segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Sociedade. Vida. Morte. E seus vieses preconceituosos...


Sociedade. Vida. Morte. E seus vieses preconceituosos...

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

O assunto de 2020 é a Pandemia e não poderia ser diferente. Um novo vírus chegou derrubando as portas, desestabilizando a ordem, nivelando por baixo a humanidade, .... Enfim, causando o caos. Estranho é que, apesar de tudo isso, ele não foi o primeiro e nem será o último na história. Talvez, então, esse frisson não tenha a sua raiz nesse ser diminuto; mas, no próprio ser humano e, mais precisamente, nos seus vieses preconceituosos.

De fato, o COVID-19 é democrático no espectro de ação. Em gotículas de saliva ele é disseminado pelos ambientes e conduzido as vias aéreas de quem estiver no lugar errado na hora certa. Todos podem ser a bola da vez. Entretanto, ele não produziu manifestações diretas de preconceito quanto a sua transmissibilidade. A proposta de isolamento social não veio para impor um banimento social definitivo; mas, a fim de se evitar temporariamente a propagação do contágio viral.

No entanto, ela sim, chegou banhada pelo preconceito, na medida em que para as parcelas menos favorecidas da população não foram oferecidas oportunidades de permanecerem nesse isolamento.  Quanto aos privilegiados o que se viu foi um descontentamento diante da ideia e uma enxurrada de investidas transgressoras.

Como é possível perceber, a sociedade não se enxerga seletiva em relação a imposição de determinados comportamentos. Assim, quando falo a respeito da ideia de preconceito, a qual se fez presente para mim nesse momento histórico, busquei ir um pouco além do que descrevi acima, percorrendo outros aspectos.

Considerando que já circulavam entre nós milhões de agentes patogênicos por segundo, havia uma tendência tão convicta de acreditar na potencialidade solutiva da ciência para resolver quaisquer problemas, que as pessoas não dispensavam uma atenção tão contundente como agora. Era como se as doenças atingissem a sociedade de maneira pontual, levando a cada indivíduo a se responsabilizar por seus próprios cuidados e soluções, ou seja, como se não houvesse uma interação coletiva.  

Há quase 40 anos, por exemplo, foi descoberto o vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) que desenvolve a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS). Desde então, o mundo científico vem empenhando todos os seus máximos esforços a estudar o vírus no propósito de preveni-lo, tratá-lo ou, até mesmo, curá-lo; visto que, essa doença já fez, aproximadamente, mais de 35 milhões de vítimas ao redor do mundo.

No entanto, observando a comoção causada pelo COVID-19, junto a população atual, é fácil perceber que com o HIV o processo foi um pouco diferente. Não só por conta das conjunturas sociais da época, década de 80; mas, porque a AIDS foi inicialmente estigmatizada como uma doença pertencente aos gays e usuários de drogas injetáveis; portanto, segmentos já popularmente segregados.

Isso fez com que, de um modo geral, as pessoas não enquadradas nesse perfil se sentissem imunes ao vírus e sem uma necessidade efetiva de engajamento social em favor das políticas de saúde para a doença que surgia. O que levou muitas delas a contraírem a doença inadvertidamente em relações sexuais sem uso de preservativo e/ou em condições de promiscuidade, em transfusões de sangue e hemoderivados sem controle de qualidade sanitária, ou em compartilhamento de instrumentos perfuro cortantes em serviços de saúde e de estética, tais como bisturis, alicates, tesouras etc.

Mas, até que a ciência conseguisse provar efetivamente os caminhos reais da transmissão – fluídos corporais –, o que para surpresa de muitos eram comuns a outros patógenos como o vírus da Hepatite C e a Sífilis, o preconceito se fixou severamente no inconsciente coletivo das pessoas; de modo que, a AIDS ainda representa um símbolo de intolerância e segregação, o que faz com que suas vítimas padeçam não só pela doença imunológica e seus desdobramentos, mas pela morte social decretada subliminar ou diretamente pela sociedade.

Mesmo assim, nesse momento crucial de discussão em torno do tênue limite entre a vida e a morte, ninguém se pergunta sobre os avanços das pesquisas em torno da AIDS; a qual conta com tratamentos mitigadores disponíveis, mas nenhuma vacina para prevenção. O silêncio que ecoa sobre o HIV, também, se propaga por outras doenças, por meio do preconceito social. Isso significa que as parcelas tidas como “bem-nascidas”, providas de regalias e direitos “extras” têm a falsa impressão de estarem imunes a diversas patologias que infestam o mundo à revelia de sua “bolha”. Como se as suas atitudes preconceituosas, discriminadoras e intolerantes fossem suficientemente capazes de blindar o contato com tais indesejáveis enfermidades. Só que não.

Tuberculose, Dengue, Febre Amarela, Zika, Chikungunya, Malária, Hanseníase, Raiva, e tantas outras doenças, estão por aí fazendo vítimas sem que a sociedade dispense a devida atenção. Não se trata de uma questão geográfica entre o rural e o urbano, ou a periferia e a zona sul; porque as patologias não exigem essa especificidade, inclusive, pelo fato do mau uso e ocupação do solo que a própria sociedade estabeleceu. Na geografia do mundo real as pessoas se deslocam, transitam pelos espaços.

E se não carregam consigo a possibilidade de transmissão da doença, por excreção de fluidos corpóreos – tosse, escarro, sangue, fezes, urina –, podem carregar o agente infeccioso – vírus, bactérias, protozoário, fungo – para diferentes lugares até que possam se encontrar com o vetor específico presente no ambiente e, assim, disseminar o problema.

Basta pensar um pouquinho, então, para perceber que são milhares de pessoas com as quais mantemos contato direta ou indiretamente nas ruas, no transporte público, nos shoppings, nas feiras, nas festas, enfim... O que dentro de uma lógica absolutamente natural não nos permite inferir exatamente sobre a rotina de hábitos e comportamentos de cada uma delas, para saber se seriam ou não potencialmente transmissoras disso ou daquilo.

Sem contar a incerteza que ronda os caminhos de prevenção, tratamento e/ou cura dessas inúmeras doenças; pois, nem todas contam com tal arcabouço e, nem tampouco, uma resposta individual de cada um, plenamente satisfatória. Sim; protocolos, remédios e vacinas vez por outra não funcionam em algumas pessoas. Entre a vida humana e a ciência há mistérios indecifráveis que interrompem o fluxo de sucesso esperado. Então, o preconceito que aflora do sentimento de superioridade capital também se esvai como fumaça quando a realidade caminha por estradas mais humanas e menos idealizadas.

Assim, enquanto apostam suas fichas em alguma vacina que pretende prevenir a raça humana do COVID-19, a humanidade em sua grande maioria segue alheia ao contínuo do mundo, com todos os seus perigos e desafios. Não enxergam que podem, como cantou Caetano, “morrer de susto, de bala ou vício” 1 a qualquer instante; mas, também, de doenças conhecidas ou não. O que significa que ainda se rendem aos apelos narcísicos dos seus preconceitos “démodé”, que não servem senão ao agravo das conjunturas pretéritas e atuais. Porque no fim das contas, “todo conceito que o homem não modifica com sua evolução, torna-se um preconceito” 2 (Carlos Bernardo Gonzales Pecotche).

 



1 https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/76612/

2 Foi um escritor, educador, pedagogista, conferencista e pensador humanista, conhecido como fundador da Logosofia.