sexta-feira, 16 de julho de 2021

A arte de requentar o mais do mesmo


A arte de requentar o mais do mesmo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Já conheci pessoas que não se importam de exibir o pior da sua personalidade, como quem ostenta a um troféu. Mas, nos últimos tempos, venho percebendo o acirramento desse comportamento no âmbito coletivo. O Brasil decidiu mostrar o seu pior, diariamente. Talvez, por isso, esteja tão cansativo sobreviver ao cotidiano.

De todos os lados que se olha, nada parece traduzir a lógica, o bom senso, no que diz respeito aos interesses e necessidades da população brasileira. A dinâmica do país se assemelha a uma massa disforme de problemas e delitos, tão bem misturada que não se sabe onde começa um e termina o outro. E, mesmo assim, as autoridades querem nos fazer acreditar que as instituições estão funcionando plenamente.

Fico estarrecida quando ouço esse tipo de afirmação. Porque se fosse verdade haveria um movimento em direção à transformação, a colocar as coisas nos seus devidos lugares, a cobrar responsabilidades dos envolvidos, a punir os criminosos, enfim...

No entanto, o que se vê aqui e ali são discursos contemporizando, amenizando, a respeito de um contexto de gravidades que só fazem varrer o país como um tsunami, impactando severamente a vida de milhares de seres humanos.

A Pandemia é só um exemplo disso. O vírus só faz o estrago de matar indiscriminadamente porque houve negligência, despreparo, ineficiência, insuficiência e tantos outros adjetivos para definir as inações das autoridades nacionais. De modo que nem tudo foi obra e graça da morte, com seu vestido preto e uma foice nas mãos. Ações humanas têm estado à frente dos piores acontecimentos nacionais. Por isso, não há trégua nesse movimento de dilapidação, de deterioração, de consumição nacional.

Embora respeite e considere fundamental os trabalhos que vêm sendo desenvolvidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Pandemia, é desalentador olhar para o lado e ver os projetos que, paralelamente, as duas casas do legislativo nacional, têm se permitido aprovar.

É como se o comportamento dos legisladores se baseasse nas exigências dos recortes institucionais, os quais fazem parte nesse ou naquele momento. Sob um contexto são tomados pela indignação e senso de responsabilidade humanitária e cidadã; mas, em outros, se permitem sem constrangimentos legislar em causa própria, em nome de interesses vulgares e nada republicanos. Como se o compromisso constitucional da representatividade popular pudesse ser colocado sob vários pesos e medidas diferentes. Basta ver as notícias.

“Com altas de até 17%, preços de carne e ovos vão bater de novo inflação em 2021” 1. “Um terço das mulheres mortas no Brasil morre apenas por ser mulher” 2. “Vergonha do Congresso: em meio à crise, Fundo Eleitoral tem aumento de bilhões” 3. “Mais armas com civis aumentam homicídios mesmo na pandemia, veja mapa da violência” 4. “Reforma do IR: quem ganha de R$3,3 mil a R$6,9 mil pagará mais, diz ex-secretário” 5. “Quem quer comprar casa própria deve se atentar para aumento de juros e TR” 6...

O problema é que alcançamos um requentar de dramaticidades diárias tão absurdo, que não há como vislumbrar nenhum vestígio de mudança no horizonte. As mazelas que ganham as manchetes são as mesmas; mas, as pessoas que poderiam agir na defesa da população, também.

Então, o que se estabelece na sociedade brasileira é um mecanismo de trivialização dos fatos a fim de que sejam incorporados ao cotidiano e deixem de despertar algum sentimento de repulsa e/ou indignação. É assim! Pronto.

Se isso não nos satisfaz, problema nosso. Cada um que crie seu próprio modo de lidar com a distopia real do mundo contemporâneo. Como? Difícil responder, porque depende do quão presente você está no mundo, da sua criticidade, da sua reflexão, do seu senso coletivo, da sua empatia, da sua disposição em permanecer atento etc.etc.etc. Afinal de contas, como diz aquela canção, “[...] É preciso estar atento e forte / Não temos tempo de temer a morte [...]” 7.

Ora, admitindo ou não, somos responsáveis por tudo isso. Votar ou não votar, não é só uma questão. Escolhas têm desdobramentos, consequências. Mas, o velho ranço colonial brasileiro nos ensinou a arte da abstenção, do ficar em cima do muro, em uma tentativa de poupar esforços, energias e conchavos. De se esquivar mais facilmente das responsabilidades, dos deveres, das obrigações.

Contudo, apesar dessas e outras, como o mundo não para de girar, a ineficiência das práxis empregadas tende a se mostrar cada vez mais clara. O que quer dizer que, na medida em que vamos nos vendo encobrir pela lama da inação, vamos deixando de respirar, de acreditar, de sonhar, de metamorfosear; a tal ponto, que abrimos mão de descobrir qual seria a cor de nossas próprias asas e se elas seriam capazes de voar.     



7 Caetano Veloso – Divino Maravilhoso - https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44718/