Um
olhar sobre a amizade no mundo contemporâneo
Por
Alessandra Leles Rocha
Há muitos anos recebi um cartão
de Natal, cuja mensagem dizia, “A glória
da amizade não é a mão estendida, nem o sorriso carinhoso, nem mesmo a delícia
da companhia. É a inspiração espiritual que vem quando você descobre que alguém
acredita e confia em você” (Ralph Waldo Emerson – escritor, filósofo e poeta
norte-americano). Uma definição perfeita para traduzir a subjetividade de uma
das relações humanas mais importantes. Afinal, “A amizade é indispensável para o bom funcionamento da memória e a integridade
do próprio eu” (Milan Kundera – escritor tcheco).
No entanto, fiquei pensando em
quão raro seria tecer algo assim. Isso porque, desde que o consumo, na figura
do TER, cruzou os caminhos da raça humana, as relações sociais passaram a ser banhadas
por sentimentos tóxicos e nocivos, totalmente, contrários ao despojamento e a
entrega que se espera em uma convivência de rara beleza, como é a amizade.
Isso porque estabeleceram-se
barreiras, divisões, condições, pré-requisitos, ... de modo que as amizades foram
perdendo a sua essência, deixando de acontecer de maneira genuína e espontânea.
Como se não houvesse mal algum em perder o seu status de prioridade para a
qualidade de vida e o bem-estar do ser humano. De repente, as amizades foram
banalizadas à condição de uma relação social qualquer, sem estreitar vínculos,
afetos, sentimentos, emoções.
Como tivessem sido colocadas dentro
de uma imensa impossibilidade de experimentar na realidade, a mesma
cumplicidade descrita pela imaginação da pintora Frida Khalo, ou seja, “Devia ter 6 anos quando vivi intensamente a
amizade imaginária com uma menina de minha idade. [...] Não me lembro de sua
imagem, nem de sua cor. Porém sei que era alegre e ria muito. Sem sons. Era ágil
e dançava como se não tivesse nenhum peso. Eu a seguia em todos os seus
movimentos e contava para ela, enquanto ela dançava, meus problemas secretos. Quais?
Não me lembro. Porém, ela sabia, por minha voz, de todas as minhas coisas ...”.
Cada vez mais, o que se vê são as
amizades pisando em ovos. Polarizações ideológicas absurdas, que nada tem a ver
com amizade, têm colocado as palavras sob necessidade de aferição de pesos e
medidas. Criando uma superficialidade no trato que beira a asfixia da
espontaneidade.
As relações passaram a ser vivenciadas
com o freio de mão puxado, contidas e protocolares. Com encontros roteirizados
por scripts de felicidade inabalável, sucesso em franca expansão, conquistas que
não enxergam obstáculos e muitas amenidades; como se a vida fosse, mesmo, uma maravilha
sem limites.
Porque, na verdade, as pessoas
não estão dispostas a SER, a compartilhar, a revelar a sua própria verdade
humana. Ora, isso implicaria em transitar pelo mundo com suas vulnerabilidades,
suas dúvidas, suas dificuldades e inadequações, seus altos e baixos a flor da
pele, enfim... tudo muito real e natural; mas, nada excepcional.
E a contemporaneidade cobra, exige
implacavelmente, por essa excepcionalidade, esse destaque em tempo integral. A
vida não pode ser sem graça, sem estopim de competição, sem notoriedade, sem
glamour. Por isso, “O caminho para subir
a posição social está e sempre estará semeado de amizades perdidas”
(Herbert George Wells – escritor britânico).
Na espiral do mundo contemporâneo,
as pessoas vão se rendendo, então, a quantidade de likes nas redes sociais, ao número de seguidores, aos rótulos que
lhes são atribuídos no mundo virtual e, por tabela, no mundo real.
Milhares de desconhecidos que
passam a cumprir o papel de encobrir as ausências, as carências, as solidões. Relações
que jamais serão capazes de dar colo, conselhos, alento, aconchego, afeto, ...
porque não foram forjadas para esse fim. Afinal, cada vez mais, “A amizade começa onde termina ou quando
conclui o interesse” (Cícero – orador e político romano).
Talvez, por isso, as palavras de Henry
Adams permaneçam tão atuais, ou seja, “Um
amigo durante a vida é muito; dois é demais; três quase impossível. A amizade
exige um certo paralelismo de vida, uma comunhão de ideias, uma rivalidade de
objetivos”. Além disso, “O que mais
impede de ter um bom amigo é o empenho em ter muitos. A amizade quer ser antiga”
(Plutarco – historiador e filosofo grego).
Por isso tem que existir o desejo,
à disposição, a abertura para a vida acontecer e se deixar fiar os laços de
amizade sem pressa. Amigos não se fazem da noite para o dia; porque, nada é tão
imponderável quanto uma boa amizade.
Assim, no próximo dia 20 de julho, quando se comemora o Dia do Amigo, em razão da viagem do
homem à Lua, em 1969, a qual tornou-se um marco da amizade universal, não se
esqueça de que, apesar dos pesares contemporâneos, para se ter um amigo
continua valendo a premissa de que “[...]
Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de
segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não
é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve
ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o
grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo
deve ser o de amigo [...] que diga que vale a pena viver, não porque a vida é
bela, mas porque já se tem um amigo”1.