segunda-feira, 5 de julho de 2021

O inverno sob constrangimento...


O inverno sob constrangimento...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não sei você, caro (a) leitor (a); mas, eu já estou sem paciência com o Brasil do século XXI travestido de século XVI, com todos os seus hábitos e comportamentos coloniais. A notícia do dia foi de revirar o estômago, tamanha a indignação despertada. 

Juntos em uma campanha beneficente, o Ministro da Economia e a Primeira-Dama divulgaram o resultado de uma arrecadação de agasalhos, contemplada no Programa Pátria Voluntária. Foram 148 itens, ou seja, algo impossível de atender a demanda de vulneráveis existentes no país.

Há tempos, que muita gente, por aí, tenta angariar popularidade e aceitação social, posando de filantropo de fim de semana. Uma benesse aqui. Uma esmola ali. Um discurso social acolá. Mas, tudo tão pré-fabricado, que não sustenta a identidade do “bom moço” ou da “boa moça”, de plantão. Porque não há uma verdade histórica, por parte daquele indivíduo, suficiente para sustentar a encenação. Tudo acontece em um “de repente” que não dialoga com nada manifesto ou realizado anteriormente.

Portanto, não passa de um casuísmo barato, para parecer antenado aos discursos da contemporaneidade e tentar surfar a onda do “politicamente correto”. Só que ao tentar balizar a questão pelo certo ou errado, a própria superficialidade genuína implícita no gesto, já demonstra o quão limitada é a percepção a respeito do assunto.   

Assim, ainda que o resultado da tal campanha tenha sido pífio, o cerne da discussão é outro. Esse é um governo distante, anos luz, de qualquer política pública que tenha caráter social e humanitário, porque ele foi pensado para atender a um perfil infinitamente minoritário de pessoas abastadas.

A vulnerabilidade social, especialmente diante da Pandemia, mostra o seu lado mais cruel e perverso diariamente na mídia, no retrato mais recente da sociedade urbanizada. Lá estão as estatísticas reveladoras sobre o retorno avassalador da miséria, dos altos índices do desemprego, no declínio do poder de compra do cidadão, enfim...

E nesse contexto, as falas do Ministro da Economia não se preocuparam em deixar claras as suas convicções sociais e posições políticas. Aliás, ele foi, repetidas vezes, deselegante e desumano, com os mais pobres e vulneráveis. Fez chacota, tirou risos de empresários, ganhou as páginas principais de notícias e, depois, tentou se retratar algumas vezes, sem sucesso.

Apesar da maior crise sanitária, já experimentada pelo Brasil e o mundo, o Ministério da Economia busca alternativas, a todo instante, para protelar a inserção de medidas capazes de atender às demandas das classes média tradicional e baixa (94%) da população.

Haja vista, por exemplo, a insuficiência do Auxílio Emergencial liberado este ano, frente aos arroubos da inflação com alto impacto sobre os alimentos, o aumento do gás de cozinha, dos combustíveis e da energia elétrica. Não se vê no horizonte, então, nada que possa mitigar a vulnerabilidade social, que não se resume ao alento advindo de agasalhos e cobertores.

Afinal, há milhões de barrigas vazias, de palafitas inundadas pelas cheias dos rios da região norte, de doentes desassistidos, de ruas e praças repletas de sem-teto, ... de cidadãos impedidos de exercerem a sua cidadania, alijados da sua dignidade, por pura falta de oportunidades, decorrentes do acirramento das desigualdades humanas que vigoram no país.

Em relação à Primeira-Dama, seus silêncios, até aqui, foram suficientemente elucidativos. Porque, com exceção dessa campanha de agasalhos, muito pouco se noticia sobre o papel assistencial exercido por ela; contrariando, a visibilidade dada a maioria de suas antecessoras nessa função. O que leva a crer que ela, também, pretenda não contrariar convicções defendidas institucionalmente e, nem tampouco, as posições políticas do Presidente.

Portanto, a verdade está posta. Nua e crua, ela significa que a dignidade humana ou a cidadania são privilégios, como nos tempos coloniais. Porque, para essas e muitas outras pessoas, nem todos têm igual valor e podem, por essa razão, ser tratados a base de restos, de migalhas, na base do assistencialismo das esmolas, dos donativos. Tudo para justificar ao midiatismo, tão em voga, uma pseudossensibilidade, um pseudoaltruismo, um pseudovalor coletivo. Porém, não adianta.

Parafraseando Milton Santos, no Brasil existe um tipo de segregação: não é feio ser preconceituoso, é feio dizer que é. Por isso, a genuína falta de interesse e respeito pelo ser humano mais humilde, mais vulnerável, erroneamente é traduzida como inabilidade ou incompetência, resultando em episódios lastimáveis, e essencialmente caricatos, como aconteceu dessa vez.

Mas, é imperioso que se entenda, de uma vez por todas, que os 148 agasalhos não passaram de mais uma prova cabal da perversa tática, em curso, na qual pretende-se manter as desigualdades cada vez mais acentuadas. Só para não oferecer às minorias nenhuma possibilidade de alçar voos que sejam capazes de retirá-las da condição de carência, de penúria, de marginalização. Algo que me fez lembrar o verso de um velho jingle de inverno, dos anos 60, que dizia, “[...] Não adianta bater que eu não deixo você entrar [...]”.