A
arte de requentar o mais do mesmo
Por
Alessandra Leles Rocha
Já conheci pessoas que não se
importam de exibir o pior da sua personalidade, como quem ostenta a um troféu. Mas,
nos últimos tempos, venho percebendo o acirramento desse comportamento no âmbito
coletivo. O Brasil decidiu mostrar o seu pior, diariamente. Talvez, por isso,
esteja tão cansativo sobreviver ao cotidiano.
De todos os lados que se olha,
nada parece traduzir a lógica, o bom senso, no que diz respeito aos interesses
e necessidades da população brasileira. A dinâmica do país se assemelha a uma
massa disforme de problemas e delitos, tão bem misturada que não se sabe onde
começa um e termina o outro. E, mesmo assim, as autoridades querem nos fazer
acreditar que as instituições estão funcionando plenamente.
Fico estarrecida quando ouço esse
tipo de afirmação. Porque se fosse verdade haveria um movimento em direção à
transformação, a colocar as coisas nos seus devidos lugares, a cobrar
responsabilidades dos envolvidos, a punir os criminosos, enfim...
No entanto, o que se vê aqui e
ali são discursos contemporizando, amenizando, a respeito de um contexto de
gravidades que só fazem varrer o país como um tsunami, impactando severamente a
vida de milhares de seres humanos.
A Pandemia é só um exemplo disso.
O vírus só faz o estrago de matar indiscriminadamente porque houve negligência,
despreparo, ineficiência, insuficiência e tantos outros adjetivos para definir
as inações das autoridades nacionais. De modo que nem tudo foi obra e graça da
morte, com seu vestido preto e uma foice nas mãos. Ações humanas têm estado à
frente dos piores acontecimentos nacionais. Por isso, não há trégua nesse
movimento de dilapidação, de deterioração, de consumição nacional.
Embora respeite e considere fundamental
os trabalhos que vêm sendo desenvolvidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) sobre a Pandemia, é desalentador olhar para o lado e ver os projetos que,
paralelamente, as duas casas do legislativo nacional, têm se permitido aprovar.
É como se o comportamento dos
legisladores se baseasse nas exigências dos recortes institucionais, os quais
fazem parte nesse ou naquele momento. Sob um contexto são tomados pela indignação
e senso de responsabilidade humanitária e cidadã; mas, em outros, se permitem
sem constrangimentos legislar em causa própria, em nome de interesses vulgares
e nada republicanos. Como se o compromisso constitucional da representatividade
popular pudesse ser colocado sob vários pesos e medidas diferentes. Basta ver
as notícias.
“Com altas de até 17%, preços de
carne e ovos vão bater de novo inflação em 2021” 1.
“Um terço das mulheres mortas no Brasil morre apenas por ser mulher” 2. “Vergonha do Congresso: em meio à
crise, Fundo Eleitoral tem aumento de bilhões” 3.
“Mais armas com civis aumentam homicídios mesmo na pandemia, veja mapa da
violência” 4. “Reforma
do IR: quem ganha de R$3,3 mil a R$6,9 mil pagará mais, diz ex-secretário” 5. “Quem quer comprar casa própria deve
se atentar para aumento de juros e TR” 6...
O problema é que alcançamos um requentar
de dramaticidades diárias tão absurdo, que não há como vislumbrar nenhum vestígio
de mudança no horizonte. As mazelas que ganham as manchetes são as mesmas; mas,
as pessoas que poderiam agir na defesa da população, também.
Então, o que se estabelece na
sociedade brasileira é um mecanismo de trivialização dos fatos a fim de que
sejam incorporados ao cotidiano e deixem de despertar algum sentimento de
repulsa e/ou indignação. É assim! Pronto.
Se isso não nos satisfaz,
problema nosso. Cada um que crie seu próprio modo de lidar com a distopia real
do mundo contemporâneo. Como? Difícil responder, porque depende do quão
presente você está no mundo, da sua criticidade, da sua reflexão, do seu senso
coletivo, da sua empatia, da sua disposição em permanecer atento etc.etc.etc. Afinal
de contas, como diz aquela canção, “[...] É preciso estar atento e forte / Não
temos tempo de temer a morte [...]” 7.
Ora, admitindo ou não, somos responsáveis
por tudo isso. Votar ou não votar, não é só uma questão. Escolhas têm
desdobramentos, consequências. Mas, o velho ranço colonial brasileiro nos
ensinou a arte da abstenção, do ficar em cima do muro, em uma tentativa de
poupar esforços, energias e conchavos. De se esquivar mais facilmente das
responsabilidades, dos deveres, das obrigações.
Contudo, apesar dessas e outras, como o mundo não para de girar, a ineficiência das práxis empregadas tende a se mostrar cada vez mais clara. O que quer dizer que, na medida em que vamos nos vendo encobrir pela lama da inação, vamos deixando de respirar, de acreditar, de sonhar, de metamorfosear; a tal ponto, que abrimos mão de descobrir qual seria a cor de nossas próprias asas e se elas seriam capazes de voar.
1 https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,com-altas-de-ate-17-precos-de-carne-e-ovos-vao-bater-de-novo-inflacao-em-2021,70003780011
2 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/07/um-terco-das-mulheres-mortas-no-brasil-morre-apenas-por-ser-mulher.shtml
3 https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/07/4937917-vergonha-do-congresso-em-meio-a-crise-fundo-eleitoral-tem-aumento-de-bilhoes.html
4 https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/07/4937941-mais-armas-com-civis-aumentam-homicidios-mesmo-na-pandemia-veja-mapa-da-violencia.html
5 https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2021/07/4937939-reforma-do-ir-quem-ganha-de-rs-33-mil-a-rs-69-mil-pagara-mais-diz-ex-secretario.html
6 https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2021/07/4937930-quem-quer-comprar-casa-propria-deve-se-atentar-para-aumento-de-juros-e-tr.html
7 Caetano Veloso – Divino Maravilhoso - https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44718/