Nada
mais temerária do que uma zona de conforto
Por
Alessandra Leles Rocha
Quando os casos de crimes contra
a gestão pública emergem no horizonte, não me contento com a indignação apenas
em relação ao ocorrido; mas, particularmente, a quem ainda insiste em
considerar tudo isso “normal”. Afinal, é muito simples entender que não existe
gradação ou trivialização para as más condutas sociais; na medida em que,
quaisquer infrações ou delitos, ocasionam automaticamente prejuízos aos demais.
Vivemos tempos muito conturbados
e permeados por muitas violências e absurdos; de modo que, tentar “passar pano”
para minimizar os acontecimentos, retira de quem o faz, o direito de lamentar
suas mazelas ou exigir suas garantias cidadãs. Ora, tal comportamento não passa
de casuísmo barato para se abster de um posicionamento franco e objetivo diante
do certo e do errado.
Acontece que, apesar de todas as
ilhas de individualismo que teimam em nos rodear, a sociedade ainda é um
coletivo humano e suas dinâmicas interferem, direta ou indiretamente, sobre o
grupo. A ideia de contrariar o óbvio pode até ser tentadora; mas, é inútil.
Porque independentemente de onde você mora, vive sob as leis, organização e
políticas daquele lugar; portanto, o que acontece diariamente repercute no seu
bem ou mal-estar, querendo você ou não.
A questão é que a sociedade
contemporânea perdeu o hábito de se colocar na posição do outro, para o bem ou
para o mal. E as escolhas representativas nos regimes democráticos, no fundo,
traçam um perfil muito próximo de quem são os eleitores. O que significa que os
escolhidos estão muito atrelados, ao grau de afinidades e ideologias, de seus
eleitores.
Daí o fato destes se sentirem tão
desconfortáveis e intolerantes em admitir os erros e os equívocos uns dos
outros; mesmo quando se tratam de situações bastante graves. Esse tipo de
lealdade e subserviência, então, representa uma forma de o eleitor encobrir a
si mesmo.
Mas, enquanto se escondem sob
esses subterfúgios, a sociedade se esfacela, os problemas se agigantam, a
paralisia se instala, ... Parece que as pessoas perderam a capacidade de
entender que “Decidir comprometer-se com
resultados de longo prazo ao invés de reparos a curto prazo é tão importante
quanto qualquer decisão que você fará em toda a sua vida” (Anthony
Robbins). Que está em jogo o seguinte fato, “Nossa
liberdade fundamental é o direito e o poder de decidir como qualquer pessoa ou
qualquer coisa fora de nós nos afetará” (Stephen Covey); mas, muitos estão
abdicando dele sem pestanejar.
Basta recortar a história no
fragmento dessa Pandemia, para ter essa ideia materializada. Inicialmente, as
pessoas se rebelaram contra um diminuto e invisível agente viral. Quando
perceberam o quão ridículo era essa atitude, voltaram-se contra a Ciência, na
figura de seus cientistas, mundo afora.
No entanto, em relação àqueles
que haviam sido escolhidos “representantes do povo”, o nível de questionamento
sobre suas responsabilidades, atos e omissões demorou muito para começar a ser
percebido e manifesto. A situação precisou alcançar níveis de dramaticidade
absurdos para que o torpor servil começasse a se dissipar; embora, ainda
encontre muita resistência nesse movimento de lucidez tardia.
De modo que a sociedade
brasileira, admitindo ou não, se configura cada vez mais corresponsável pelas tragédias
decorrentes da COVID-19. Cada um que perdeu sua vida pela negligência, pelo
despreparo, pelos crimes contra a gestão pública, não teve dessa sociedade, ou
pelo menos parte dela, o mesmo sentimento de lealdade e cumplicidade devotados
aos representantes da classe política nacional.
Seu luto foi marcado por uma
insensibilidade e um desrespeito descomunal. Foram inúmeras as tentativas de
desqualificar a gravidade da Pandemia. O que significa que o silêncio dessa
gente tentou acobertar os tais crimes em curso. Mas, como já havia dito, esse
foi apenas um recorte da história.
Na verdade, o que realmente impacta
de maneira assustadora é a conclusão reafirmativa do quão letal podem ser os
crimes contra a gestão pública; cujo, principal aliado é a própria população. Primeiro,
porque eles matam por meio de um arsenal diverso e gradativo de estratégias,
naquelas displicentes circunstâncias do dia a dia, sem muito alarde, como a
maresia que enferruja lentamente as estruturas metálicas.
Segundo, porque eles têm a
habilidade perversa de se converter em espetáculo de entretenimento, como as
antigas arenas. Enquanto fazem sofrer alguns, outros se divertem diante da mórbida
atração. Não há senso comum; mas, privilegiados e desprivilegiados em lados
opostos de uma mesma identidade nacional.
Se houvesse o interesse e a
disposição efetivos de olhar com atenção o que ocorre ao redor, a sociedade
logo perceberia a digital desses crimes nas mazelas crônicas do país. Mas, como
não há, deixa-se de perceber a insuficiência e a ineficiência dos serviços
públicos prestados. O acirramento das desigualdades. As violências. As
postergações. ... O que se resume nas palavras do biólogo e escritor francês,
Jean Rostand, “Se mata um homem, é um assassino. Se mata milhões de homens, é
um conquistador. Se mata todos, é um Deus”.
Por isso, nada mais temerária do
que uma zona de conforto que desconstrói a reflexão e a criticidade sobre nós e
sobre o mundo. Quando surge algum lampejo de lamúria, de reclamação, de desabafo,
logo, acabam sendo sufocadas pelos circos dos horrores e conduzidas ao rol de
um vitimismo qualquer; afastando, assim, os indivíduos da ousadia de qualquer
eventual protagonismo em rechaçar as más condutas.
A ideia dos criminosos é fazer
crer, a todo custo, que agir contra eles é trabalhoso demais. É difícil. É
desafiador. Queixar, embora inócuo, porque soa como um sopro de esperança vazia,
é muito mais simples. De modo que, nesse contexto, a espiral de problemas no
país tende a girar no seu contínuo do tempo sem aspirações, sem novidades, por
mais 500 anos.