Não,
não é só o prato vazio que assusta...
Por
Alessandra Leles Rocha
É interessante como a realidade
atual parece, cada vez mais, um recorte repaginado dos tempos do Brasil
Colônia. Naqueles tempos em que ninguém sabia ou falava sobre Segurança
Alimentar, a disparidade sobre a disponibilidade e acesso permanente de alimentos
e, o pleno consumo nutricional, já era um retrato da sociedade brasileira. As
fartas mesas dos privilegiados se contrastava com a escassez do que era
disponibilizado aos menos favorecidos.
A questão é que passados mais de 500
anos, a situação pouco se transformou para melhor. E os impactos sentidos pela
Insegurança Alimentar são percebidos na corrosão da expectativa de vida de uma
larga parcela de cidadãos, pelo adoecimento e cronificação dos problemas de
saúde, os quais podem resultar na incapacitação ao trabalho; bem como, pela
maior dependência de política públicas que visem atender as demandas
emergenciais dessas pessoas.
Aliás, para quem não sabe, não
foi à toa que o país propôs a cesta básica, contemplada pelo Decreto-Lei n. º
399, de 30 de abril de 1938, estabelecendo que a mesma, em geral, deveria ser composta
por 13 itens – carne, leite, feijão, arroz, farinha, batata, tomate, pão, café,
banana, açúcar, óleo e manteiga. Mais recentemente, foram incluídos, também,
itens de higiene pessoal.
Tendo em vista, a
continentalidade do país e sua pluralidade sociocultural, a quantidade e a
presença desses itens podem sofrer alterações. Do mesmo modo que as cestas
fornecidas pelas empresas, também, são estruturadas a partir de critérios
próprios estabelecidos, geralmente, com a anuência dos funcionários.
Fica claro, então, que uma
alimentação satisfatória e equilibrada, do ponto de vista nutricional, não é um
“luxo”; mas, uma necessidade vital. A cesta básica, embora careça de mais
elementos e de quantidade para atender o mínimo de refeições diárias, já foi um
passo importantíssimo para a sociedade brasileira.
Por isso a Segurança Alimentar precisa
estar acessível a todos os cidadãos sem exceção; a fim de que possam ser
evitados prejuízos de grandes proporções para o próprio país. Porque seres
humanos mal alimentados são mais susceptíveis tanto ao desenvolvimento de
doenças, oriundas da sub ou supernutrição por determinados alimentos, quanto
aos desdobramentos de doenças adquiridas por agentes infectocontagiosos, tais
como, a Malária, a Leishmaniose, a Dengue, a Zika, a Chikungunya, a Febre
Amarela, a AIDS, a COVID-19.
Esta é uma questão, portanto, que
extrapola as fronteiras da Saúde Pública e Socioculturais para atingir em cheio
a Economia. Afinal, os gastos com políticas assistenciais para esses cidadãos
se tornam bastante expressivos; mas, em contrapartida, dependendo da gravidade
da situação, não há garantias de que possam ser recapitalizados pela própria
reinserção destes ao mercado de trabalho. Um exemplo disso é a Malária, cujas
sucessivas reinfecções podem levar a quadros de total incapacitação para a
atividade laboral.
Acontece que a realidade
contemporânea foi impactada, além das expectativas, pela Pandemia da COVID-19;
sobretudo, do ponto de vista, socioeconômico. O que significa dizer que, em
virtude dos sucessivos aumentos dos alimentos, combustíveis, energia elétrica,
aluguéis, a renda se tornou insuficiente para garantir a Segurança Alimentar de
grande parte da população brasileira (94% 1).
Afinal, além dos cortes de
funcionários e salários, por parte de alguns segmentos importantes da economia,
e do fechamento de grandes multinacionais no país, estamos diante de uma taxa
de desemprego que já alcança 14,7 milhões de pessoas, 14,7% da população ativa,
de acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Isso, sem contar, os 5,9 milhões de desalentados que estão
fora do índice oficial.
De modo que as informações do
Instituto Tricontinental de Pesquisa Social sobre a alta dos alimentos soam
como a explosão de uma bomba sobre a população brasileira. “Os maiores aumentos
nos preços se concentram nos cereais, com uma elevação de 35,7% em relação ao
ano anterior [...]. Na sequência vêm os preços dos óleos vegetais, que
registraram a 12ª alta consecutiva entre os meses de abril e maio, de 7,8%
[...]. Segundo a Agência das Nações Unidas, outros índices que tiveram
incremento nos preços são os produtos de laticínio, que registraram alta de 28%
[...]. Para as carnes, o incremento anual no índice de preços ficou em 10%,
enquanto o açúcar registrou alta de 6,8% em maio em relação ao mês anterior. O
impacto da inflação global dos alimentos é maior na América do Sul com
21%[...]”2.
Como escreveu, tão sabiamente,
Mia Couto, “O que mais dói na miséria é a
ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os
homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no
nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes” 3.
Portanto, não é só o prato vazio que assusta. Ele é a pontinha desse iceberg de acontecimentos e decisões, na sua maioria de ordem político-econômica, que estão oprimindo a população; particularmente, os mais vulneráveis. Se nada for feito, rapidamente, a calamidade social irá tragar o país, de uma maneira nunca vista. Nos tornaremos fumaça invisível, dentro de um vazio maior que a própria fome.
1 https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/04/17/classe-media-encolhe-na-pandemia-e-ja-tem-mesmo-tamanho-da-classe-baixa.ghtml
2 https://www.brasildefato.com.br/2021/06/24/alta-na-inflacao-dos-alimentos-e-a-mercantilizacao-das-necessidades-humanas
3 COUTO, M. Vozes Anoitecidas. Alfragide, Portugal:
Caminho, 1986. 168p.