quarta-feira, 14 de julho de 2021

A Bastilha de ontem, de hoje e de amanhã


A Bastilha de ontem, de hoje e de amanhã

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

14 de julho. A Revolução Francesa representa um marco na história mundial, não só pela decapitação dos monarcas, Luís XVI e Maria Antonieta; mas, particularmente, pelo o que significou a investida das massas populares contra os desmandos da aristocracia monárquica francesa. As monarquias europeias, em geral, se viram retiradas abruptamente das suas zonas de conforto; pois, o povo tinha a partir daquele episódio um estímulo para fazer valer a sua vez e a sua voz.

O Pós-Revolução foi mais do que um tempo de reconstrução, reorganização social, política e econômica, para a França; mas, um período de redimensionar o restante da Europa frente a um movimento popular, que precisava ser contido e reenquadrado dentro de novas perspectivas.

O povo havia se rebelado, dado um basta aos absurdos impostos por uma desigualdade profundamente cruel e perversa mantida pela monarquia. A qual colocava a peste, a guerra, a fome e a morte como companheiras cotidianas do 3º Estado francês, ou seja, burguesia, camponeses e os chamados sans-culotte – trabalhadores urbanos, pequenos comerciantes e, até mesmo, desempregados.

De modo que impulsionados pela burguesia, o grupo partiu para o confronto. A questão é que os burgueses queriam derrubar o governo, em nome de seus próprios interesses. Então, passada a revolução, eles assumiram o poder e começaram a exercer a sua própria tirania, colocando o restante em posição tão desfavorável quanto antes. Porque o novo rearranjo social não veio munido de tanta igualdade, liberdade e fraternidade quanto eles esperavam.

Paralelamente a esse processo, a Inglaterra dá a sua cartada de mestre para impedir os arroubos populares, fazendo a sua Revolução Industrial. Nem a Geografia e nem a História do mundo não seriam mais a mesmas, as sociedades estavam divididas entre a burguesia e o proletariado. Cidades urbanizadas convivendo com os desafios advindos desse processo; lixo, insalubridade, precariedade habitacional, ... Longas jornadas de trabalho, na indústria, desamparadas pela ausência de direitos trabalhistas e baixíssima remuneração.

Nesse contexto, o povo foi fisgado pelo sistema e não teria mais tempo para se organizar e lutar por suas reivindicações. Novamente, a vez e a voz da população haviam sido caladas pela necessidade de sobrevivência, ainda que, às custas de uma indignidade de enormes sacrifícios. O ideário revolucionário francês havia sido lançado à condição de mera utopia. E assim, a Revolução Industrial vem parindo gerações e gerações de gente marginalizada, excluída, preterida em direitos e soterradas por obrigações.

Isso significa que até chegar aqui, na contemporaneidade, a humanidade veio consolidando estratégias de controle e opressão social, a fim de garantir que o topo da pirâmide permanecesse dentro de parâmetros aceitáveis, ou seja, sem grandes perdas e prejuízos. Afinal, são eles quem controlam o poder, fazem as leis e administram as políticas. Basta observar as pirâmides sociais ao longo dos séculos.

Os rearranjos acontecem abaixo do topo porque acometem a massa produtiva da sociedade; de modo que o alargamento exponencial da base é sempre um indicador da dimensão das perdas, que afetaram quem estava um pouco acima. E quanto mais impactados economicamente, mais prejuízos de outras ordens sociais – alimentação, lazer, educação, cultura, qualidade de vida, saúde etc. –  essas parcelas da população têm.

Nesse contexto, tomando como base a recente pesquisa que aponta o “achatamento da classe média” brasileira 1, fica fácil entender como as pessoas não conseguem ver a vida como ela é. Os dados mostram que ninguém é melhor do que o outro na fila desse pão. As implacáveis deteriorações que são impostas à classe média tradicional e a classe baixa demonstram o desapreço da elite por essa legião de seres humanos.

Não é porque alguns recebem um salário maior, têm mais acesso a bens e serviços, do que outros, que isso signifique uma prerrogativa para torná-los superiores. A qualquer momento, as diretrizes das políticas públicas e econômicas podem promover reveses inimaginados, como já aconteceu em tempos anteriores. Ninguém está a salvo, na medida em que não é parte da elite.

Esse é o ponto, a elite não quer ampliar suas fronteiras. Nunca quis. Nem no século XVIII e nem agora. É essencial para eles, que o grupo seja pequeno, restrito, inacessível. Por isso, eles preferem criar condições de indigência a promover caminhos capazes de possibilitar a mobilidade social. Empoderar a classe média tradicional e a classe baixa seria uma temeridade para a sua sobrevivência, seus interesses, regalias e privilégios.

Assim, “Se não tem pão que comam brioches”2 ficou fichinha perto do que o povo ouviu e continua ouvindo. Humildes e arrogantes, pertencentes ao rol dos invisíveis da contemporaneidade, são cada vez mais humilhados em teoria e prática por burgueses de alma monárquica, que andam por aí. No fundo, a verdade é que somos todos resquícios da Bastilha e de seus arredores, gente que tem a sua existência marcada, metaforicamente, pela brasa da cobiça e do poder de príncipes e reis sem coroa.