sexta-feira, 2 de julho de 2021

Nada mais temerária do que uma zona de conforto


Nada mais temerária do que uma zona de conforto

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quando os casos de crimes contra a gestão pública emergem no horizonte, não me contento com a indignação apenas em relação ao ocorrido; mas, particularmente, a quem ainda insiste em considerar tudo isso “normal”. Afinal, é muito simples entender que não existe gradação ou trivialização para as más condutas sociais; na medida em que, quaisquer infrações ou delitos, ocasionam automaticamente prejuízos aos demais.

Vivemos tempos muito conturbados e permeados por muitas violências e absurdos; de modo que, tentar “passar pano” para minimizar os acontecimentos, retira de quem o faz, o direito de lamentar suas mazelas ou exigir suas garantias cidadãs. Ora, tal comportamento não passa de casuísmo barato para se abster de um posicionamento franco e objetivo diante do certo e do errado.

Acontece que, apesar de todas as ilhas de individualismo que teimam em nos rodear, a sociedade ainda é um coletivo humano e suas dinâmicas interferem, direta ou indiretamente, sobre o grupo. A ideia de contrariar o óbvio pode até ser tentadora; mas, é inútil. Porque independentemente de onde você mora, vive sob as leis, organização e políticas daquele lugar; portanto, o que acontece diariamente repercute no seu bem ou mal-estar, querendo você ou não.

A questão é que a sociedade contemporânea perdeu o hábito de se colocar na posição do outro, para o bem ou para o mal. E as escolhas representativas nos regimes democráticos, no fundo, traçam um perfil muito próximo de quem são os eleitores. O que significa que os escolhidos estão muito atrelados, ao grau de afinidades e ideologias, de seus eleitores.

Daí o fato destes se sentirem tão desconfortáveis e intolerantes em admitir os erros e os equívocos uns dos outros; mesmo quando se tratam de situações bastante graves. Esse tipo de lealdade e subserviência, então, representa uma forma de o eleitor encobrir a si mesmo. 

Mas, enquanto se escondem sob esses subterfúgios, a sociedade se esfacela, os problemas se agigantam, a paralisia se instala, ... Parece que as pessoas perderam a capacidade de entender que “Decidir comprometer-se com resultados de longo prazo ao invés de reparos a curto prazo é tão importante quanto qualquer decisão que você fará em toda a sua vida” (Anthony Robbins). Que está em jogo o seguinte fato, “Nossa liberdade fundamental é o direito e o poder de decidir como qualquer pessoa ou qualquer coisa fora de nós nos afetará” (Stephen Covey); mas, muitos estão abdicando dele sem pestanejar.

Basta recortar a história no fragmento dessa Pandemia, para ter essa ideia materializada. Inicialmente, as pessoas se rebelaram contra um diminuto e invisível agente viral. Quando perceberam o quão ridículo era essa atitude, voltaram-se contra a Ciência, na figura de seus cientistas, mundo afora.

No entanto, em relação àqueles que haviam sido escolhidos “representantes do povo”, o nível de questionamento sobre suas responsabilidades, atos e omissões demorou muito para começar a ser percebido e manifesto. A situação precisou alcançar níveis de dramaticidade absurdos para que o torpor servil começasse a se dissipar; embora, ainda encontre muita resistência nesse movimento de lucidez tardia.

De modo que a sociedade brasileira, admitindo ou não, se configura cada vez mais corresponsável pelas tragédias decorrentes da COVID-19. Cada um que perdeu sua vida pela negligência, pelo despreparo, pelos crimes contra a gestão pública, não teve dessa sociedade, ou pelo menos parte dela, o mesmo sentimento de lealdade e cumplicidade devotados aos representantes da classe política nacional.

Seu luto foi marcado por uma insensibilidade e um desrespeito descomunal. Foram inúmeras as tentativas de desqualificar a gravidade da Pandemia. O que significa que o silêncio dessa gente tentou acobertar os tais crimes em curso. Mas, como já havia dito, esse foi apenas um recorte da história.

Na verdade, o que realmente impacta de maneira assustadora é a conclusão reafirmativa do quão letal podem ser os crimes contra a gestão pública; cujo, principal aliado é a própria população. Primeiro, porque eles matam por meio de um arsenal diverso e gradativo de estratégias, naquelas displicentes circunstâncias do dia a dia, sem muito alarde, como a maresia que enferruja lentamente as estruturas metálicas.

Segundo, porque eles têm a habilidade perversa de se converter em espetáculo de entretenimento, como as antigas arenas. Enquanto fazem sofrer alguns, outros se divertem diante da mórbida atração. Não há senso comum; mas, privilegiados e desprivilegiados em lados opostos de uma mesma identidade nacional.

Se houvesse o interesse e a disposição efetivos de olhar com atenção o que ocorre ao redor, a sociedade logo perceberia a digital desses crimes nas mazelas crônicas do país. Mas, como não há, deixa-se de perceber a insuficiência e a ineficiência dos serviços públicos prestados. O acirramento das desigualdades. As violências. As postergações. ... O que se resume nas palavras do biólogo e escritor francês, Jean Rostand, “Se mata um homem, é um assassino. Se mata milhões de homens, é um conquistador. Se mata todos, é um Deus”.

Por isso, nada mais temerária do que uma zona de conforto que desconstrói a reflexão e a criticidade sobre nós e sobre o mundo. Quando surge algum lampejo de lamúria, de reclamação, de desabafo, logo, acabam sendo sufocadas pelos circos dos horrores e conduzidas ao rol de um vitimismo qualquer; afastando, assim, os indivíduos da ousadia de qualquer eventual protagonismo em rechaçar as más condutas.

A ideia dos criminosos é fazer crer, a todo custo, que agir contra eles é trabalhoso demais. É difícil. É desafiador. Queixar, embora inócuo, porque soa como um sopro de esperança vazia, é muito mais simples. De modo que, nesse contexto, a espiral de problemas no país tende a girar no seu contínuo do tempo sem aspirações, sem novidades, por mais 500 anos.


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