abastadas.
A vulnerabilidade social,
especialmente diante da Pandemia, mostra o seu lado mais cruel e perverso
diariamente na mídia, no retrato mais recente da sociedade urbanizada. Lá estão
as estatísticas reveladoras sobre o retorno avassalador da miséria, dos altos
índices do desemprego, no declínio do poder de compra do cidadão, enfim...
E nesse contexto, as falas do
Ministro da Economia não se preocuparam em deixar claras as suas convicções
sociais e posições políticas. Aliás, ele foi, repetidas vezes, deselegante e
desumano, com os mais pobres e vulneráveis. Fez chacota, tirou risos de
empresários, ganhou as páginas principais de notícias e, depois, tentou se
retratar algumas vezes, sem sucesso.
Apesar da maior crise sanitária,
já experimentada pelo Brasil e o mundo, o Ministério da Economia busca
alternativas, a todo instante, para protelar a inserção de medidas capazes de
atender às demandas das classes média tradicional e baixa (94%) da população.
Haja vista, por exemplo, a
insuficiência do Auxílio Emergencial liberado este ano, frente aos arroubos da
inflação com alto impacto sobre os alimentos, o aumento do gás de cozinha, dos
combustíveis e da energia elétrica. Não se vê no horizonte, então, nada que
possa mitigar a vulnerabilidade social, que não se resume ao alento advindo de
agasalhos e cobertores.
Afinal, há milhões de barrigas
vazias, de palafitas inundadas pelas cheias dos rios da região norte, de
doentes desassistidos, de ruas e praças repletas de sem-teto, ... de cidadãos
impedidos de exercerem a sua cidadania, alijados da sua dignidade, por pura
falta de oportunidades, decorrentes do acirramento das desigualdades humanas
que vigoram no país.
Em relação à Primeira-Dama, seus
silêncios, até aqui, foram suficientemente elucidativos. Porque, com exceção
dessa campanha de agasalhos, muito pouco se noticia sobre o papel assistencial
exercido por ela; contrariando, a visibilidade dada a maioria de suas
antecessoras nessa função. O que leva a crer que ela, também, pretenda não
contrariar convicções defendidas institucionalmente e, nem tampouco, as
posições políticas do Presidente.
Portanto, a verdade está posta. Nua
e crua, ela significa que a dignidade humana ou a cidadania são privilégios,
como nos tempos coloniais. Porque, para essas e muitas outras pessoas, nem
todos têm igual valor e podem, por essa razão, ser tratados a base de restos,
de migalhas, na base do assistencialismo das esmolas, dos donativos. Tudo para
justificar ao midiatismo, tão em voga, uma pseudossensibilidade, um
pseudoaltruismo, um pseudovalor coletivo. Porém, não adianta.
Parafraseando Milton Santos, no Brasil
existe um tipo de segregação: não é feio ser preconceituoso, é feio dizer que é.
Por isso, a genuína falta de interesse e respeito pelo ser humano mais humilde,
mais vulnerável, erroneamente é traduzida como inabilidade ou incompetência, resultando
em episódios lastimáveis, e essencialmente caricatos, como aconteceu dessa vez.
Mas, é imperioso que se entenda, de uma vez por todas, que os 148 agasalhos não passaram de mais uma prova cabal da perversa tática, em curso, na qual pretende-se manter as desigualdades cada vez mais acentuadas. Só para não oferecer às minorias nenhuma possibilidade de alçar voos que sejam capazes de retirá-las da condição de carência, de penúria, de marginalização. Algo que me fez lembrar o verso de um velho jingle de inverno, dos anos 60, que dizia, “[...] Não adianta bater que eu não deixo você entrar [...]”.