A
Bastilha de ontem, de hoje e de amanhã
Por
Alessandra Leles Rocha
14 de julho. A Revolução Francesa
representa um marco na história mundial, não só pela decapitação dos monarcas, Luís
XVI e Maria Antonieta; mas, particularmente, pelo o que significou a investida
das massas populares contra os desmandos da aristocracia monárquica francesa. As
monarquias europeias, em geral, se viram retiradas abruptamente das suas zonas
de conforto; pois, o povo tinha a partir daquele episódio um estímulo para fazer
valer a sua vez e a sua voz.
O Pós-Revolução foi mais do que um
tempo de reconstrução, reorganização social, política e econômica, para a
França; mas, um período de redimensionar o restante da Europa frente a um movimento
popular, que precisava ser contido e reenquadrado dentro de novas perspectivas.
O povo havia se rebelado, dado um
basta aos absurdos impostos por uma desigualdade profundamente cruel e perversa
mantida pela monarquia. A qual colocava a peste, a guerra, a fome e a morte como
companheiras cotidianas do 3º Estado francês, ou seja, burguesia, camponeses e
os chamados sans-culotte – trabalhadores urbanos, pequenos comerciantes e, até
mesmo, desempregados.
De modo que impulsionados pela
burguesia, o grupo partiu para o confronto. A questão é que os burgueses
queriam derrubar o governo, em nome de seus próprios interesses. Então, passada
a revolução, eles assumiram o poder e começaram a exercer a sua própria
tirania, colocando o restante em posição tão desfavorável quanto antes. Porque o
novo rearranjo social não veio munido de tanta igualdade, liberdade e
fraternidade quanto eles esperavam.
Paralelamente a esse processo, a
Inglaterra dá a sua cartada de mestre para impedir os arroubos populares,
fazendo a sua Revolução Industrial. Nem a Geografia e nem a História do mundo
não seriam mais a mesmas, as sociedades estavam divididas entre a burguesia e o
proletariado. Cidades urbanizadas convivendo com os desafios advindos desse
processo; lixo, insalubridade, precariedade habitacional, ... Longas jornadas
de trabalho, na indústria, desamparadas pela ausência de direitos trabalhistas e baixíssima
remuneração.
Nesse contexto, o povo foi
fisgado pelo sistema e não teria mais tempo para se organizar e lutar por suas reivindicações.
Novamente, a vez e a voz da população haviam sido caladas pela necessidade de sobrevivência,
ainda que, às custas de uma indignidade de enormes sacrifícios. O ideário
revolucionário francês havia sido lançado à condição de mera utopia. E assim, a
Revolução Industrial vem parindo gerações e gerações de gente marginalizada, excluída,
preterida em direitos e soterradas por obrigações.
Isso significa que até chegar
aqui, na contemporaneidade, a humanidade veio consolidando estratégias de
controle e opressão social, a fim de garantir que o topo da pirâmide permanecesse
dentro de parâmetros aceitáveis, ou seja, sem grandes perdas e prejuízos. Afinal,
são eles quem controlam o poder, fazem as leis e administram as políticas. Basta
observar as pirâmides sociais ao longo dos séculos.
Os rearranjos acontecem abaixo do
topo porque acometem a massa produtiva da sociedade; de modo que o alargamento
exponencial da base é sempre um indicador da dimensão das perdas, que afetaram
quem estava um pouco acima. E quanto mais impactados economicamente, mais prejuízos
de outras ordens sociais – alimentação, lazer, educação, cultura, qualidade de
vida, saúde etc. – essas parcelas da
população têm.
Nesse contexto, tomando como base
a recente pesquisa que aponta o “achatamento
da classe média” brasileira 1, fica
fácil entender como as pessoas não conseguem ver a vida como ela é. Os dados
mostram que ninguém é melhor do que o outro na fila desse pão. As implacáveis deteriorações
que são impostas à classe média tradicional e a classe baixa demonstram o
desapreço da elite por essa legião de seres humanos.
Não é porque alguns recebem um
salário maior, têm mais acesso a bens e serviços, do que outros, que isso
signifique uma prerrogativa para torná-los superiores. A qualquer momento, as
diretrizes das políticas públicas e econômicas podem promover reveses
inimaginados, como já aconteceu em tempos anteriores. Ninguém está a salvo, na
medida em que não é parte da elite.
Esse é o ponto, a elite não quer
ampliar suas fronteiras. Nunca quis. Nem no século XVIII e nem agora. É essencial
para eles, que o grupo seja pequeno, restrito, inacessível. Por isso, eles
preferem criar condições de indigência a promover caminhos capazes de possibilitar a mobilidade social. Empoderar a classe média tradicional e a
classe baixa seria uma temeridade para a sua sobrevivência, seus interesses,
regalias e privilégios.
Assim, “Se não tem pão que comam brioches”2
ficou fichinha perto do que o povo ouviu e continua ouvindo. Humildes e
arrogantes, pertencentes ao rol dos invisíveis da contemporaneidade, são cada
vez mais humilhados em teoria e prática por burgueses de alma monárquica, que
andam por aí. No fundo, a verdade é que somos todos resquícios da Bastilha e de
seus arredores, gente que tem a sua existência marcada, metaforicamente, pela brasa
da cobiça e do poder de príncipes e reis sem coroa.
1
https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/04/17/classe-media-encolhe-na-pandemia-e-ja-tem-mesmo-tamanho-da-classe-baixa.ghtml
2 Frase atribuída à Maria Antonieta, rainha consorte da França e Navarra.